Segundas intenções

Saque antecipado do FGTS é lobby do mercado

Autor

  • Mauro Antônio Rocha

    é advogado especialista em Direito Imobiliário Urbanístico Tributário Comercial Societário e do Consumidor e pós-graduando em Direito Registral e Notarial (IBEST) e Direito Urbanístico (PUC-MG). É coordenador jurídico de Contratos Habitacionais da Caixa Econômica Federal e editor do site Cartilha do FGTS.

17 de fevereiro de 2009, 8h00

Até 1966, o regime indenizatório, abrigado nos artigos 478 e seguintes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), estipulava o pagamento, pelo empregador, de valor igual a uma remuneração mensal por ano de trabalho por ocasião da dispensa imotivada do empregado, bem como vedava a dispensa do trabalhador, sem justa causa, após dez anos de trabalho na mesma empresa, assegurando a chamada estabilidade de emprego.

Naquele regime celetista, os recursos destinados ao pagamento das indenizações trabalhistas permaneciam em poder dos empregadores o que, geralmente, obrigava o trabalhador a recorrer ao Poder Judiciário, por ocasião da demissão, para a satisfação de seus direitos e efetivo recebimento das verbas indenizatórias, alimentando litígios que duravam dez ou quinze anos.

Em 1966 foi instituído o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), com o objetivo de substituir o regime vigente. Baseado no sistema de pecúlio e poupança, e garantindo ao trabalhador montante indenizatório equivalente ao regime da CLT, o Fundo de Garantia, ao mesmo tempo em que liquidou a estabilidade de emprego, trouxe ao trabalhador a segurança do efetivo recebimento das verbas indenizatórias previamente recolhidas pelo empregador.

Os dois regimes indenizatórios conviveram até 1988, quando o FGTS foi incluído entre os direitos sociais do trabalhador pela Constituição Federal, tornando-se o regime único e obrigatório a partir da admissão no emprego.

Sob o aspecto político-social, a concentração desses recursos indenizatórios, antes diluídos e mantidos nas mãos dos empregadores, possibilitou a criação de um poderoso fundo, destinado a suprir as necessidades de investimento nas áreas da habitação, saneamento básico e infra-estrutura urbana, que arrecada R$ 40 bilhões anualmente e dispõe de aproximadamente R$ 200 bilhões em direitos, depositados em nome de 22 milhões de empregados.

Todo o acima foi exposto para lembrar aos trabalhadores — titulares e principais interessados na manutenção do FGTS — da natureza indenizatória dos depósitos efetuados nesse fundo, que estarão disponíveis na ocorrência de dispensa imotivada, de aposentadoria ou de morte do trabalhador.

Evidentemente, um montante de recursos dessa grandeza é alvo constante do interesse dos mercados econômico-financeiros que pretendem abocanhá-lo total ou parcialmente, e que sustentam um movimento cíclico,  sistemático e orquestrado, que retornou à mídia em meados de 2007 — repercutido principalmente pelas entidades patronais do setor da construção civil — na esteira do ‘boom imobiliário’ e do súbito interesse dos grandes bancos pelo mercado de crédito imobiliário.

Esse movimento, de um lado, busca incutir no trabalhador um falso sentimento de perda financeira decorrente da baixa remuneração do fundo — 3% de juros ao ano, mais correção monetária — e o consequente interesse na utilização intempestiva desses recursos para aplicação no mercado de capitais, no mercado financeiro, em planos da previdência privada, dentre outras.

Neste passo, o movimento se alimenta de manifestações pessimistas ou catastróficas, atualmente centradas na simples comparação da rentabilidade de um fundo com objetivos sociais legalmente definidos com as de outras aplicações financeiras de alto risco, com caráter claramente especulativo.

Não por acaso, já no início de 2007, matéria divulgada no jornal O Estado de São Paulo, classificou o FGTS como "o pior investimento do país, tendo rendido quase 20 vezes menos que as aplicações mais seguras do mercado financeiro desde o Plano Real, para, na sequência, louvar os trabalhadores (que já) sentiram o gosto de poder investir os recursos no FGTS na compra de ações da Petrobrás e da Vale do Rio Doce, para as quais foi permitido o uso de parcela dos recursos acumulados no fundo.

Sem mostrar o “outro lado”, a matéria oculta que a remuneração do FGTS tem como contrapartida as taxas de juros cobradas dos mutuários do sistema financeiro da habitação e das aplicações sociais em saneamento básico e infra-estrutura urbana e, ainda, que os saldos das contas vinculadas estão garantidos e protegidos por lei, com o risco da aplicação dos recursos assumido integralmente pela Caixa Econômica Federal e que, quando aplicados no mercado financeiro, esse risco passa a ser todo do trabalhador.

Porém, já em 2001, a revista Veja publicava artigo de Stephen Kanitz, onde o economista, partindo da premissa equivocada de que todo mês o Estado retira 8% de nosso salário para depositar no FGTS, defendeu a extinção do fundo e a incorporação da contribuição mensal ao salário do trabalhador com a recomendação de guardar o acréscimo para os dias negros de uma recessão, já que nunca se sabe quando ela virá. Naquele artigo, o economista desenvolveu um estranho argumento para atribuir à existência do FGTS a culpa pelo desinteresse das empresas na instalação de grandes centros de treinamento profissional no país.

No mesmo ano e revista, o professor e economista Gustavo Franco comparou a contribuição ao FGTS a um imposto, que se assemelha a um empréstimo compulsório com correção monetária parcial e propôs a criação de um “novo-FGTS” preconizando a redução da contribuição patronal para digamos 4%, mas com remuneração variável: o dinheiro seria transformado em cotas de novos fundos privados, dotado de portabilidade, ou seja, o titular poderia aplicar em qualquer outro fundo da espécie, se quisesse.

Não há, no artigo do ex-presidente do Banco Central do Brasil, qualquer justificativa aceitável para a incrível proposta de redução da contribuição patronal pela metade, para outorgar ao trabalhador o direito de aplicar seus recursos em qualquer outro fundo da espécie.

De outro lado, esse movimento abarrota o Congresso Nacional de projetos de lei com propostas de inclusão na lei de regência de novas e extravagantes hipóteses de saque do FGTS, de forma a despertar no trabalhador o desejo de pronta utilização dos recursos de sua conta vinculada, seguido do desencanto pela negativa e despropositada insurgência contra o fundo e seus gestores.

Com as bênçãos do mercado financeiro tramitam propostas para a liberação do FGTS por conta do casamento e do nascimento dos filhos dos trabalhadores. Um outro projeto de lei pretende reduzir de três para apenas um ano fora do regime do FGTS o prazo exigido para o levantamento do saldo da conta vinculada.

Atendendo aos interesses das administradoras de consórcios, que detêm ativos estimados em R$ 60 bilhões, está proposta a permissão para o pagamento parcial das prestações, a amortização extraordinária e a liquidação dos contratos de participação em grupo de consórcio para a aquisição da casa própria com recursos do FGTS.

Algumas entidades de assistência aos mutuários e entidades de trabalhadores defendem a liberação do FGTS para pagamento de prestações atrasadas de contrato imobiliário firmado no Sistema Financeiro de Habitação. A proposta não considera que, atualmente, somente atrasa os pagamentos o trabalhador com dificuldade estrutural para honrar o contrato firmado. Sem condições para efetuar o pagamento das prestações seguintes, não terá outros recursos do FGTS para o pagamento da dívida e não poderá evitar a execução do contrato e a retomada do imóvel.

Destacam-se ainda projetos de lei destinados à liberação do FGTS para pagamento de impostos federais, estaduais e municipais atrasados e para a aquisição de carro novo ao trabalhador que comprove ser proprietário de carro com mais de 20 anos de uso e que se comprometa a vendê-lo para desmanche. A poluição e os acidentes de trânsito provocados pelo mau funcionamento mecânico dos carros velhos justificam a proposta e a indústria automobilística agradece.

Outras propostas, ainda, preconizam a liberação para o tratamento de saúde do trabalhador e de sua família, para a aquisição de imóvel para os filhos e para outros parentes residentes em local diverso por motivo de doença ou estudo etc.

Além dessas propostas, muitas outras são apresentadas e defendidas por algumas entidades de trabalhadores de utilização do FGTS para aplicação no mercado financeiro — ações, fundos de investimento, previdência privada.

No entanto, a economista Maria Helena dos Santos Fernandes de Santana, presidente da Comissão de Valores Mobiliários, em entrevista ao jornal O Estado de Minas, em edição de 16 de março de 2008, declarou-se contrária a uma possível liberação de recursos do FGTS para financiar novas gerações de investidores em ações, afirmando que as ações da Vale e da Petrobras fizeram história de muito sucesso, mas podia ter sido diferente. E mais: o mercado de ações e renda variável tem riscos e o mais saudável é que as pessoas apliquem com os recursos que elas dispõem. Isso tem de ser feito na medida em que elas estiverem dispostas a correr esse risco. O investidor deve aplicar nesse mercado o dinheiro que ele pode arriscar, não com os recursos que ele pode necessitar se perder o emprego. Ele precisará fazer um resgate que vai obrigá-lo a sair daquele investimento talvez num momento ruim, estando vinculado a uma situação que determina a venda, pelas regras do Fundo.

Resta saber se interessa ao trabalhador essa movimentação toda em busca dos recursos do FGTS.

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    é advogado especialista em Direito Imobiliário, Urbanístico, Tributário, Comercial, Societário e do Consumidor e pós-graduando em Direito Registral e Notarial (IBEST) e Direito Urbanístico (PUC/MG). É Coordenador Jurídico de Contratos Habitacionais da Caixa Econômica Federal e editor do site Cartilha do FGTS.

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