Justiça e verdade

Juiz que diz confiar na Justiça como instituição mente

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2 de fevereiro de 2009, 14h45

Uma brilhante ministra do Superior Tribunal de Justiça veio a público defender o resgate da respeitabilidade do juiz de primeiro grau como forma de garantia da efetividade da prestação da Justiça no país. Ela dispara: "Enquanto o juiz de primeiro grau não for devidamente respeitado em suas decisões e suas decisões forem sempre reformadas, muitas vezes até sem fundamento, nós teremos mais um fator de inchaço para a Justiça." (Revista Consultor Jurídico, 14/01/2009).

De acordo com a ministra, o passo inicial para essa respeitabilidade passa exatamente pela Escola Nacional de Magistratura, que dará aos magistrados o arcabouço necessário à sua formação e, a partir daí, as instâncias superiores poderão exigir do juiz de primeiro grau uma prestação jurisdicional mais efetiva e, com isso, a respeitabilidade dos próprios tribunais.

Discurso sonoro aos ouvidos dos incautos, mas, afinal, quem se impressiona? Se hoje o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), numa espécie de censura prévia, chega ao requinte de recomendar aos demais juízes que evitem mencionar em suas sentenças os nomes, ainda que de fantasia, das operações da Polícia Federal, como é que se pode falar em independência?

De outro ponto, atuando hipossuficientemente, nega-se a exercitar a própria competência constitucional inscrita no parágrafo 4º, do artigo 103-B, em relação ao Supremo Tribunal Federal que é órgão do Poder Judiciário, submetido como um todo ao seu controle administrativo e financeiro, assim como o atendimento aos deveres funcionais dos juízes, ministros e desembargadores, provendo-lhes a legalidade dos seus atos que não sejam propriamente jurisdicionais. E também em algumas matérias relativas à Justiça Federal, sob o argumento de evitar sobreposição em relação ao Conselho da Justiça Federal.

O resultado desse quadro é que em determinados casos geram-se estados de completa anomia, posto que nem se controla administrativamente uma matéria e nem esta é enfrentada judicialmente pelas razões clássicas ou não tão clássicas da morosidade na Administração da Justiça. Exemplo claro desse expediente é o que se refere à estranha pendência quanto à suposta inaplicabilidade do artigo 93, inc. II, alínea "b", da Constituição, às promoções na carreira da Magistratura Federal comum, ora porque o Supremo não decide pela atuação de seu Plenário, ora porque o CNJ diz que não pode decidir em face disso.

Foi a mesma ministra que, corajosamente, disse na TV Senado que só estava ali graças à interferência de Antônio Carlos Magalhães, à época que o falecido senador mandava e desmandava no Brasil, quem não se lembra? Quando até se lançou à bravata quixotesca e seletiva, dirigida ao próprio Poder Judiciário, mediante a instalação de uma histriônica Comissão Parlamentar de Inquérito que levou muita gente na conversa, nós inclusive – pensamos que seria para valer, e não com o intuito de pilhar meia dúzia de bodes expiatórios.

De fato, a ministra tem umas posições de vanguarda, o que é bom, mas, lamentavelmente, fica nisso. Aliás, não estaria onde está se fosse além. O sistema não lhe permite que materialize suas idéias, se sinceras forem, e não duvidamos que o sejam. Ir além poderia lhe custar o cargo, ou uma enfermidade medonha que causaria o seu afastamento do mesmo modo, haja vista a força das pressões corporativas que haveria de sofrer.

Então, resta-lhe um papel de oxigenadora do próprio sistema, interessante a este que, assim, se apresenta como "modernoso", fleumático, suscetível aos clamores sociais e de justiça sem ter de mudar um grau sequer o seu clássico equilíbrio corporativo que acumula privilégios e prepotências nas mãos das cúpulas — que o jurista Dalmo Dallari, em O poder dos juízes, classifica como o foco de quase todas as mazelas do Poder Judiciário brasileiro — e de seus sucessores, forjados exatamente para dar continuidade ao regime.

Nada obstante, nós ainda nos reservamos o direito a alimentar nossas dúvidas sobre se a ministra estaria realmente disposta a fazer o que diz, ou seja, respeitar a "juizada" do primeiro grau, quando é certa a consciência de que pouquíssimos apenas guardam a independência mais profunda, o autorrespeito, a competência em forma de educação continuada (que não depende de escolas de magistratura, por serem expedientes autárquicos e privilegiadores de alguns e cabide de empregos de outros) e nenhum temor reverencial. Como se pode deduzir, nenhuma escola é por si mesma arcabouço de excelência na arte de julgar. Elas não excluem as misérias humanas de que também são revestidos os juízes e nem tampouco por elas passarão os dignitários da Justiça brasileira, condutores de uma cultura primitiva ainda presente entre nós. A respeitabilidade dos juízes do primeiro grau é, portanto, diretamente proporcional às grandes barreiras comportamentais que contaminam a vida institucional brasileira como um todo e, nesse todo, também a justiça nacional: ignorância extrema, autopromoção e corrupção endêmica. Não há como lutar contra uma alquimia tão explosiva quanto esta: burrice, vaidade e corrupção, juntas.

Por isso, não guardamos alento. O que ouvimos foram apenas palavras sem maior repercussão na vida prática. Tudo continua como sempre esteve e nada sugere que vá mudar. Na Justiça brasileira, como instituição, nós não confiamos. Aliás, o juiz que disser o contrário, mente. A confiança na Justiça é, no país, uma relação estritamente subjetiva que depende superlativamente do ator que exercerá esse papel, e não de sua estrutura funcional, vinculada a outros interesses quase sempre ativados em divergência ao direito posto.

São subsistemas que afetam na prática o sistema jurídico e oprimem a cidadania de forma disfarçada, restando o simbolismo do processo. Quando a Justiça se realiza, nesse contexto, é por acaso, como um simples acidente de percurso ou manifestação milagrosa sempre possível a quem tem fé. Isso é dito e explicado em Justiça acidental nos bastidores do Poder Judiciário (Editora Fabris, Porto Alegre, 1996).

No direito brasileiro, profissionais bem sucedidos são lobistas, e não juristas de formação genuína, que vivem, em geral, muito modestamente. Que o digam, mesmo em sua intimidade mais profunda, os políticos, os "bicheiros", os donos do capital, os juízes das cortes brasileiras e aqueles que, ainda não estando nelas, esmeram-se, parasitários, na arte de adular. Inclusive certas associações de classe de magistrados, cuja tônica é alavancar seus diretivos aos tribunais no rastro de uma infeliz e permanente crise de representatividade. É triste o país que nós temos.

 

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