Véu polêmico

Franceses lutam por estado laico

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26 de dezembro de 2009, 5h22

Depois de provocar muita polêmica em 2004, quando seu uso foi proibido nas escolas públicas francesas, o véu islâmico volta a agitar a política francesa e europeia. No último dia 22 de junho, o presidente francês Nicolas Sarkozy manifestou aos deputados e senadores franceses, reunidos solenemente no Palácio de Versalhes, o seu repúdio ao uso da burca e do “chador” e seu apoio a eventual ato legislativo que pretenda proibi-los no território francês. A burca nada mais é que a versão mais fechada do véu islâmico e o chador aquele que recobre apenas a cabeça. Sarkozy afirmou, na ocasião, que a questão não teria caráter religioso, mas diria respeito à igualdade entre homens e mulheres; para o presidente francês, a burca é signo de submissão das mulheres. Também na Turquia e na Alemanha a questão desperta acalorados debates. Um Estado alemão chegou a proibir o uso do véu islâmico pelos professores de escolas públicas, ao tempo em que admitiu o uso de crucifixos e o hábito de freiras católicas.

Nessa mesma linha, em 04 de dezembro de 2008, a Corte Europeia dos Direitos do Homem, sediada em Strasbourg, considerou justificada a expulsão de duas alunas muçulmanas de uma escola pública francesa, por terem se recusado a retirar o véu nas aulas de educação física. As famílias das alunas já tinham perdido em todas as instâncias da justiça administrativa francesa. A Corte Europeia entendeu também que não houve desrespeito à liberdade religiosa.

Contudo, tais medidas podem, sim, ferir gravemente a liberdade de crença e de religião. É compreensível que se proíba o uso de signos religiosos pelos representantes do Estado, como juízes, policiais ou mesmo professores de escolas públicas. Que tal proibição atinja o próprio cidadão na sua vida privada constitui-se numa deturpação do princípio da laicidade.

O Estado laico é recente em termos históricos. Sócrates, além de responder por corrupção da juventude, foi julgado por não acreditar nos deuses da cidade. Na Idade Média, os representantes da Igreja exerciam parte do poder político, podendo mandar para a fogueira hereges e bruxas. É a Reforma Protestante que, no século XVI, coloca pela primeira vez, de forma ampla, o problema da liberdade religiosa e do posicionamento do poder estatal frente às religiões. Na França, católicos e huguenotes digladiaram-se pelo poder na segunda metade daquele século, com dezenas de milhares de mortos, trinta mil huguenotes tendo padecido somente na Noite de São Bartolomeu. Apenas em 1598, com o Edito de Nantes, é que foi estabelecido um regime de liberdade religiosa, ainda que limitado.

Não se pode entender a laicidade do Estado sem referência à liberdade religiosa. É a outra face da moeda. Por que razão o Estado deve ser laico? Porque, representando todos os cidadãos, não poderia abraçar uma opção religiosa sem alienar dessa representação os cidadãos de outra crença ou mesmo os que não professem religião. Assim, a liberdade de religião, aliada a uma nova concepção do Estado e da igualdade, está na origem da laicidade.

De qualquer forma, é aos agentes e funcionários do Estado que o princípio da laicidade se dirige, vedando que expressem, no exercício da função pública, suas preferências religiosas. Os edifícios públicos, da mesma maneira, deveriam manifestar essa neutralidade diante da religião. A laicidade é exigida sempre do Estado, nunca do cidadão, do particular, para o qual vale a liberdade de professar qualquer crença ou religião. A menina que vai à escola francesa não representa o Estado. É para que os cidadãos possam usar crucifixos, véus ou quaisquer signos religiosos que o Estado se laicizou, que se tornou neutro diante da opção religiosa. Vedar à jovem o uso do véu islâmico, mesmo na escola pública, é violentar sua liberdade religiosa, mormente pela importância que a questão tem para as mulheres muçulmanas. Vedar seu uso no território de um país é medida que remete às guerras de religião.

O que tem sido professado na França é uma deturpação da laicidade, o laicismo, versão militante daquela. Ele perde de vista a liberdade religiosa e quer impor à população uma forma de secularização. Norberto Bobbio estabelece essa distinção. Para ele, a laicidade, ou espírito laico, não é em si mesmo uma nova cultura, mas uma condição de convivência de todas as possíveis culturas. Por outro lado, assevera que o laicismo que “necessite armar-se e organizar-se corre o risco de converter-se numa igreja em oposição às demais.”

Por fim, parece igualmente autoritário o argumento de Sarkozy de que a proibição visaria à igualdade de homens e mulheres. Ainda que se considere o véu islâmico incompatível, mormente na forma da burca, com a visão que temos da mulher no ocidente, ele é certamente um signo religioso. Se uma mulher oculta seu rosto e cabelos, ou o corpo inteiro, por respeito à religião, ou se o faz por medo do marido ou do militante islâmico do bairro, só ela pode saber. Na dúvida, para não ferir algo tão íntimo e inviolável quanto a liberdade de crença e de religião, e não retrocedermos alguns séculos, é melhor deixar que ela retire o seu véu espontaneamente, convencida que venha a ser disso pela cultura ocidental da igualdade, da liberdade e da fraternidade, ue costumavam ser a divisa dos franceses.

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