Posição coerente

OAB segue sua tradição ao questionar Lei da Anistia

Autor

  • Cezar Britto

    é advogado do Cezar Britto & Advogados Associados ex-presidente e membro vitalício do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

13 de fevereiro de 2009, 11h38

A discussão em torno da revisão da Lei de Anistia, para dela excluir os que praticaram tortura a presos políticos sob a guarda do Estado — iniciativa que levou a OAB a ingressar no STF com Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental —, gerou, por parte dos que a ela se opõem, um equívoco: o de nos atribuir posição contraditória com a que tivemos no passado.

Essa acusação está expressa, por exemplo, em nota da Associação Nacional dos Procuradores de Estado (Anape), divulgada no dia 11 de fevereiro do corrente. Afirmo e reafirmo, no entanto, o inverso: nossa posição atual está em plena sintonia — ética e jurídica — com os conceitos emitidos no passado, na ocasião, em que o anteprojeto da Lei de Anistia (que, aprovada pelo Congresso Nacional, em 28.08.1979, ganhou o número 6.683) foi posta em discussão.

A OAB, então presidida por Eduardo Seabra Fagundes, manifestou-se, por meio de parecer de seu então vice-presidente, João Paulo Sepúlveda Pertence (firmado em 24 de julho de 1979), contrária a diversos dispositivos daquela lei. Um deles — e é o que aqui nos interessa: o parágrafo 2º, do artigo 1º do projeto, que excetuou "dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal."

Depois de considerar "equívoca a qualificação de terrorista" aos que pegaram em armas contra o regime — e mais ainda "para negar-lhes os efeitos da anistia proposta" (p.4, parágrafo 11) —, o Parecer de Pertence questionava exatamente o que hoje questionamos: não apenas a exclusão daquelas pessoas, mas, em sentido inverso, a absolvição dos torturadores, pela ampliação do "conceito de crime comum conexo a crimes políticos, para beneficiar com a anistia não apenas os delitos comuns de motivação política" (parágrafo 16), mas os que, a esse pretexto, foram perpetrados — mais especificamente os crimes de tortura. Veja-se o parágrafo 15 do Parecer: "Aliás, não é sem propósito indagar se não será a preocupação de anistiar as violências do regime o que explica que, do benefício, se tenham excluído apenas os já condenados pelos crimes de oposição violenta".

Ou seja, a anistia, que excluía os que pegaram em armas, incluía os que torturaram. Pertence, claro, criticou esse procedimento contraditório e indecente. Embora admitisse — na hipótese, não concretizada (frise-se!), de supressão do referido parágrafo 2º, do artigo 1º do projeto -, em nome do desarmamento dos espíritos, que a anistia abrangesse os que torturaram, esclarecia (parágrafo 19): "Não é preciso acentuar, de seu turno, que a extensão da anistia aos abusos da repressão terá efeitos meramente penais, não elidindo a responsabilidade civil do Estado, deles decorrentes".

Essa concessão, in extremis, vinculava-se, repita-se, a algo não ocorrido: a já mencionada supressão do parágrafo 2º, do artigo 1º da proposta de lei de anistia, que então era posta em discussão pelo Governo Figueiredo. Mas a lei foi aprovada com o referido artigo. Em resumo, enquanto a sociedade pedia "anistia ampla, geral e irrestrita", o Governo Figueiredo impunha uma anistia restrita. Se a Lei de Anistia, embora prevendo aquela exclusão, não a consumou, o que permitiu a volta de todos os punidos à vida pública, isso se deveu ao ambiente político que a redemocratização impôs.

O mérito é, portanto, da sociedade brasileira — não da Lei de Anistia. Foi a vontade política da sociedade brasileira que ensejou que o Congresso, na seqüência, reintegrasse os excluídos pela Lei de Anistia. E, assim como reintegrou os excluídos, por sua vontade soberana, a sociedade pode também agora, por releitura mais aprofundada do espírito daquela lei (e não por reforma da lei), excluir os torturadores de seus benefícios.

Basta entender — e isso nos parece meridiano — que os atos que praticaram configuram crimes de lesa-humanidade, e, nos termos da Constituição, insusceptíveis de graça ou indulto e imprescritíveis.

Não se relacionam, pois, com o combate político que então se travou, na medida em que praticados quando um lado dos que combatiam já estava detido e derrotado – portanto, fora de combate.

Cabia aos agentes do Estado zelar pela guarda e integridade física daqueles prisioneiros. Não o fazendo, como não o fizeram, incidiram em delito penal. E a Lei de Anistia não faz menção a esses casos, que se excluem da luta política que se travou — e se deram à margem dela. A lei abrange apenas os lados que combateram.

O que se pede hoje, portanto, não é a revisão ou a reforma da Lei de Anistia, mas o entendimento de que dela se beneficiaram equivocamente personagens aos quais ela não se referia. No caso, os agentes do Estado que torturaram ou promoveram a tortura, fora do campo de combate político. Esse o teor da Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental, que a OAB patrocina junto ao STF, tendo a seu lado os ministros da Justiça e dos Direitos Humanos, além de diversas outras organizações da sociedade civil brasileira.

Tudo isso, repito, está em sintonia com os fundamentos e a essência moral da OAB, não obstante o distanciamento no tempo e a circunstância conjuntural distinta que separam ambos os documentos. Com relação aos anos de chumbo da ditadura, a OAB, ontem e hoje, subscreve Ulysses Guimarães, ao sustentar que "a sociedade brasileira foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram".

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!