Segunda Leitura

Pactos não dizem que se presume inocência até último recurso

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

8 de fevereiro de 2009, 7h54

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O Supremo Tribunal Federal, no dia 5 de janeiro, julgando o HC 84.078-7, relator ministro Eros Grau, decidiu, por 7 votos a 4, que não pode haver prisão do réu por força de sentença ou acórdão, antes do trânsito em julgado, face ao princípio da presunção de não-culpabilidade (ou da inocência) previsto no artigo 5º, inc. LVII da Constituição Federal. O caso julgado diz respeito a uma tentativa de homicídio praticada em Minas Gerais, no qual o denunciado foi condenado pelo Tribunal de Justiça a cumprir 7 anos e 6 meses de prisão. Mas o que importa não é o caso e sim a interpretação dada pelo STF.

No sistema judicial brasileiro, a regra era o juiz de primeira instância ordenar a prisão do réu na sentença por crime inafiançável (CPP, artigo 393). Mas a condenação do Delegado Sérgio Fleury, na época do regime militar (1973), fez com que nova redação fosse dada à lei processual. Em boa hora, o direito de apelar em liberdade passou a ser a regra (requisitos: ser primário e de bons antecedentes), conforme artigo 594 do CPP (este dispositivo foi revogado pela Lei 11.719/08).

Nos tratados e nas cortes Internacionais sempre se repete que toda pessoa se presume inocente até prova de sua culpa em um tribunal. Neste sentido, a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948 (artigo XI), a Convenção Européia dos Direitos Humanos, 1950 (artigo 5, 1, “a”), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, de 1966 (artigo 14, 2), o Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8º, 2) e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 2002 (artigo 66, I). Mas em nenhum deles se afirma que esta presunção exige o esgotamento de todas as instâncias. Aí está o nó da questão.

Interpretando tais dispositivos, na realidade forense internacional a regra não é aguardar o esgotamento das instâncias. Nos Estados Unidos a liberdade é concedida mediante pagamento de fiança, sendo expressivas as quantias. Além disto, juízes e Tribunais de Apelação decretam a prisão como rotina, até porque a Suprema Corte não examina mais do que 100 casos por ano (o STF, em 2008, teve 66.873 processos distribuídos). Na Itália a Corte de Cassação recebe todos os recursos. Mas ela tem 356 juízes e, mesmo assim, os seus julgamentos demoram anos e geram constantes reclamações na Corte de Diretos Humanos.

No Brasil, após a Constituição de 1988, pouco a pouco os TJs e os TRFs passaram a ter posição casuística sobre a imediata execução da pena. Ora sim, ora não. O que antes era rotina passou a ser exceção. Com a condenação de pessoas de alto poder aquisitivo e a possibilidade de recurso especial ao STJ e extraordinário ao STF, ganhou corpo a discussão sobre a possibilidade de ser o acórdão de segunda instância executado antes dos recursos às Cortes Superiores.

E assim, após anos de indefinição, a recente decisão da nossa mais alta Corte concluiu ser inviável a execução da sentença antes do trânsito em julgado. O voto do relator, ministro Eros Grau, fundamentado na presunção de não-culpabilidade, com forte sustentação doutrinária, concluiu que ninguém deve ser tido por culpado até o esgotamento de todos os recursos. E se assim decidiu a maioria, esta orientação deve ser seguida doravante por todo o Poder Judiciário. Afinal, é o STF o intérprete da Constituição (Roma locuta, causa finita).

Portanto, encerrado o debate, cumpre analisar as conseqüências na prática judiciária. Para concentrar-se apenas nas 3 principais, é possível concluir que:

1) O STJ e o STF receberão um expressivo volume de recursos (somos 190.000.000 de habitantes), já que, além da esperança de reforma, os recorrentes utilizarão a possibilidade de prolongar o desfecho da ação penal e, muitas vezes, beneficiar-se da prescrição, inclusive pela pena aplicada (CP, artigo 110). As condenações a pena até 2 anos, que prescrevem em 4, terão grande possibilidade de prescrever (CP, artigo 109, V). Condenados menores de 21 e maiores de 70 anos, cuja prescrição conta-se pela metade (CP, artigo 115) terão possibilidade ainda maior, inclusive em crimes graves.

2) Os réus com advogados constituídos manejarão, com mais assiduidade, os recursos às Cortes Superiores. Para que se cumpra o princípio constitucional da solidariedade (Constituição, artigo 3º, I), cumpre possibilitar também aos economicamente fracos a interposição dos recursos especial e extraordinário. É preciso dar-se a estes a possibilidade real e não teórica de chegar até a última instância. Nesta linha, a OAB poderá orientar os advogados que atuam como dativos através de seminários de sua Escola (inclusive fornecendo formulários), sem prejuízo da atuação dos Defensores Públicos.

3) Face à hermenêutica constitucional dada ao artigo 5º, LVII, presumindo-se a não culpabilidade até a manifestação da mais alta instância, cumpre avaliar se persiste o cabimento do auto de prisão em flagrante e as outras formas de prisão provisória. À primeira vista, dir-se-á que sim, que são coisas distintas. Mas, se uma condenação fruto de dois julgamentos, examinada em grau de apelação (TJ/TRF e Turmas Recursais dos JECs), não pode ser executada, que sentido terá autuar-se alguém em flagrante? Com base apenas na apresentação do suspeito infrator na delegacia e sem o crivo do contraditório? Será, agora, o poder do Delegado maior do que o de três desembargadores?

Estas e outras tantas dúvidas e ponderações serão avaliadas nos próximos anos. Os resultados da nova interpretação não surgirão nas próximas semanas ou meses. Virão pouco a pouco, lentamente. Poderão ter reflexos até na política judiciária dos TJs e TRFs, alterando-se prioridades. O tempo dará as respostas.

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