Convenção de Haia

Devolução de Sean segue princípio do juiz natural

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27 de dezembro de 2009, 11h10

Toda a discussão em torno de um menor, filho de pai norte-americano e de mãe brasileira que vem ocupando amplos espaços na mídia há alguns anos desde que ele foi trazido ao país e aqui mantido sem consentimento do progenitor, traduz em nosso ordenamento jurídico nacional um ruidoso barulho por quase nada.

Tudo o que se vem insistentemente debatendo, na verdade não importa para compreender o processo dos casos submetidos à Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças da qual o Brasil é signatário e se obrigou atendê-la formal e solenemente perante o concerto das Nações contratantes (Decreto nº 3.413, de 14 de abril de 2000).

Aliás, o tempo que já transcorreu desde o início do problema tampouco afeta o desfecho, porque a Convenção de Haia não trata senão de uma cláusula internacional de competência, a dizer, sobre o Juízo que há de merecer o conhecimento da matéria de fundo e no qual essa matéria será regularmente processada e decidida.

Por ela, toda criança abduzida para o estrangeiro de sua residência habitual ou lá retida indevidamente deve ser imediatamente devolvida para a regulação das condições gerais de direito material associadas à guarda, manutenção, visita etc, junto à Justiça do país em que residia habitualmente ao tempo do episódio. Para ser preciso: ao tempo imediatamente anterior do episódio.

A demora quanto ao processamento do retorno, desde que um Estado requisitante tenha manifestado, perante um Estado requisitado, esse retorno em até 1 ano da data do fato, não pode passar de 6 semanas — isso mesmo: 6 semanas! — para ocorrer a devolução para todos os fins de Direito.

Daí ser importante considerar que uma parte interessada não pode ser responsabilizada por aquilo a que não deu causa. Não se pode onerar o Estado requisitante, seja ele qual for, em face das deficiências funcionais e operacionais com que o Estado requisitado, também seja ele qual for, se encarrega de cooperar com o primeiro.

Os cenários de incompreensão subjetiva, chicanas jurídicas, desconhecimento da norma internacional e de outras normas, além de uma intrínseca má vontade de parte de diversos protagonistas, são todos associados a uma mistura explosiva que não pode existir de modo algum em casos que tais: objetivos legais com objetivos idealizados.

Então, o menor prolongamento do quadro implica em agravamento do que se convenciona por "alienação parental", ou seja, uma das piores experiências de trauma psicológico às pessoas em formação e que trata de anular-lhes a própria história afetiva e até mesmo biológica. Disso decorre, precisamente, a exigência convencional por expedição do retorno da criança objetivada à luz da Convenção de Haia. No seu contexto não há espaço para prospecções de ordem alguma, porque há um órgão judicial eleito por empreendê-las a seu tempo e modo. E esse órgão (Juiz Natural) não está estabelecido no Estado requisitado.

Desse modo, a Administração da Justiça local não pode ser biombo para o aprofundamento de uma tal situação inteiramente fora de propósito, iníqua até, porque desprovida de sentido humanitário. A Justiça é signo de ordem e correção, e jamais de subversão e vício.

De fato, não se deve deixar-se iludir com os esforços de inversão dessas polaridades. Pode-se até acreditar que se está agindo em boa intenção e no melhor dos propósitos. Todavia, a atitude revela uma manifestação prepotente que intenta a sublevação de um patrimônio normativo o qual solenemente se desconhece para garantir a prevalência de interesses pessoais ou subjetivos.

Para evitar a frutificação desses esforços desprestigiosos da Ordem Legal, exige-se do intérprete sensibilidade e conhecimento técnico e aprofundado do conteúdo da Convenção de Haia que deve ser aplicada, repita-se, de um modo inteiramente desespiritualizado para que cumpra as suas finalidades conceituais e também humanitárias.

É de se observar, ademais, que são raríssimas, notórias e dificilmente constatadas as hipóteses que excepcionam o retorno imediato de crianças abduzidas ao estrangeiro e regularmente reclamadas, pois essas causas estão fincadas na base cultural do ambiente deixado para trás, geralmente por razões de sobrevivência as quais não se confundem com diferenças ideológicas ou incompatibilidades de ordem pessoal. A dizer, essas diferenças não permitem avaliar que a Convenção de Haia não seja aplicável a esses casos, porque esses assuntos compõem o espectro de deliberação que o Juiz Natural haverá de construir por igual, no momento certo.

Por outro lado, traumas psíquicos podem ser objeto de artifício e não cabe recrudescê-los de modo algum sob falsos pretextos humanitários. Os Juízes não podem servir de inocentes úteis nessa espécie de tragédia humana claramente midiatizada para fins e por fins nem sempre admitidos, e por isso obscuros, que é capaz de excluir, inclusive, a própria paternidade/maternidade sem uma causa legítima aparente. Os Juízes não tem amigos ou inimigos, conforme diria o Ministro Aliomar Baleeiro. E nem podem conhecer patriotada ou xenofobia no concerto de decisões do tipo.

No que diz respeito à crítica sobre uma suposta irreversibilidade da decisão liminar do Presidente do STF, em sede de Mandado de Segurança, que permitiu a volta do menor em alusão, simplesmente não é o caso. Os Estados Unidos da América do Norte, Estado requisitante, não são um país fundamentalista ou terrorista, nem se encontra em estado de guerra civil, por exemplo, que faça antever a possibilidade de malogro para possível e apenas suposta reversão da medida liminar que traduz uma manifestação tecnicamente perfeita da autoridade concedente do writ. Além disso, a decisão injustamente atacada por muitas visões alheias à disciplina jurídica da matéria está amplamente escorada em farta deliberação anterior oriunda de múltiplas instâncias da própria Justiça Federal brasileira e de procedimentos administrativos ligados à Autoridade Central brasileira sob encargo do Ministro-chefe da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e da própria Advocacia-Geral da União, de acordo com o que está amplamente divulgado.

Ademais, em órgão colegiado (Tribunal) é este que decide e não cada um de seus membros, ainda que o façam — em setores ou até individualmente — por delegação regimental do próprio órgão.

O que não pode ocorrer, na prática, é uma situação de anomia em face de não existir a quem apelar para as hipóteses que reclamam urgência inadiável, risco de denegação de Justiça. Seria o mesmo que entregar à própria sorte aquele que estiver sob uma situação de crise (tensão social em choque, risco ou ameaça) que evidentemente não se justificaria do ponto de vista legal. Manter a situação nesse foco é que seria desarrazoado e antinômico do próprio Estado de Direito.

No regime democrático não pode faltar a quem apelar em instante algum, ainda que, no limite, se possam revisar posteriormente as decisões adotadas sob tais circunstâncias. Por isso mesmo, não há pretexto, condição ou motivação organizacional de qualquer espécie que justifique o não-decidir em face das situações de urgência que reclamam soluções inadiáveis.

Trata-se, assim, de uma exigência da cidadania. Trata-se de um predicado da democracia participativa. Trata-se de uma exigência moral de efeito universal que não se pode evitar.

Resta considerar induvidoso que a decisão do Ministro Gilmar Mendes, à vista do Mandado de Segurança referenciado pelo Advogado-geral da União no qual chegou a classificar como “teratológica” uma outra decisão em sentido contrário de um outro Ministro do próprio STF, chamado a atuar anteriormente, não merece qualquer reparo seja jurídico seja moral. Tampouco merece reparo cada uma das decisões de mérito que a antecederam no âmbito do 1º e do 2º grau da Justiça Federal brasileira, além dos pronunciamentos instrumentais editados pelo STJ, que deram ensejo ao desfecho por todos conhecido.

Com efeito, nenhuma dessas manifestações especiais merece a mínima censura em concreto. Todavia, a demora com que foram materializadas agravou a atmosfera espiritual da lide, mas esse fenômeno é estrutural e não pode ser atribuído senão ao sistema judicial brasileiro como um todo, derivado de um regime constitucional que precisa ser reordenado para que se garanta a plena e rápida eficácia dos veredictos os quais devem resultar exclusivamente do Império da Lei (equal justice under law).

Pois, é pelo Império da Lei que o Brasil se tornará muito, muito melhor.

Feita, de uma vez por todas, a necessária Justiça para o caso em comentário, resta a prevalência de uma lição absolutamente incontornável quanto à aplicação da Convenção de Haia (que não esgota o exame dos aspectos de fundo da matéria, subministráveis ao Juiz Natural nela definido): a solução de conflitos entre Estados soberanos, e não entre pessoas, cujo conteúdo tem caráter exclusivamente objetivo, deve ser desespiritualizada e, por isso, afastada toda manifestação da afetividade que impede ou subverte o regular processamento de suas finalidades de cooperação internacional associadas ao retorno de crianças que tenham sido indevidamente abduzidas de sua residência habitual em algum país signatário ou retidas fora dele também ilicitamente.

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