Razões da crise

Crise no Brasil não pode ser chamada de 'marolinha'

Autor

  • Luiz Roberto Kallas

    é consultor e professor nas áreas de Planejamento Estratégico Tecnologia da Informação e Mercado Financeiro no Brasil Estados Unidos Oriente Médio Uruguai e outros países. Foi professor em cursos de graduação e pós-graduação em Direito na Unip.

9 de fevereiro de 2009, 14h55

Para que o mundo consiga se desvencilhar dessa imensa crise que estamos vivendo torna-se necessário saber as razões de sua existência. Opiniões não faltam. Cada qual sugere uma solução e, na maioria das vezes, aproveita para tirar alguma vantagem.

Percebem-se claramente paixões e precipitações sem um sentido real, quando não um jogo meramente político para tirar vantagens. Existem até aqueles que opinam que a crise é apenas uma “marolinha” sem nenhum reflexo na vida dos cidadãos. Diz-se também que a culpa da crise é dos outros, cada qual se isentando de responsabilidade. A culpa da crise não foi apenas daqueles que faltaram com a ética e jogaram irresponsavelmente, mas também daqueles que tinham valores, autoridade e conhecimento, mas se esqueceram de usá-los correta e responsavelmente. No entanto, uma análise mais realista, mostra que estamos enfrentando algo monstruosamente perverso, com reflexo na capacidade do mundo produzir tudo aquilo que é necessário para uma vida mais tranqüila.

Nos últimos meses o desemprego atingiu cifras enormes. O caso brasileiro é sério. No mês de dezembro perdemos cerca de meio milhão de empregos, quantidade similar aquela ocorrida nos Estados Unidos. Se considerarmos que o PIB americano é dez vezes maior que o brasileiro, a perda no Brasil é muito mais grave, ao contrário do que dizem nossas autoridades. Analistas já prevêem que a recessão aqui será mais profunda do que aquela observada nos Estados Unidos. Vamos torcer e agir para que isso não ocorra.

O ditado popular afirma que o homem prevenido vale por dois. A sabedoria prescreve que desconhecer a capacidade do inimigo é receita certa para o fracasso. A ciência mostra que é necessário encontrarmos uma forma racional para se resolver o problema. Tudo isso indica que a necessidade de reconhecer as causas da crise é fator fundamental para o desenho de uma solução para o problema. E quais seriam elas?

Vejo, como especialista em mercado financeiro e observador do caldo cultural da humanidade, duas razões maiores para a crise, das quais decorre uma infinidade de pequenas causas. Uma de natureza factual e outra de natureza valorativa. Aquela de natureza factual implica em conhecermos o funcionamento das instituições financeiras, sobretudo as bancárias. As de natureza valorativa implicam na recuperação de padrões morais e da confiança das pessoas. Embora diferentes elas guardam uma influência mútua.

Um banco não empresta o seu dinheiro para o cliente, mas dinheiro captado no mercado — dinheiro de terceiros. Esse dinheiro , no entanto, não é real, mas virtual ou escritural. Ele não existe fisicamente, mas apenas na contabilidade bancária. Quando um banco capta recursos no mercado, imediatamente o empresta. Esse dinheiro volta rapidamente aos cofres do banco que de novo o empresta e assim sucessivamente.

O banco, assim, não tem dinheiro suficiente para pagar toda a sua captação e depósitos de clientes. Este é um fenômeno conhecido como expansão da moeda escritural. Ele multiplica a moeda disponível em uma economia. Este fenômeno pode ser chamado de alavancagem. Enquanto ela existir haverá dinheiro suficiente para atender, mesmo que precariamente, as necessidades do mercado. A alavancagem pode ser tanto positiva como de repente se tornar negativa. Basta para isso que algo de errado ocorra nas operações bancárias.

Houve um fato, entre outros — a crise imobiliária americana — que funcionava com uma imensa alavancagem e que de repente, em decorrência de uma análise mal feita, do perfil dos clientes tomadores de dinheiro, fez com que a alavancagem se transformasse de um dia para o outro de positiva para negativa.

Esse fenômeno repercutiu em outros bancos e produziu a deflação da moeda escritural, que se reduziu drasticamente. Faltou dinheiro no mercado em decorrência do que se costuma chamar de crise sistêmica. O volume de moeda passou a ser dividido e não multiplicado e como as economias são financiadas pela moeda escritural, provocou-se uma falta de recursos financeiros, que por sua vez redundou em uma retração econômica. A alavancagem é o que fazia a economia crescer a níveis superiores. Acabou a alavancagem e assim acabou o desenvolvimento. Simples de entender, porém difícil de controlar.

Neste ponto entra o outro fator, aquele que observa o mundo pelo lado valorativo e não apenas factual. A razão inicial para a perda de volumes de recursos no mercado foi factual: houve ineficiência nos controles sobre a disponibilidade e multiplicação de moeda pelos bancos. Porém ela ocorreu e se agrava em decorrência de princípios morais. Os bancos emprestaram a quem não poderiam emprestar e, portanto faltaram com a ética e em decorrência com a confiança do mercado.

A perda de confiança provocou naturalmente a fuga de capitais o que aumentou o nível de alavancagem negativa. O dinheiro sumiu. E pior, ele não está escondido debaixo dos colchões ou na caverna do Ali Baba e seus quarenta ladrões. Ele virou fumaça. Literalmente desapareceu, por que só existia virtualmente, na cabeça das pessoas.

Com o desaparecimento do dinheiro, somente governos podem fazê-lo voltar através da emissão de moeda e com isso o mundo volta à idade da pedra em termos financeiros e até políticos. Se o problema não for resolvido, a produção de bens e serviços por um longo tempo não será retomada e não voltará aos patamares anteriores. Alguns dizem: precisamos acabar com o mercado de derivativos que provocou toda essa confusão.

Se fizerem isso, nunca mais o mundo será o mesmo. A produção levaria séculos para voltar aos patamares anteriores. A crise perduraria até o final de nossas vidas. Porém seremos salvos pela natureza sábia e em algum momento tudo voltará ao normal naturalmente, porém o sacrifício será imenso. As crises são assim mesmo: começam e terminam apenas com pequenos avisos.

Nossa função como cidadãos é nos adiantarmos à natureza e de novo usar o mesmo mecanismo que provocou a crise, para sair dela. Serão mais uma vez necessários aqueles dois fatores fundamentais: um de fato e outro de valor. O mercado de derivativos, um dos causadores da crise, não pode ser extinto como pregam os incautos. Sem ele não existirá produção e é simples entender esse fenômeno.

Um fazendeiro que planta café usa o mercado de derivativos para se livrar das oscilações de preço no mercado. Se ele especular com o café, provavelmente vai perder. Então ele vende o seu risco para um especulador, preparado para tal, e isola o risco de perda e continua plantando café que é sua missão. Essa é uma operação denominada hedge ou proteção em português. Acontece que existiam produtores que não faziam hedge, mas especulavam. Isso é coisa de profissional e não de fazendeiro. Quem especulou perdeu.

Os especuladores não perderam, apenas pararam de operar e deixaram de ganhar dinheiro. Se acabarmos com eles acabaremos com a alavancagem e o mundo não reagirá. Daí uma grande parte de políticos e profissionais responsáveis dispostos a fazer algo virtuoso estarem propondo uma nova forma mais evoluída de regulação dos mercados. Tal regulação parte de princípios morais que se espraiam em processos bem concebidos de controle. Se junta a ética com a racionalidade. Esta foi exatamente a razão da crise e talvez a única forma conhecida de resolvê-la com o menor sacrifício possível. Viu-se aquilo que muitos professores de mercado financeiro ensinavam aos seus alunos em escolas: a necessidade de regulação dos mercados.

Não aquela regulação apaixonada e ideológica com objetivos não declarados ou declaráveis, mas uma regulação que observe valores culturais e racionais da humanidade. Algo como aquilo que Barack Obama está tentando fazer. Muito diferente daquilo que os políticos esperto estão também tentando fazer, não com o objetivo claro de resolver a crise, mas de se perpetuar no poder.

Creio que foi exposto muito pouco para se entender a crise e suas soluções, porém o objetivo deste artigo foi colocar uma visão do alto e mostrar apenas os atratores fundamentais do funcionamento de importante setor da sociedade. Tais idéias não representam nem 1% da solução, mas sem elas, creio que os restantes 99% de esforço serão inúteis. Sinto-me a vontade para afirmar o que foi exposto, pois fui dos primeiros a mostrar que uma crise estava chegando, já em princípios de 2007. Imaginava naquela época uma crise, mas não passava pela minha cabeça que seria desproporcionalmente grande, embora reconhecesse sua possibilidade. O pior aconteceu, mas no momento estou apostando no espírito humano e creio que com humildade, racionalidade e muito trabalho, será possível, sem soberba, resolvermos essa questão.

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