SEGUNDA LEITURA

O Poder Judiciário brasileiro no regime militar

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

20 de dezembro de 2009, 9h42

Indagado pelos mais jovens sobre o Poder Judiciário durante o regime militar, constatei a quase inexistência de estudos sobre o tema. É que o assunto é amplo, a pesquisa, difícil, registros são raros e dispersos por todo o país.

Por isso tudo, superado o requisito da idade (só os mais velhos viveram a época), cada um tem a sua visão particular. Um cidadão de Porto Alegre (RS) poderá saber o que lá se passou, mas dificilmente conhecerá o que ocorreu em Belém (PA).

Coerente com esta afirmação, falarei a partir da minha experiência pessoal, à qual adicionarei conhecimentos adquiridos pela leitura de raros artigos e conversas com pessoas de diferentes origens e regiões. Portanto, longe, muito longe, de uma visão nacional aprofundada.

Situemos no tempo meu relacionamento com o regime militar. Em 1964, eu cursava o segundo ano da Faculdade Católica de Direito de Santos (SP) e fazia estágio no Cartório do 2º ofício criminal.

No dia 31 de março de 1964, o Brasil mudou. Perdeu a ingenuidade. Silêncio, ameaças no ar e depois prisões dos chamados subversivos. Nos corredores do Fórum, eu via chegar os presos para as audiências. Os juízes de Direito não se submetiam à nova ordem e os colocavam em liberdade. Pouco tempo depois, a competência para tais crimes passou à Justiça Militar Federal.

É de 1966 o caso da morte do sargento Manoel Raimundo Soares, assassinado por policiais do Dops de Porto Alegre (RS), que em 12 de setembro de 2005 resultou em indenização ordenada pelo TRF da 4ª. R., a favor da viúva (clique aqui para ler mais).

Em 1967, implantou-se a Justiça Federal, com juízes indicados pelo presidente da República. Dela se dizia que era a Justiça da Revolução e que seria extinta quando o regime de exceção acabasse.

O Brasil mudava. Atos Institucionais suspendiam direitos constitucionais. O AI 2, em 1965, elevou o número de ministros do STF de 11 para 16, com o intuito de alterar os posicionamentos. O AI 5, em 1968, suspendeu os direitos e garantias individuais, iniciando as cassações. O AI 6, de 1969, excluiu da apreciação judicial uma série de atos. O AI 13, de 1969, dispôs sobre o banimento dos considerados nocivos à segurança nacional. O AI 14, em 1969, instituiu a pena de morte para os casos de guerra psicológica revolucionária ou subversiva.

É desta época a cassação de vários juízes. Talvez o primeiro caso tenha sido o do juiz de Direito José Francisco Ferreira, da comarca de Pacaembu (SP), que no dia 31 de março de 1964 mandou hastear a bandeira do Brasil a meio-pau no fórum. Entre tantos, a cassação do desembargador Edgard Moura Bitencourt (TJ-SP), autor do excelente livro O Juiz, do grande José de Aguiar Dias (TJ-DF, então no RJ), autor do ótimo Da Responsabilidade Civil e do juiz federal Américo Masset Lacombe, de São Paulo, que foi preso, cassado e voltou, anistiado, à magistratura, onde chegou à presidência do TRF-3.

Na cúpula também ocorreram cassações. Como bem lembra Cláudia Silva Scabin, “em 13 de dezembro de 1968, três ministros do STF foram obrigados a se aposentar: Victor Nunes Leal, vice-presidente da corte, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva (O Supremo Tribunal Federal nos Anos do Regime Militar – uma visão do Ministro Victor Nunes Leal).

Estes fatos ficavam distantes da minha rotina diária. Estagiando ou advogando na Justiça Estadual, em meio a despejos e inventários, não sentia influência do regime militar. Contudo, em 1969, aprovado no primeiro concurso para delegado de Polícia Federal (à época inspetor), em curso na Academia Nacional de Polícia, Brasília, senti de perto o regime. Os cargos de direção eram ocupados por militares. O conteúdo das matérias era de clara orientação ideológica. Dizia-se que o financiamento era da Usaid. Saí.

Optei pelo MP. Primeiro no Paraná (poucos meses), depois em São Paulo. De julho de 1970 a março de 1980. Pessoalmente, nunca senti qualquer interferência. Lembro-me apenas de um fato. Em 1971, pedi ao juiz de Direito de Guarujá (SP) que solicitasse determinadas informações ao Comandante do Exército e, no ofício em resposta, o coronel afirmou que os atos da Comissão Geral de Investigações (CGIs) não se submetiam a informações, por força de lei.

Na verdade, a Justiça Estadual foi alijada das questões institucionais e por isso não havia atritos. E nas questões particulares as Forças Armadas não se intrometiam. Só por exceção a Justiça Estadual julgava questões que afetavam o regime. Por exemplo, o julgamento do delegado Sérgio Fleury, em São Paulo, a quem se acusava de ter ligações com o chamado “Esquadrão da Morte”.

Na verdade, a Justiça Militar Federal era a grande protagonista. O DL 314/67 e o DL 898, de 29 de setembro de 1969, regulavam os crimes e processos envolvendo a segurança nacional. O rigor era extremo. O juiz auditor decidia com mais quatro oficiais. Dependendo de seu temperamento, poder de convencimento, grau de cultura, as decisões poderiam ser mais ou menos legalistas. Advogados defendiam os denunciados com justa dose de receio, pois poderiam tornar-se réus e serem presos. Neste particular, muitos enaltecem o Superior Tribunal Militar, que teria sido um fator de equilíbrio e equidade naqueles tempos difíceis.

A Justiça Federal recebia ações envolvendo aspectos administrativos ou civis (v.g. censura). Os juízes federais, não por serem induzidos, mas sim por convicção, não costumavam divergir das posições do regime. Afinal, foram nomeados porque neles se confiava. Era de se supor certa identidade político-ideológica. Mas, em 21 de setembro de 1978, o juiz federal Márcio José de Moraes (7ª Vara Federal de São Paulo), aprovado no segundo concurso nacional, condenou a União no célebre caso Vladimir Herzog (vide Justiça Federal: histórico e evolução no Brasil, Vladimir Passos de Freitas, Juruá, p. 82).

Atuei como juiz federal de 1980, em Porto Alegre e Curitiba, até a abertura do regime político, em 1985. Jamais senti ou sofri qualquer intervenção. Era o regime militar no fim do seu ciclo.

Em conclusão abreviada pelo limite máximo de duas folhas, na visão minha que pode ser diferente de quem tenha tido outras experiências, penso que no regime militar o Judiciário, na esfera política e institucional, não tinha liberdade de agir, e os que ousassem enfrentar o regime corriam o risco da cassação. Na área das relações entre particulares, Justiça Estadual, não existia qualquer tipo de interferência, sendo plena a liberdade dos Juízes. E quem mais souber que o diga. Vamos construir nossa história.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!