Lei estadual

PL 728/09 vai contra o direito à moradia

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17 de dezembro de 2009, 18h08

Desde o advento da Constituição de 1988, o direito à moradia foi tido, a princípio, como um direito constitucional implícito decorrente da dignidade da pessoa humana. Em um segundo momento, foi incluído de forma expressa no texto constitucional pela Emenda 26/2000, passando a integrar o rol de direitos sociais do artigo 6º da Lei Maior.

Sob a justificativa de implementar esse direito, o governo federal instituiu, através da Lei 11.977/09, um amplo programa de viabilização do acesso à moradia, o Programa Minha Casa Minha Vida, através de mecanismos de subvenção econômica, regulamentação do sistema de amortização dos pagamentos, redução no valor das custas e emolumentos e normatização da regularização fundiária.

Por força do artigo 182 da Constituição, cabe aos municípios promover o desenvolvimento urbano, o que certamente abarca a questão do acesso à moradia. O executivo municipal de Belo Horizonte, encabeçado pelo prefeito Márcio Lacerda, encaminhou, em agosto de 2009, o Projeto de Lei Municipal 728/2009 (PL 728/2009), que supostamente teria como finalidade desenvolver uma política habitacional de âmbito local, dando “a necessária autorização legislativa para que o município aporte recursos e doe áreas de propriedade do município para a execução do Programa Minha Casa Minha Vida, nos moldes concebidos pela norma federal [i.e., pela Lei 11.977/09]” (trecho retirado do relatório sobre o PL 728/2009, da Comissão de Legislação e Justiça da Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte).

Esse projeto de lei foi aprovado pelas diferentes comissões da Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte, inclusive pela Comissão de Legislação e Justiça, que, em seu relatório, após discorrer muito resumidamente sobre a importância do projeto na efetivação do direito à moradia e de forma mais detida sobre seus aspectos tributários, concluiu pela “constitucionalidade, legalidade e juridicidade do Projeto de Lei 728/09”.

No entanto, o PL 728/09 incorre em várias inconstitucionalidade e ilegalidades, não só quando trata da doação de propriedades do município ou da isenção tributária para os industriais da construção civil futuros participantes do programa, mas, em especial, quando limita o acesso ao programa às famílias que não tiverem “invadido” áreas de propriedade pública ou privada (ver, sobre o tema, o parecer político e jurídico de José Luiz Quadros de Magalhães, Joviano Mayer e outros publicado no blog Escritório de Integração).

É sobre esse último ponto que quero discorrer, porque é precisamente aqui que fica mais claro como o PL 728/09, longe de implementar o direito à moradia, fere esse direito de morte. Em seu artigo 13, o PL 728/09 afirma que: “As famílias que invadirem áreas de propriedade pública ou privada a partir da data de publicação desta Lei não serão contempladas pela mesma.”

Em primeiro lugar, esse artigo estabelece uma sanção correspondente a uma conduta penalmente tipificada, i.e., a do esbulho possessório: se “as famílias” forem “invasoras”, não podem fazer parte do Programa! Aqui temos um claro desrespeito ao artigo 22 da Constituição, que estabelece a competência privativa da União legislar sobre matéria de direito penal.

Em segundo lugar, ao não excetuar as ocupações e assentamentos informais, o artigo 13 do PL 728/09 os caracteriza simplesmente como “invasões”, criminalizando os assentados, como se meros “invasores” fossem. Contudo, ocupações pacíficas que visam o cumprimento da função social da propriedade (artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição) não podem ser confundidas com o tipo penal que criminaliza a invasão de bem imóvel alheio, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas e para o fim de retirar da posse o legítimo possuidor (artigo 161 do Código Penal).

Nesse sentido, é ver as palavras do ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, do STJ, nos autos do HC 4339/SP: “No esbulho possessório, o agente dolosamente investe contra propriedade alheia, a fim de usufruir de um de seus atributos […,] [o]u alterar os limites do domínio para enriquecimento sem justa causa. No caso dos autos, diviso, ao contrário, pressão social para concretização de um direito (pelo menos – interesse)” (STJ, 6ª Turma, HC 4339/SP, Data de julgamento 12/03/1996, DJ 08/04/1996 p. 10491). Ou ainda, por todos, o entendimento do TJMG, apenas para se ater ao tribunal do estado no qual está inserido o município em epígrafe:

“INTERDITO PROIBITÓRIO – FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE – AMEAÇA DE TURBAÇÃO OU ESBULHO – NÃO COMPROVAÇÃO – IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO – LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – INOCORRÊNCIA. – Por ser a função social da propriedade elemento integrante do direito de propriedade, e, por conseqüência da posse, não se pode conferir proteção possessória ao titular que não a cumpre, sendo certo que para a procedência do pedido de interdito proibitório o elemento objetivo (ameaça) deve ter intensidade bastante para gerar o elemento subjetivo (justo receio)”. (TJMG, 12ª Câmara Cível, Ap. Cível n. 2.0000.00.505037-7/000(1), Rel. Des. SALDANHA DA FONSECA, julgado em 08/02/2006, publicado em 25/03/2006).

De fato, nos assentamentos informais, o que se tem, de uma forma geral, é a ocupação de bens imóveis que foram negligenciados pelo possuidor formal, para fins de chamar a atenção do Poder Público para a necessidade de efetivação do direito à moradia e da função social da propriedade, não havendo falar, pois, em esbulho possessório.

Em terceiro lugar, e talvez o mais grave: esse dispositivo vai na contramão da legislação federal sobre o Programa Minha Casa Minha Vida, de tratados de direitos humanos e, em última instância, do próprio direito constitucional à moradia. O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), que é um dos principais tratados internacionais de direitos humanos, protege o direito humano à moradia adequada em seu artigo 11, parágrafo 1º.

Ao interpretar essa norma, em seu Comentário Geral 04/1991, o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (CDESC) – órgão responsável pelo monitoramento e interpretação do Pacto – afirmou que o Estado que ratifica esse tratado passa a ter a obrigação de adotar todas as medidas necessárias para a implementação integral do direito à moradia, devendo dar prioridade ao acesso à moradia adequada às pessoas vivendo em condições desfavoráveis e aos grupos vulneráveis, dentre eles a população de baixa renda que ocupa os assentamentos informais.

O Brasil, a exemplo de quase todos os países do mundo, ratificou esse tratado (por meio do Decreto Legislativo 226, de 1991), que passou a ter vigência no nosso ordenamento como lei com status supralegal, i.e., abaixo da Constituição e acima de todo o resto (Cfr., e.g., o entendimento do STF sobre a Convenção Americana de Direitos Humanos no RE 349703/RS – STF, Tribunal Pleno, Min. Rel. Carlos Britto, DJe-104 publ. 05/06/2009). Por isso, e também tendo em vista o art. 5º, § 2º, da Constituição, o direito humano à moradia adequada, tal qual afirmado no PIDESC, deve ser visto como densificação do direito constitucional à moradia.

Acompanhando a lógica do PIDESC, a Lei Federal do Programa Minha Casa Minha Vida (Lei 11.977/09) prevê que terão prioridade, como beneficiários do programa, justamente os ocupantes de assentamentos irregulares.

Ora, ao impedir as famílias que estejam em assentamentos informais de terem acesso ao Programa Minha Casa Minha Vida, criminalizando-as, o PL 728/09 vai claramente contra esses diplomas legais, e, nesse conflito de normas, é o PL 728/09 quem leva a pior, pois tem status legal inferior.

Não obstante todo o exposto, infelizmente esse projeto caminha a passos largos rumo à sua aprovação, apesar da pressão da população, contra o artigo 13, nas sessões da Câmara. Aliás, os vereadores favoráveis aos interesses das grandes imobiliárias – e contrários ao regramento constitucional – lançaram mão, por várias vezes, do expediente nada democrático de esvaziar as sessões para impedir quorum de votação, com o único objetivo de adiá-la para um momento onde a população não estará tão presente.

Caso isso se confirme, a lei municipal resultante padecerá de injuridicidade assente, e a prefeitura de Belo Horizonte poderá ser responsabilizada, inclusive em foros internacionais, por violação clara aos direitos humanos dos incontáveis belorizontinos ocupantes de assentamentos informais.

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