Entendimento universal

Globalização funde Constituições e jurisprudências

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19 de dezembro de 2009, 7h34

A integração internacional acelerada no fim do século XX tornou o modo como o Estado resolvia os problemas constitucionais absolutamente obsoleto. Conflitos antes tipicamente regionais já não são territorializados. Nas cortes supremas ao redor do globo, decisões de outras nações são usadas como jurisprudência para convencer os julgadores.

"Transconstitucionalismo" é como chama essa dinâmica o professor, constitucionalista e membro do Conselho Nacional de Justiça Marcelo Neves. Em palestra feita no dia 11 de dezembro no VI Congresso Nacional de Estudos Tributários, promovido pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, ele falou sobre o tema, que também dá título ao seu mais recente livro.

Citando um exemplo, o professor conta que o entrelaçamento de jurisprudências internacionais levou a Corte Suprema norteamericana a superar a autonomia estadual em questões penais nos Estados Unidos, para livrar um casal de homossexuais que mantinha relações dentro da própria casa. "Um entregador viu a cena e denunciou o casal, que foi condenado pela corte estadual", contou o constitucionalista. Segundo ele, os advogados usaram decisões de outros países para convencer os juízes da Suprema Corte.

De acordo com o professor, os exemplos mais recorrente dos choques causados por essa interrelação são vistos na União Europeia, em que as nações possuem suas próprias constituições e cortes constitucionais, mas também se submetem a tribunais comuns do bloco. "Grandes problemas constitucionais continuam a ser internos, mas surgem outros que não podem ser resolvidos só por um Estado", apontou Neves.

O professor separa em camadas as forças tensionadas devido a essa recente disposição. O caso que opôs a imprensa alemã e a princesa Caroline de Mônaco é um exemplo de choque entre o Direito estatal e o Direito internacional público. Em 2003, o Tribunal Constitucional da Alemanha rejeitou um recurso da princesa contra jornais que haviam publicado suas fotos e de sua família em momentos privados. Para a corte, por ser uma personalidade pública, a princesa não tem os mesmos direitos à intimidade que têm pessoas comuns. A princesa entrou então com uma ação na Corte Europeia de Diretos Humanos. A decisão foi diametralmente contrária.

Porém, como o julgado da Corte Europeia não derruba o do tribunal alemão, já que não há hierarquia entre ambos, o Direito encontra uma encruzilhada justamente em um item nada simples: direitos fundamentais. Quem cedeu, embora não no caso concreto, foi a corte alemã, que decidiu não apreciar mais situações já tratadas pela Corte Europeia, a não ser a título exemplificativo, para discussão de posições.

Mas não é preciso ir à Europa para ver um caso desses. Como lembra o professor, a Corte Interamericana de Direitos Humanos não reconhece o crime de desacato a autoridade, por exemplo. Funcionários públicos não têm prerrogativas especiais, estando sujeitos aos mesmos trâmites dos cidadãos comuns em caso de injúria, difamação e calúnia. No Brasil, no entanto, o desacato é infração penal.

Outra oposição clara que desafia as cortes ocorre quando o Direito estatal vai contra uma regra pacificada no Direito supranacional. É o caso da exigência de cursos profissionalizantes para se exercer as funções mais simples na Alemanha. Neves lembrou que o tema opõe o Judiciário alemão à Corte Europeia de Justiça, que entende não ser necessário que um costureiro experiente, por exemplo, faça um curso para exercer a profissão no país, mesmo que a legislação local o exija. O desgaste é evidente. "A Alemanha afirma respeitar a Corte Europeia apenas se a corte respeitar a constituição alemã. É a total falta de diálogo", disse o professor.

Se fatos ocorridos dentro do próprio país estão expostos a avaliações supranacionais, o que se dirá no caso de legislações que não se vinculam a Estado algum? É o caso dos acordos comerciais e entidades esportivas, por exemplo, em que o Direito estatal muitas vezes conflita com o Direito transnacional, segundo Neves. "Se um atleta é julgado e banido do esporte por doping, ele pode mover uma ação na corte de seu país, mas essa decisão não terá efeitos, já que aquela nação não aceitará ser excluída da modalidade por desrespeitar o tribunal esportivo", explica.

Mas isso sequer se compara com a ebulição causada pelo choque entre a ordem jurídica estatal e uma ordem local extraestatal, como nomeia Neves. O exemplo citado é o de tribos indígenas que matam bebês gêmeos ou defeituosos, por entenderem que a vida com dor, no caso destes últimos, não vale a pena. Outro conceito absolutamente normal para os índios yanomami é o de que a criança só é considerada nascida se for trazida pela mãe da selva, após o parto. Se for deixada no meio do mato, sequer existiu. "O Brasil é obrigado a tolerar o homicídio no próprio território, porque uma intervenção seria etnocídio, o que é muito pior", diz o professor.

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