Segurança pública

"É difícil apontar responsabilidades", diz ministro

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19 de dezembro de 2009, 7h23

No último dia de julgamentos no Supremo Tribunal Federal antes do recesso judiciário, o ministro Gilmar Mendes, presidente da Corte, concedeu entrevista coletiva, comentando vários temas de destaques. Um deles se refere à segurança pública. O ministro disse que nesse assunto é difícil apontar responsabilidades. “Muitas vezes, no que diz respeito à impunidade, não há como separar as responsabilidades.”

Questionado sobre o comentário do ministro da Justiça, Tarso Genro, de que o trabalho da Polícia Federal se encerra com a entrega dos inquéritos e que o problema é a quantidade de recursos disponíveis aos acusados, Mendes disse que não há como apontar uma causa específica para a questão da impunidade. “Em alguns estados, ela [Justiça criminal] funciona de forma talvez mais adequada, em outros, estava em um estado quase de falência”, disse.

O ministro também comentou o projeto do Conselho Nacional de Justiça para melhorar as execuções penais. Falou, ainda, sobre a questão dos pedidos de vista e negou que seu desentendimento com o ministro Joaquim Barbosa tenha respingado no relacionamento de outros ministros do Supremo. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.

Leia a entrevista

O ministro da Justiça, Tarso Genro, ao comentar a questão da impunidade, disse que o trabalho da Polícia Federal se encerra com a entrega dos inquéritos e, sem crítica à Justiça, ele disse que o problema é dos recursos. Gostaria de saber se essa reformulação do CNJ também vai trabalhar com essa questão dos recursos.
Gilmar Mendes – Ele é feliz porque sabe pelo menos de uma das causas. A gente, às vezes, tem mais dúvidas em relação a isso. Na verdade, temos vários problemas no que diz respeito à Justiça criminal. Nós temos descoberto – até dizia isso ao ministro Tarso num documento que lhe enviei – que houve um certo ruído por parte das autoridades de segurança pública em relação ao tema Justiça criminal. Em alguns estados, ela funciona de forma talvez mais adequada, em outros, estava em um estado quase de falência. Ela não conseguia dar vazão à massa de processos. Por isso, nós criamos um grupo de trabalho no CNJ, relatado pelo conselheiro Walter Nunes, que apresentou resultados com algumas soluções como mudança de projetos e reforma de processo penal. Há um grande esforço nesse sentido. De qualquer sorte, nós temos muitos problemas na área de segurança pública.

Como quais?
Gilmar Mendes – Quando estivemos em Alagoas, por exemplo, identificamos que havia quatro mil homicídios registrados sem sequer inquérito aberto. Isso é de responsabilidade da polícia. Reclama-se, também, que abrem-se inquéritos, mas o grau de êxito da regulação do crime também é extremamente baixo. Muitas vezes, na discussão na Justiça criminal, é dito que o resultado no sentido da absolvição é em decorrência da má condução de inquérito. Muitas vezes, no que diz respeito à impunidade, não há como separar as responsabilidades. Não acredito que o problema decorra tão somente da massa de recursos. Sem dúvida tem que modernizar o processo, fixar um tempo para sua duração. Nós estamos sugerindo, nessa proposta, que está em audiência pública e que em fevereiro deverá já obter uma votação no âmbito do CNJ, estabelecendo que em determinados crimes, como de organização criminosa, o juiz poderá, como o Supremo já admite, quando houver sentença condenatória determinando o regime fechado, que já se decrete a prisão preventiva. São medidas que podem realmente melhorar a visão das pessoas em relação à Justiça criminal. É importante que as autoridades incumbidas da segurança pública no Brasil não olvidem a Justiça criminal porque ela é o elemento central desse processo. É o juiz que prende, embora em algum momento alguém pensasse que era a Polícia Federal que prendia. No Brasil é o juiz que manda prender e é o juiz que manda soltar. É preciso, portanto, que essa máquina funcione adequadamente.

E quanto os crimes chamados de colarinho branco?
Gilmar Mendes – Exatamente por isso há iniciativas no sentido de acelerar o processo. Nós estamos tomando várias medidas como a apreensão de bens. Nessa série de projetos apresentados, há uma providência, por exemplo, em relação à fiança, pedindo que se eleve o valor para casos de crimes mais graves. Tenho a impressão de que, se nós conseguirmos uma dinâmica adequada do processo e da Justiça criminal em geral, vamos responder a esse tipo de demanda, não só em relação a crimes de colarinho branco, como aos demais. Muitas vezes, nós temos vários inquéritos que são abertos e depois quedam inconclusos. É uma pergunta que sempre se pode fazer para que, de fato, a gente possa examinar a efetividade do sistema como um todo e, em seguida, prosseguir: quantos inquéritos foram abertos e quantos foram concluídos? E daqueles concluídos, quantos resultaram em denúncia? Daqueles que tivemos denúncia, quantos resultaram em punição?

Isso ainda está no CNJ?
Gilmar Mendes – Estamos discutindo isso. Está no site do CNJ, em audiência pública. Em alguns estados, por exemplo, detectamos que havia uma massa de casos que prescreveria. E o crime era de homicídio, portanto aquele com prescrição mais alongada.

O Supremo acaba recebendo várias críticas por conta dos pedidos de vista. O senhor acha que isso traz prejuízo para o andamento dos trabalhos da Corte?
Gilmar Mendes – Não acredito que traga prejuízo decisivo para o trabalho da Corte. Em muitos casos se impõe o pedido de vista. Nós temos que encontrar, talvez, meios e modos de reduzir o tempo de retomada do julgamento. Acho que é fundamental que nós tenhamos condições para isso. Talvez fixar prazo, algum limite. Mas muitas vezes, o ministro devolve o processo e nós temos dificuldade de fazer a sua reinserção na pauta. Nós temos que discutir normas e critérios de organização e procedimentos, para darmos uma dinâmica adequada ao pedido de vista. Estamos tomando algumas providências no âmbito interno, criando mecanismos de memória eletrônica, chamando a atenção para o tempo em que um processo está suspenso em razão do pedido de vista. Temos realmente que melhorar. Mas, muitas vezes, a vista é imperativa, inevitável.

Como o senhor tem acompanhado o desenrolar do escândalo de corrupção no Distrito Federal, e praticamente pela impossibilidade de uma solução política já que várias pessoas que estão envolvidas na Câmara Distrital no suposto esquema de corrupção. O senhor acredita que possa haver uma intervenção federal? Até onde a Justiça pode agir nesse caso?
Gilmar Mendes – Eu tenho a impressão de que certamente haverá uma discussão sobre meios adequados para superar esse impasse. O impeachment tem dificuldade por conta do comprometimento da Câmara local, também uma licença eventual para processar o governador. Eu sei que o procurador-geral da República propôs uma ação direta contra essa exigência [da Câmara Distrital ter de dar o aval para o governador ser processado]. O ministro Marco Aurélio, num caso específico, já havia se manifestado em favor da ideia de inconstitucionalidade. Será um tema que certamente poderá nos ocupar já no início do próximo semestre. Também há o debate sobre possível intervenção federal, mas isso tem que ser tratado pelos órgãos competentes. Certamente a Procuradoria-Geral fará a devida avaliação do caso.

Existe uma recorrente crítica ao Supremo de que não há condenação de políticos. O senhor já defendeu publicamente que no julgamento do deputado federal Antonio Palocci, por exemplo, que o Supremo se ateve a aspectos técnicos para rejeitar a denúncia. Diante dessa crise no governo Arruda, e do julgamento em que não houve a proclamação do resultado no caso do senador Valdir Raupp, como o senhor vê esse paradoxo de não punir e o risco de uma prescrição de parte das denúncias?
Gilmar Mendes – Somente a partir de 2002 passou-se a admitir a tramitação de processos contra deputados e senadores. Até então, no modelo constitucional original, o processo só tramitava depois da licença de cada uma das casas. Essa mudança, portanto, é bastante recente. E a partir daí nós tivemos vários processos que foram abertos, alguns vieram do primeiro grau e já foram retomados. Já temos muitas denúncias em tramitação no tribunal, algo em torno de 50 denúncias recebidas. Por isso, tomamos a medida de convocar juízes, para que eles instruam os processos, dispensando a utilização de carta de ordem, que envolve delegação de poderes para que juízes de outros estados exerçam as suas atividades, retardando o trabalho. Esse juiz virá e cuidará do processo. Eu acredito que vamos ter bons resultados. Em relação a muitos casos, temos muitas querelas políticas que se transformam em processos judiciais.

Por isso também há um alto índice de rejeição de denúncias, ou de absolvição nos processos criminais que tramitam no STF?
Gilmar Mendes – Sim. Mas estão sendo tomadas medidas no sentido de ajustarmo-nos a essa realidade, como é o caso específico da denúncia quanto ao senador Valdir Raupp. Surgiu um debate sobre a existência de documentos que diziam que o convênio fora regular, adimplido em toda sua extensão. O ministro Joaquim Barbosa disse que, enquanto relator, não se lembrava da existência desse documento. Daí ter-se justificado a espera. E ontem mesmo já se havia afirmado que não havia grave prejuízo no pedido de vista, porque a prescrição incidiria apenas sobre parte da imputação. Nós trouxemos exatamente esse caso ainda ontem – desde o dia 7, o ministro Joaquim Barbosa estava de licença médica, e foi convidado para participar desse julgamento porque era o relator e porque se temia que houvesse a prescrição. Mas ontem se constatou que a prescrição não teria relevância. Agora, julgamento, como diz a própria expressão, envolve um exame adequado, não se trata de lance opiniático. É fundamental, então, que haja cuidado, inclusive no que diz respeito ao recebimento da denúncia. Muitas vezes o recebimento da denúncia é como se fosse definitivo. Daí a importância de que o recebimento já seja feito com grande cautela. Quanto ao número de ações penais que tramitam – entre as que foram recebidas aqui e aquelas que já vieram recebidas de outras instâncias –temos 104 processos em tramitação no STF. E 264 inquéritos.

O senhor disse que às vezes o recebimento da denúncia tem um caráter definitivo. Pode provocar um estrago na vida do político? É isso que o senhor quer dizer?
Gilmar Mendes – Exatamente. Por isso a necessidade de cuidado quando o Tribunal emite um juízo sobre o recebimento da denúncia. Daí a necessidade de que nós tenhamos realmente muita cautela, e não recebamos denúncia para depois absolver, afinal, passados quatro, cinco, dez anos. O recebimento da denúncia já envolve um ônus processual e cívico significativo.

O teto salarial do funcionalismo é o do vencimento do ministro do STF. Nos tribunais em todo o país, os desembargadores recebem bem acima desse teto, e alegam em suas ações direito adquirido. Isso também ocorre no Legislativo, principalmente na Câmara e no Senado. Quando é o teto será respeitado? É necessária uma ação no Supremo?
Gilmar Mendes – Eu não estou informado de que desembargadores estejam ganhando mais do que ministros do STF. Se isto estiver ocorrendo é irregular. Eu sei que várias medidas no CNJ foram tomadas no sentido de fazer a devida adequação e correção. Direito adquirido não tem servido de pretexto para alicerçar esse tipo de argumento. Em relação ao Legislativo, o que eu conheço é uma matéria que está afeta ao TCU – se aqueles que percebem uma remuneração autonomamente, como procurador, juiz ou promotor aposentado, ou até uma remuneração de alguma Assembleia Legislativa, poderia acumular com os ganhos na Câmara ou no Senado. A matéria estava sendo analisada pelo TCU, que já tinha determinado que houvesse a exclusão e a observância do teto. Depois parece que houve uma liminar, mas não sei como esse assunto evoluiu. No STF, não temos nenhuma dúvida em relação ao cumprimento do teto.

O governo da Itália apresentou um questionamento sobre qual foi precisamente os termos do voto do ministro Eros Grau, que teve um posicionamento do STF nesta semana. Em que medida isso pode influir – ou restringir – a discricionariedade do presidente Lula no momento de tomar a decisão sobre a extradição do italiano Cesare Battisti?
Gilmar Mendes – Eu tenho impressão de que, certamente, o presidente está vinculado àquilo que está estabelecido nas leis e nos tratados. E a decisão que foi explicitada agora, que já estava no voto do ministro Eros Grau, deixa claro exatamente que a eventual recusa no cumprimento da extradição, a sua não execução, terá que ser balizada por aquilo que está estabelecido na legislação, e especialmente no tratado.

Na hipótese de o presidente não conceder a extradição, alguns parlamentares já têm falado da possibilidade do presidente ser objeto de processo por descumprimento.
Gilmar Mendes – Essa é uma hipótese que não se cogita. Na verdade, o Brasil é um pleno estado de direito, somos uma democracia em funcionamento e somos muito orgulhosos dela. Não temos um histórico, no plano federal, de descumprimento de decisões judiciais. Também não temos um histórico de descumprimento da legislação, muito menos de tratados. Se por acaso o tratado autorizar providências que impliquem a recusa – não vou falar do caso de Cesare Battisti, mas de qualquer extradição -, terá que ser feita dentro das balizas estabelecidas na legislação.

O senhor sabe quando pode ter o acórdão do julgamento do caso no STF?
Gilmar Mendes – Certamente será no primeiro semestre do ano que vem.

O que marcou o noticiário neste ano, também, foi o desentendimento público do senhor com o ministro Joaquim Barbosa. Isso gerou alguma consequência no relacionamento entre os ministros da Suprema Corte?
Gilmar Mendes – Não acredito. Aquela foi uma questão entre mim e o ministro Joaquim Barbosa. Não acredito que tenha nenhuma consequência quanto ao relacionamento que outros ministros tenham no âmbito da Corte.

Ao visitar as instalações da Record, o senhor sugeriu que o mutirão carcerário fosse citado em uma novela. O diretor Lauro César Muniz, da novela Poder Paralelo, vai fazer isso. Qual a importância de divulgar mais o mutirão carcerário?
Gilmar Mendes – Quando se lida com esse tema há inicialmente uma barreira de preconceito. Quando nós começamos a perceber a necessidade de que fazer esse trabalho, chamado de “Começar de Novo”, encomendamos uma pesquisa a setores especializados. Essa pesquisa nos revelou que a população tem um certo sentimento de indiferença ou até de desprezo para com as pessoas encarceradas. Não é que deseje que eles morram ou modelos de pena de morte, mas, pelo menos isso foi captado nessa pesquisa, é que o ideal seria que essas pessoas desaparecessem, como se não tomassem parte na nossa existência. Era preciso que, para fazer esse trabalho, nós sensibilizássemos os mais diversos setores, revelando a realidade dos presídios e a possibilidade mesmo de reinserção social. E nós percebemos também que era muito importante que se mostrasse que o “Começar de Novo” tinha uma perspectiva de direitos humanos e um programa de segurança pública. Nós temos um alto índice de reincidência.

E o que se pode fazer para reduzir a reincidência?
Gilmar Mendes – Só se pode reduzir essa reincidência se de fato tivermos um programa consistente de reinserção social. Fiquei muito contente quando o Lauro Muniz anunciou a disposição de incorporar um personagem na novela. Claro que, com isso, levará essa realidade para as telas e contribui para sensibilizar a população. De alguma forma, nós estamos percebendo esse novo quadro. O anúncio recente, em São Paulo, de cinco mil vagas para o próximo ano para as pessoas do “Começar de Novo” e iniciativas de várias instituições, como a Febraban, que firmaram convênio com o CNJ para absorver esse tipo de mão de obra. Tudo isso mostra que esse trabalho – de um ano e dois ou três meses – do mutirão carcerário e agora nessas vestes do “Começar de Novo”, deu excelentes resultados. Estou muito satisfeito com essa iniciativa.

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