Eficácia das garantias

Direitos fundamentais aplicam-se a relações privadas

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5 de fevereiro de 2009, 11h10

O direito constitucional contemporâneo tem reconhecido a expansão da eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas. Essa tendência — produção de efeitos não exclusivamente verticais (do particular frente ao Estado), mas também horizontais (entre particulares) — revela-se plenamente compatível com a Carta Política brasileira.

O tema eficácia horizontal ou vertical tem relevância fática e jurídica, mormente a identificar a quem são oponíveis os direitos fundamentais do indivíduo.

O Supremo Tribunal Federal analisou questão atinente à eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas proferindo decisão de vanguarda por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário 201.819-8[1].

Na hipótese, a União Brasileira de Compositores (UBC) interpôs recurso extraordinário visando à reforma do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que invalidou seu ato de exclusão de associado ao argumento de que a recorrente não teria respeitado o princípio constitucional da ampla defesa.[2] A recorrente justificou que, no caso, não se aplicaria o referido princípio já que não se tratava de órgão da administração pública.

A ministra Ellen Gracie, então relatora, acompanhada pelo ministro Carlos Velloso, deu provimento ao recurso sob a alegação de que as associações privadas possuem autonomia para elaboração de suas regras e, neste compasso, os indivíduos que nela ingressariam tinham de aderir a estas normas, ademais em se considerando o cumprimento do estatuto, não haveria se falar em anulação da exclusão do associado. Divergiu o ministro Gilmar Mendes, seguido pelos ministros Joaquim Barbosa e Celso de Mello, fundamentando sua decisão na teoria da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais às relações privadas.[3]

De fato, o constitucionalismo clássico abrangeria os direitos fundamentais como direitos subjetivos de defesa dos indivíduos exercidos contra o poder do Estado. Desta forma, incabível seria a evocação dos direitos fundamentais para a solução de um conflito entre particulares.

Entretanto, a conjuntura em que se originou o constitucionalismo foi alterada ao longo da história. Diante das crises econômicas e sociais do século XX, surgiu na doutrina fértil discussão sobre o tema, de cujo debate destacam-se três correntes (SARMENTO in MORAES, 2006).

A primeira rejeita a oponibilidade de direitos fundamentais entre entes privados, somente admitindo-a nas relações estabelecidas com o Poder Público. Só o Ente Público, portanto, estaria sujeito à vinculação das garantias fundamentais. Sua rigidez, entretanto, é mitigada ao aceitar como sujeito à observância dos direitos fundamentais igualmente o particular em exercício de atividade peculiar ao Estado, assim como outros que recebem do Estado subsídios e benefícios fomentadores de sua atividade.

A segunda corrente defende a aplicabilidade mediata ou indireta dos direitos essenciais, mas não permite a sua oponibilidade entre os particulares, ao fundamento de que esta provocaria um conflito entre os indivíduos que, dotados da mesma força jurígena, fariam valer seus direitos. Por tal motivo, admitir-se-ia a renúncia aos direitos essenciais por meio de contratos privados, o que se acreditaria ser um instrumento de validação do princípio da autonomia da vontade. Neste compasso, os direitos fundamentais entre particulares valeriam, apenas, mediante expressa previsão de norma ordinária de direito privado.

A terceira e majoritária corrente reconhece a oponibilidade aberta dos direitos fundamentais não só na relação individuo/Estado, mas também, na relação entre particulares, abraçando a chamada eficácia imediata (ou direta) dos direitos essenciais, tendo uma perspectiva dos direitos fundamentais de dimensão objetiva, exigindo do Estado uma conduta ativa de proteção a esses direitos.[4] O predicado mais relevante desta corrente é a falta de intermediação das normas de direito privado na interpretação das diretrizes constitucionais, cuja aplicação se dá prontamente, nos termos do disposto no parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição de 88.


Pela doutrina da eficácia direta ou imediata, cujos defensores primeiros foram Leisner e Nipperdey, a incidência dos direitos fundamentais nas relações entre entes privados deve ser direta, ao argumento de que, estando essas normas instituídas na Constituição, devem, pela força normativa da Constituição, ter aplicação em toda a ordem jurídica indistintamente. Considerando a Constituição como fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, não há motivos para a distinção na aplicação de suas normas no Direito Público e no Direito Privado.

Amparando-se dos dizeres de Paulo Bonavides, cumpre ressaltar que o papel da Nova Hermenêutica é o de viabilizar a concretização da norma permitindo a melhor solução para o caso.[5] Portanto, se o caso em análise demandar aplicação direta, nada impede que o intérprete o faça.

Foi esta a corrente adotada pelo Supremo Tribunal Federal que, na hipótese em exame, reconheceu a plena legitimidade da aplicação direta das garantias fundamentais da cláusula constitucional do due process of law no tocante ao processo de exclusão do associado da entidade de direito privado. Seguindo o raciocínio exposto pelo ministro Gilmar em seu voto, a insegurança jurídica citada pela recorrente não seria atributo exclusivo da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, mas sim uma questão a ser resolvida ou ao menos minorada pelo estudo da hermenêutica.[6]

O posicionamento adotado pela ministra Ellen Gracie encontra guarida na doutrina americana da state action[7] a qual nega a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, ou seja, não há a vinculação dos particulares pelos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição. Deste modo, os direitos fundamentais constantes na Constituição norte-americana (Bill of Rights) fixam limites somente para o Poder Público e não oferecem aos particulares direitos oponíveis a outros particulares (com exceção apenas da 13ª Emenda que proibiu a escravidão).[8]

Cita-se, como exemplo histórico da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, fato ocorrido na Corte Constitucional Alemã que, em 1958, julgou caso de grande repercussão conhecido como Lüth. O diretor Lüth invocou sua liberdade de expressão, direito fundamental, convidando o público alemão a boicotar filmes de um diretor nazista Veit Harlan.

Submetida a questão ao Judiciário, a Corte Constitucional decidiu que a legislação civil haveria de ser interpretada conforme a Constituição, exercendo um juízo de ponderação acerca dos valores envolvidos, determinando que, naquela hipótese, necessitaria imperar a liberdade de expressão, direito fundamental invocado por Lüth.

Percebe-se, portanto, a inquietação que o tema — eficácia horizontal dos direitos fundamentais — gera em diversas cortes e que há muito tem se refletido na jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, como resta claro de decisões que esta Suprema Corte citou por ocasião do julgamento pela incidência da garantia do devido processo legal na hipótese de exclusão de integrantes de associações e cooperativas.

De fato, o STF já havia apreciado a questão em outros processos, mas nunca se posicionado abertamente sobre o tema. No julgamento, o ministro Gilmar Mendes justifica a adoção da teoria da aplicabilidade direta pelo caráter público e geral da atividade. Os ministros Joaquim Barbosa e Celso de Mello que o acompanharam no voto, consideraram legítima a aplicação da teoria da aplicabilidade direta pelos mesmos motivos, reconhecendo que os direitos fundamentais projetam-se por igual numa perspectiva de ordem estritamente horizontal.

Nesta seara, pode-se concluir que a autonomia privada, cujas limitações encontram-se na ordem jurídica, não pode ser exercida com prejuízo aos direitos e garantias de outros entes, mormente aqueles positivados em sede constitucional, vez que a autonomia de vontade não adjudica aos indivíduos, no âmbito de seu encontro e desempenho, a faculdade de violar ou ignorar as restrições impostas pela Carta Política, cuja eficácia e força normativa igualmente se impõem, aos entes privados, no domínio de suas relações particulares, em sede de liberdades fundamentais.


Abalizando-se nos ensinamentos de Bobbio[9], pode-se afirmar que o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-los, e sim de protegê-los. Não se trata mais de saber quantos e quais são estes direitos, mas sim qual é o modo mais seguro de garanti-los.


[1] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 201.819/RJ: União Brasileira de Compositores UBC x Arthur Rodrigues Vilarinho. Relatora: Ministra Ellen Gracie. Relator para acórdão: Ministro Gilmar Mendes. Data de Julgamento: 11 de outubro de 2005. Acórdão publicado no DJ de 27 de outubro de 2006.

[2] Decisão obtida no site http://www.stf.gov.br/, “jurisprudência”, “inteiro teor”, acessado em 07 de janeiro de 2009.

[3] Idem.

[4] GONET BRANCO, Paulo Gustavo; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 265.

[5]BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 592.

[6] Idêntico raciocínio é estendido à questão da mitigação do princípio da autonomia da vontade. Esta decorre do critério de ponderação utilizado para resolver colisão de direitos. Realizada a ponderação entre o princípio fundamental invocado para proteger um dos particulares e o princípio do respeito à liberdade para prática de atos na esfera privada, autonomia, um deles deve ceder. No conflito de interesses, assim como ocorre em outros casos nos quais se aplica a ponderação, um dos princípios é restringido enquanto o outro prevalece, mas se harmonizam na ordem jurídica abstratamente considerada. Em alguns casos, um dos princípios chega a perder sua eficácia episódica, apenas no caso, sem que, com isto, seja reconhecida sua ineficácia perante o ordenamento jurídico.

[7] Ocorre que a partir dos anos 40, a Suprema Corte americana começou a demonstrar atenuações à doutrina do State Action em seus julgados e passou a adotar paulatinamente a chamada Public Function Theory (teoria da função pública), segundo a qual os particulares que agissem no exercício de atividade de natureza estatal, estariam também sujeitos aos direitos fundamentais constitucionalmente previstos. SARMENTO, Daniel. A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais no Direito Comparado e no Brasil. In A Nova Interpretação Constitucional – Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Organizador: Luís Roberto Barroso. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006l. cit. p. 201; e PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, cit. op. p. 175/176.

[8] SARMENTO, Daniel. cit. p. 198/199; e PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. cit. p. 169.

[9]BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.25.

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