Desafios do século

O discurso de Obama e os direitos humanos

Autor

  • César Augusto Baldi

    é mestre em Direito pela ULBRA-RS doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre) desde 1989.

29 de dezembro de 2009, 6h04

Por uma das incríveis coincidências de efemérides, os prêmios Nobel, em especial o da Paz, são entregues no dia 10 de dezembro de cada ano, que é a data do falecimento de Alfred Nobel e também da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tendo o primeiro prêmio não se restringido a esforços humanitários e movimentos pacifistas, veio a incluir, também, ativistas de direitos humanos, controle de armas e mediação de conflitos internacionais. É, pois, uma dupla ocasião para analisar os rumos, conquistas e desafios na área de direitos humanos.

Neste último ano, Barack Obama foi o laureado: não foi nem o primeiro presidente dos Estados Unidos a receber o prêmio (antes, Wodrow Wilson, em 1919, e Jimmy Carter, em 2002), nem o primeiro negro (Desmond Tutu, em 1984, e Nelson Mandela, em 1993, são outros distinguidos), mas causou impacto a afirmação da Fundação de que o prêmio era entregue “por seus extraordinários esforços para fortalecer a diplomacia internacional e a cooperação entre os povos”. Em seu discurso, aliás, não deixou de reconhecer a polêmica que cercou a nomeação, em especial por se tratar de um presidente (“comandante em chefe”, diz o texto) envolvido em duas guerras (Afeganistão e Iraque). As fundamentações e também seus silêncios são interessantes para repensar outras questões de direitos humanos.

Destaquem-se de seu longo discurso, alguns pontos.

Primeiro, o discurso, significativamente, menciona 27 vezes a palavra “paz”, ao passo que “guerra” é citada em 44 ocasiões (incluindo-se “guerra fria” e “segunda guerra mundial”), “violência” em 6, “não-violência” apenas 2 e “sofrimento”, três menções.

Segundo, a “guerra justa” é justificada no discurso como aquela de autodefesa, uso proporcional da força e com poucos danos a civis, “raramente observada”, esquecendo que a invasão do Iraque não obedecia a qualquer dos parâmetros mencionados, sequer tinha respaldo da comunidade internacional.

Terceiro, “os instrumentos de guerra tem um importante papel para preservar a paz”, num mundo em que “muito mais civis são mortos que soldados”, mas em que nenhuma “guerra santa” pode ser tida como “guerra justa” (ignorando as justificativas de cunho cristão dadas por Bush para o “contraataque” após queda das Torres Gêmeas).

Quarto, ainda que reconhecendo erros, “o plano dos fatos é este: os Estados Unidos têm ajudado a reforçar a segurança global por mais de seis décadas com o sangue de seus cidadãos e a força de suas armas”, esquecendo, ao mesmo tempo, o apoio dado a todos os golpes latinoamericanos, talibãs e a outros regimes autocráticos ou repressores, tais como Egito, Arábia Saudita, Iraque de Saddam Hussein, contras na Nicarágua, chefes de guerra e Karzai no Afeganistão.

Quarto, a própria seleção dos países violadores de direitos humanos é reveladora: Myanmar, Coréia do Norte, Congo, Sudão, Irã, Zimbábue; o conflito Israel-Palestina é mencionado “en passant” e sequer alerta-se para a lista dos países que já detém a tecnologia nuclear, mesmo em violação a tratados internacionais.

Quinto, a justificativa da força é realçada pelo exemplo mais ligado à Europa: “Um movimento não-violento não teria detido as armas de Hitler” (argumento similar dado por Blair para invasão do Iraque, que teria “armas de destruição em massa”), ao mesmo tempo em que para “confrontar um adversário vicioso que não obedece regras”, os Estados Unidos devem ser um ‘standard’ na condução da guerra (“isto é o que nos faz diferentes daqueles contra os quais lutamos”).

Sexto, a América sempre será “uma voz para aquelas aspirações que são universais”. A insistência no multilateralismo e na diplomacia não impede o reconhecimento da dificuldade da tarefa: “pressão e incentivos, e assim direitos humanos e dignidade tem avançado no tempo”, e que a “religião tem sido usada para justificar a morte de inocentes”. Daí porque a não-violência pregada por Gandhi e King nem seja sempre possível, mas a “fé no progresso humano”, presente no pensamento de ambos, deve ser o norte para guiar “a nossa jornada”.


Ao estabelecer tais parâmetros, contudo, o que se tem é uma visão de “direitos humanos de baixa intensidade”, de cunho marcadamente ocidental, colonial e pouco aberta a outras cosmovisões. Primeiro, porque, mesmo ao realçar que a paz não é “meramente a ausência de conflito visível”, mas baseada em “direitos inerentes e dignidade de todo indivíduo”, obscurece a própria luta de Gandhi e de Luther King, bem como os movimentos budistas asiáticos, que tem ressaltado que “a não-violência é uma efetiva e poderosa resposta aos conflitos”, porque a “paz é pró-ativa, um movimento compreensivo de procurar um terreno através da comunicação aberta e de colocar em prática uma filosofia de não-dano e de recursos compartilhados”. Aliás, Sulak Sivaraksa, da Tailândia, salienta a necessidade de “superar o pensamento dualístico que divide o mundo em bem e mal, amigo e inimigo”, base da violência: quando se vê o outro como inimigo, não há espaço para pensá-lo como “ser humano”. (1)

Segundo, porque oculta que na raiz de vários movimentos não-violentos encontra-se um substrato religioso e, pois, que as lutas por direitos humanos não são necessariamente veiculadas na usual versão “secular”: mesmo em Gandhi e King. Aliás, a própria referência a Aung Sang Suu Kyi, de Myanmar, também ganhadora do Nobel da Paz, não faz referência que toda sua luta se baseou na cosmovisão budista. Como salienta Farish Noor, da Malásia, o caso de Myanmar demonstra que o budismo “não pode ser simplesmente reduzido ao estereótipo de uma religião mística ou um modo de vida que prega o isolamento e afastamento em relação ao mundo”, mas deve ser visto pelo lado de um “discurso de ativismo social e político, e como isto pode servir também aos fins da democracia e da libertação”. (2)

Terceiro, porque recupera o discurso de civilização e do “excepcionalismo” dos EUA (doutrina do “destino manifesto”), ressaltando o seu caráter colonial: não à toa a “América” (ocultando a própria diversidade sóciocultural de “Nuestra América”, para usar a expressão de Martí) deve servir de parâmetro para as lutas por direitos humanos. A tortura, as invasões, o apoio a golpes são sempre ou exceções ao comportamento de nações civilizadas ou são realizadas a favor de direitos humanos e democracia. Não é por outro motivo a afirmação — historicamente errônea — de que “América nunca lutou uma guerra contra a democracia e os nossos amigos mais próximos são governos que protegem os direitos de seus cidadãos”.

Quarto, porque, apesar de Obama reconhecer que estava recebendo o prêmio “como direta consequência do trabalho do “Dr. King”, em nenhum momento é mencionada a luta por direitos civis, nem o passado colonial de escravidão, sequer a persistência da discriminação contra negros. Ou seja, o primeiro presidente negro dos EUA, paradoxalmente, invisibilizou — com sua presença — o racismo existente no sistema internacional: o que tampouco é novidade, quando se verifica que ativamente boicotou a 2ª Conferência Mundial da ONU sobre Racismo, em abril deste ano. Aliás, um racismo que a própria Conferência de Durban, em 2001, havia reconhecido como abrangendo antisemitismo, islamofobia, negrofobia e discriminações correlatas. Não soa, pois, despropositado que Evo Morales tenha salientado, dias depois do prêmio, que “o negro está sendo o melhor aluno do branco Bush”.

Quinto, porque, além de “sexualmente neutra” a concepção veiculada no discurso (esquecendo, inclusive, que mulheres e também crianças são as maiores vítimas de conflitos bélicos), ignora a diversidade de cosmologias existentes no mundo. Em especial, aquelas que mais foram suprimidas com o sistema mundo colonial: 1492, ano da “invenção da América”, marca, simultaneamente, o genocídio de índios e também a expulsão dos mouros. O Islã é apenas referido como “a grande religião”, para, em seguida, criticar-se a “guerra santa” (ignorando toda a discussão de Jihad no campo epistêmico islâmico); os indígenas sequer são mencionados como portadores de conhecimentos, cosmovisões e narrativas de direitos humanos.


Aqui, pois, se verifica que, passados mais de sessenta anos da “Declaração Universal”, o aparente consenso em relação aos direitos humanos esconde, em realidade, o fato de que eles constituem um campo de lutas e de contestações, também discursivas, em que “competem pressupostos e visões de mundo distintos sobre gênero, diferença, cultura e subjetividade” (3)

O discurso de Obama parece, pois, colocar aos direitos humanos outros desafios além dos declarados.

Primeiro, há que descolonizar o presente e o futuro dos direitos humanos, naquele sentido de Kwasi Wiredu (4) : a) de um ponto de vista negativo, evitando ou revertendo a assimilação acrítica do quadro conceitual do pensamento ocidental para a realidade local (africana, asiática, americana, etc); b) de um ponto de vista positivo, explorar os recursos dos esquemas conceituais endógenos em suas meditações filosóficas ou problemas técnicos contemporâneos. A luta por justiça cognitiva é a outra face da luta por justiça social, como vem sustentando Boaventura Santos.

Dois exemplos, vindos do mundo islâmico, são particularmente interessantes. Abdullahi An-na’im, de origem sudanesa, destaca, por exemplo, ao falar sobre o fato de quando se trata de direitos humanos, liberdade de pensamento e racionalidade, citar-se, obrigatoriamente, Kant. Por que sustenta “não posso, como muçulmano, citar Ibn Rushd, que disse e escreveu as mesmas coisas centenas de anos antes de Kant?” Era seria a forma de não se forçar “a discutir o significado de direitos humanos em termos que não são, necessariamente, locais ou que não nos são “próprios” (5). O segundo exemplo é salientado por Asma Barlas, de origem paquistanesa, respondendo à crítica de que sua definição de “agência moral” no Islã como sendo “voluntária submissão a Deus” era algo paradoxal e “socialmente irresponsável”: (6)

“o paradoxo é facilmente resolvido: as ideias ocidentais de contrato social, aquela fábula imaginária, não assumem que o povo, voluntariamente, aceita certos limites e restrições como pré-condições à liberdade? Esta concessão não envolve submissão a Deus, mas também invoca a mesma “bizarra” ideia de autorestrição, autolimitações, e autodisciplina que os islâmicos também invocam quando teorizam agência e liberdade como voluntária submissão”

Segundo, reconhecer a impossibilidade de uma teoria geral universalizante para os direitos humanos. As gramáticas de lutas são sempre parciais. Aqui, deve-se ter em conta duas intuições de Nicolau de Cusa. A primeira, a concepção de “douta ignorância”, “aquela que sabe que ignora e o que ignora”: “o saber que ignora é o saber que ignora os outros saberes que com ele partilham a tarefa infinita de dar conta das experiências do mundo”. Ser douto ignorante, no século XXI, “é saber que a diversidade epistemológica do mundo é potencialmente infinita e que cada saber só muito limitadamente tem conhecimento dela” (7) A segunda, quando estabelece o princípio que denomina “teologia negativa”, para o qual “as negações são verdadeiras e as afirmações são insuficientes” (8). Não há como abarcar a pluralidade de formas de sofrimento que dão origem aos direitos humanos: as afirmações de sua totalidade serão, pois, sempre insuficientes. Da mesma forma que a expressão “direitos do homem e do cidadão” é muito reduzida para dar conta dos “direitos humanos”, talvez uma visão intercultural de direitos humanos implique utilizar um novo léxico e, portanto, abandonar a atual nomenclatura ou mesmo criar novas denominações.

Terceiro, a constatação de que os processos de inclusão engendram novos processos de exclusão, por meio de normalizações. O contrato social originário incluía homens, brancos, cristãos, heterossexuais, ocidentais. E o “normal” não é visto como particular, étnico, sexuado ou religioso. Não é a toa que se chamam os negros de “pessoas de cor” ou que se insista na religiosidade obscura dos islâmicos, se hipersexualizem mulheres e homossexuais ou que a Declaração da Revolução Francesa fale em “homem” e “cidadão”. Estas “minorias” têm origem iluminista: afinal, menoridade é “a incapacidade de chegar à compreensão sem orientação de outro”.


Neste sentido é que foram tratados, dentre outros, as mulheres (no Brasil, pelo menos até o Estatuto da Mulher Casada, em 1962), as crianças (observe-se que a Convenção de 1959, revogada pela de 1990, estabelecia direitos aos pais, não às crianças), a natureza (a Constituição do Equador é a primeira que estabelece que a natureza tem direito (9)) e os indígenas (os artigos 1.1 e 1.2 da Convenção 107-OIT, revogada pela 169, falavam em povos “próximos a perder suas características tribais” e “ainda não integrados” à coletividade nacional).

Por sua vez, de um lado, a inclusão de mulheres obscureceu a “heterossexualidade compulsória” e, pois, lésbicas e gays. Da mesma forma que as demandas, hoje em dia, por casamento homossexual invisibilizam outras formas de sociabilidade homoafetiva que não passam, necessariamente, pela normalização do “casamento”. Como afirma Veiga-Neto, “a norma, ao mesmo tempo em que procura tirar, da exterioridade selvagem, os perigosos, os desconhecidos, os bizarros- capturando-os e tornando inteligíveis, familiares, acessíveis, controláveis- ela permite enquadrá-los a uma distância segura a ponto que eles não se incorporem ao mesmo.” (10) Daí porque a aparência de “discriminação positiva”, em favor de indígenas, negros, mulheres e outras “minorias” (e, aqui, o eco de “menoridade”), por meio do reconhecimento de seu próprio direito, leva encoberta a persistência de uma profunda discriminação contra eles. (11) Ou dito de outra forma: não deixa de ser paradoxal que justamente “aqueles que se consideram normais procurem, em nome da igualdade, apagar as marcas de culturas de que eles mesmos (indiretamente) participaram e participam como condição de possibilidade, seja na sua origem, seja no seu funcionamento.” (12)

Quarto, porque a discussão do humano tem, no pensamento ocidental, um componente curioso: o “ser humano”, nas línguas ocidentais, é designado pelas palavras human ou humanity (inglês) ou mesmo humanité ( francês), de origens latinas, e pela anthropos, de origem grega. Segundo Nishitani Osamu (13), existiu sempre uma assimetria entre ambas, de tal forma que anthropos é sempre objeto de conhecimento, e humanitas, sujeito: assim, as variedades de espécies humanas não-ocidentais se tornaram objeto de estudo referido como anthropos e, desta forma, a antropologia não dizia respeito a ocidentais em muitos casos, exceto se associados à antiguidade, o período em que o Ocidente ainda não era Ocidente.

Isto implica, também:

a) ser necessário criar um complexo campo de interação no qual humanos e máquinas inteligentes (seja por inteligência artificial, seja por artificiais formas de vida) mutuamente constituem uns aos outros, e, portanto, “as lógicas e linguagens de direitos humanos deveriam também reconceptualizar o direito à ‘vida’ em termos de direitos às diversas formas de vida que se co-envolvem” (14);
b) que o significado de “humano” é constantemente negociado e, desta forma, indeterminado, o que faz com que se tornem possível “novas revisitações dos direitos humanos contemporâneos, porque o pós-humano, assim, requer a reiteração da co-evolução de humanos e outras formas de vida” (15);
c) substituir uma “política de direitos humanos” (aquela que trata as lógicas e linguagens dos direitos humanos como um conjunto de meios para legitimação para governos e dominações) por uma “política para direitos humanos”, que abra o escopo de práticas e leituras de versões plurais de direitos humanos, renovando suas energias e sinergias (16);
d) reconhecer que as sucessivas declarações da Unesco (Declaração de Responsabilidade das gerações presentes em relação às futuras, em 1997; Declaração Universal da Bioética e Direitos Humanos, 2005; Declaração Universal do Genoma Humano, de 1997) acabam por reconhecer não somente direitos individuais e coletivos, mas de “espécies coletivas” (inclusive planetárias), o que talvez possa corresponder a que “os direitos humanos tal como nós os conhecemos podem, em breve, constituir ‘lembranças de coisas do passado’” (17)

Quinto, reconhecer a diversidade das práticas sociais eficazes e libertadoras (a “artesania das práticas”), que se dá “a partir da interpelação cruzada dos limites e das possibilidades de cada um dos saberes em presença”. (18) A preocupação com a preservação da biodiversidade pode implicar uma associação de saberes práticos da ciência e dos conhecimentos indígenas e negros. A preocupação com a luta contra a discriminação pode implicar a mobilização de energia de feministas, antiracistas, indígenas, afrodescendentes, movimentos LGBT, etc. A dimensão espiritual da transformação social, por exemplo, mobilizou as energias dos monges budistas no Myanmar contra a ditadura daquele país, da mesma forma que reativa a insurgência das mulheres islâmicas — em parceria com feministas seculares — na luta contra o patriarcado.

Necessária, portanto, a construção de novas solidariedades interculturais e críticas, outras formas de ações sociais, criando espaços dihliz, expressão que vem do persa, significando o “espaço intermediário entre a casa propriamente dita e o perímetro interior da morada”, um espaço, portanto, simultaneamente, dentro e fora, intersticial, que permite acessar “mais de uma cultura e experiência, porque sua meta é buscar paradigmas transicionais de conhecimento.” (19)

O alargamento das concepções de direitos humanos vai implicar a utilização de novos léxicos, de distintas origens culturais (náuatl, mandarim, árabe, guarani, quéchua, etc), de forma a que “línguas de cultura” sejam vistas como “língua de conhecimento”, descolonizando também a linguagem. Mais que isto: boa parte das experiências mais ousadas no constitucionalismo e na práxis política tem sido desenvolvidas fora do eixo eurocentrado. Relembrem-se os diversos orçamentos participativos (depois transplantados para a Europa), as distintas autonomias nacionais bolivianas, a cooficialidade de idiomas indígenas num mesmo país, a previsão de descolonização do ensino (Bolívia), revogação de mandatos, as Comissões de Verdade e Justiça (África do Sul, Peru, etc), noções indígenas incorporadas na teoria constitucional (Equador, Bolívia, Colômbia), reconhecimento de “jurisdição indígena”. Em suma, o reconhecimento da demodiversidade (diferentes instituições com distintos graus democráticos), da sociodiversidade (distintos grupos sociais) e da cosmodiversidade (diferentes cosmologias).

Sexto, a necessidade de rediscussão da relação sagrado/profano, que se encontra na gênese dos direitos humanos. O secularismo tem sido visto como um processo de progressiva “privatização” de determinadas questões — família, religião — delimitando-se um espaço público e cívico. Neste, contudo, a religião não está incluída, porque o seu destino é resignar-se ao “espaço privado”. Ocorre que o próprio feminismo já colocara, na agenda, seja pela violência doméstica, seja pelo patriarcalismo, a politização da esfera privada, um espaço político que foi ampliado com os movimentos de gays, lésbicas, transgêneros e todas as teorias “queer”. O questionamento, contudo, tinha o limite da presunção de que as lutas somente poderiam ser secularizadas. Ficaram mantidas, incólumes, opressões estabilizadas por discursos “religiosos”.

Como relembram Saba Mahmood e Talal Asad (20), secularismo tem uma dimensão “normativa”: não se destina tanto à separação Estado e religião, nem em garantir a liberdade religiosa, mas na forma de subjetividade que a cultura secular autoriza, as formas religiosas que resgata, e a forma peculiar de história e tradição histórica que receita. Este “aspecto normativo” é que faz diferentes também as percepções na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França, na Turquia: em realidade, a dimensão religiosa não é indiferente ao Estado, pois é ele quem determina, pela visão secular, “como” e “quando” a afiliação religiosa pode e deve ser expressa na vida pública (daí a questão do véu, das festividades religiosas, das datas da Pátria, etc). (21)

Sétimo, porque uma política da alta intensidade de direitos humanos deve procurar “dar voz ao sofrimento humano, torná-lo visível e reduzi-lo”, trabalhando tanto com a política de representação do sofrimento, mas também contestando o poder de “nomear as vozes”, construindo modos para prevenir a “repressão desnecessária e o sofrimento humano além de limites”, deslegitimando “todas as formas de políticas de crueldade”, sem ferir o “direito humano de interpretar os direitos humanos” (22). É o que Rita Segato vem destacando como o “direito de nomear o sofrimento”, como na expansão de “genocídio” para o extermínio de grupos confessionais por parte de regimes ditatoriais na América Latina, ao extermínio colonial e à realidade (silenciada) do número de mortes de jovens negros brasileiros entre 18 e 25 anos ou na luta por elevar o “feminicídio” à categoria jurídica de “genocídio de mulheres”. (23)

Oitavo, é necessária a produção de “imagens desestabilizadoras”, capazes de “restituir a capacidade de espanto e indignação”. Serão mais desestabilizadoras na “medida em que tudo depende de nós e tudo podia ser diferente e melhor”, mas fundamentalmente enquanto conseguirem deslegitimar as sucessivas produções de “ausência” ou “inexistência” (o ignorante, o resíduo, o local, o improdutivo e o inferior). Serão, por sua vez, eficazes se forem “amplamente partilhadas” (24). Se a “invenção” da América se dá, simultaneamente, à expulsão de mouros e judeus da Península Ibérica e ao genocídio dos índios, duas imagens seriam particularmente interessantes, a partir das memórias que foram “silenciadas” ou “suprimidas” com o advento da Modernidade. A primeira, vinda da tradição muçulmana, é aquela do mapa tal como formulado por Al-Idrisi no século XII, que tinha o sul na parte de cima, e o norte, abaixo. A configuração, portanto, de que o mundo está ao revés. A segunda, provinda da cosmologia aimará, nos Andes. Nela, o que é conhecido é o que se vê e, portanto, está à nossa frente. Como o futuro é desconhecido e não pode ser visto, ele está atrás de nós. O passado, assim, está à nossa frente.

Do que se trata, ao final, é de redimensionar a teoria e prática dos direitos humanos, nos seus tradicionais termos de universalidade e interdependência. E, neste sentido, as experiências das ex-colônias ou do “Sul” tem sido mais inovadoras, ousadas e críticas do que das antigas metrópoles. Wangari Maathai e Shirin Ebadi, também ganhadoras do Prêmio Nobel, já tinham demonstrado visões não-hegemônicas das relações entre direitos humanos, religião, paz e meio ambiente. Pena que a Fundação Nobel tenha optado, nesta última versão, por mais uma das versões imperiais, coloniais e de “baixa intensidade”. Resta esperar que em anos vindouros, por exemplo, o trabalho de pessoas e organizações tais como “Sisters in Islam” (Malásia), Chandra Muzaffar (Malásia), Sulak Sivaraksa (Tailândia), Ahmet Davutoglu (Turquia), Upendra Baxi (Índia), Asma Barlas (Paquistão), Vandana Shiva (Índia) ou mesmo as lutas do povo mapuche, dos guaranis, dos quilombolas/palenqueros, dos monges de Myanmar ou dos dalits sejam lembradas e laureadas. Talvez, neste caso, voltemos a ser brindados com visões plurais, interculturais e não-eurocentradas de direitos humanos, que mostrem que a concepção ocidental de direitos humanos é não somente uma concepção limitada do mundo, mas também de si própria. E que repensar os direitos humanos talvez seja colocar o mundo ao revés ou ter o passado à nossa frente.

Referências:
1. SIVARAKSA, Sulak. A buddhist reponse to 9/11/01. IN: YUK, Ip Hong. Trans Thai Buddhism & Envisioning resistance: the engaged Buddhism of Sulak Sivaraksa. Bangkok, Suksit Siam, 2004, p. 55-56.
2. 
NOOR, Farish A. The Other Malaysia: writings on Malaysia’s subaltern history. Kuala Lumpur: Silverfishboks, 2002, p. 290. Para uma discussão específica dos fundamentos da luta por direitos humanos em Myanmar, vide: BALDI, César Augusto. As lições de Myanmar. Revista Cult On-Line, 6 nov. 2007.
3. KAPUR, Ratna. Revisioning the role of law in women’s human rights. IN: MECKLED-GARCÍA & ÇALI, Basak. The legalization of human right: multidisciplinary perspectives on human rights and human rights law. London- New York: Routledge, 2006, p. 102.
4. WIREDU, Kwasi. Cultural universals and particulars; an African perspective. Indianapolis: Indiana University, 1996, p. 136.
5.
AN-NA’IM, Abdullahi. Muslim must realize that there is nothing magical about the concept of human rights. IN: NOOR, Farish. New voices of Islam. Netherlands: ISIM, 2002, p. 11.
6.
BARLAS, Asma. Muslim women & sexual oppression: reading liberation from the Quran.
7. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Ocidente não-ocidentalista? A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. IN: SANTOS, Boaventura de Sousa & MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina/CES, 2009, p. 467.
8. CUSA, Nicolau de. A douta ignorancia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 102.
9. Vide a discussão em:
WALSH, Catherine. Carta do Equador é intercultural e pedagógica.
10. VEIGA-NETO, Alfredo. Incluir para excluir. IN: LARROSA, Jorge & SKLIAR, Carlos ( org). Habitante s de Babel; políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p..115.
11.
CLAVERO, Bartolomé. Why are only indigenous peoples internationally entitled to a specific right to their own culture? Lecture at Columbia University, January, 21, 2009. Disponível em :
12. VEIGA-NETO, Alfredo, op. cit, p. 117.
13. OSAMU, Nishitani. Anthropos and humanitas: two western concepts of “human being”. IN: SAKAI, Naoki & SOLOMON, Jon. Translation, biopolitics, colonial difference. Hong Kong: Hong Kong University, 2006, p. 265.
14. BAXI, Upendra. The Posthuman and Human Rights. IN: Human Rights in a posthuman World; critical essays. New Delhi: Oxford University, 2007, p. 221.
15. Idem, ibidem, p. 222-223. O autor ainda levanta algumas questões interessantes. Seria possível, por exemplo, atribuir qualidades de “vida humana” para máquinas, robôs e nanobots? Reconhecida razão ou vontade para estes seriam, em virtude disto, passíveis de respeito ético? Robôs deveriam possuir os mesmos direitos e deveres que todos os cidadãos, inclusive proteção contra crueldade? (ibidem, p. 233).
16. BAXI, Upendra. The future of human rights. 2nd ed. New York: Oxford, 2006, p. xiv-xv, 80-82.
17. Idem, ibidem, p. 237.
18. SANTOS, op. cit., p. 473.
19.
MOOSA, Ebrahim. Contrapuntal Readings in Muslim thought: Translations and transitions. Journal of the American Academy of Religion (74): 1, mar 2006, p. 115-116.
20. ASAD, Talal. IN: SHAIKH, Nermeen. The present as history; critical perspectives on global power. New Delhi: Stanza, 2008, p. 217, 211, 210; MAHMOOD, Saba. Secularism, Hermeneutics, and Empire: the politics of Islamic Reformation. Public Culture, (18): 2, 2006, p. 328.
21. Desde outra cosmologia, o queniano Ngugi Wa Thiong’o recorda que “ a visão de mundo africana parte do princípio da existência de uma conexão entre os mortos, os vivos e os ainda por nascer”, três elementos, pois, que “personificam a realidade das inter-conexões entre o passado, o presente e o futuro, e esta visão conecta a vida espiritual com a existência material”. Neste sentido, portanto, “ o domínio do espiritual não está divorciado da realidade da economia e da política das nações e entre as nações”. Ver: THIONG’O, Ngugi Wa. A descolonização da mente é um pré-requisito para a prática criativa do cinema africano? IN: MELEIRO, Alessandra ( org). Cinema no mundo; indústria, política e mercado. África, volume I. São Paulo: Escrituras, 2007, p. 29-30.
22. BAXI, Upendra. The future, op. cit., p. 6-8, 49, 77.
23. SEGATO, Rita. La lucha por el derecho a nombrar el sufrimiento en el derecho. IN: Polack, Dalila y Leandro Despouy (comp.) Voces y Silencios de la Discriminación. Buenos Aires: Asamblea Permanente por los Derechos Humanos (APDH), Agencia Española de Cooperación Internacional para el Desarrollo (AECID) y Relatoría Especial sobre independencia de jueces y abogados (de próxima aparición).
24. SANTOS, Boaventura de Sousa. A queda do Angelus Novus: o fim da equação moderna entre raízes e opções. IN: A gramática do tempo. São Paulo: Cortez, 2006, p. 83.

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