RETROSPECTIVA 2009

Fim da Lei de Imprensa deixa marcas para o futuro

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16 de dezembro de 2009, 12h07

Este texto sobre Direito de Imprensa faz parte da Retrospectiva 2009, série de artigos sobre os principais fatos nas diferentes áreas do Direito e esferas da Justiça ocorridos no ano que termina.


Lourival J. Santos - SpaccaSpacca" data-GUID="lourival_santos.jpeg">A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (artigo 102, III, parágrafo 1º CF c/c Lei 9882/92), de autoria do ilustre deputado Miro Teixeira, julgada, este ano, pelo STF, que retirou a lei de imprensa (Lei 5.250/67) do cenário jurídico do país, tornou-se o mote obrigatório a toda e qualquer retrospectiva que alguém decida fazer sobre o tema no curso do ano de 2009.

É bom salientar que na esteira desse procedimento constitucional a sociedade jurídica – e mesmo parte da política – se mobilizou e o tema, ao que consta, jamais foi tão discutido, por tantos, e em tamanha profusão.

O entusiasmo, porém, às vezes resvala o exagero e, nessa tônica, os defeitos da velha lei ganharam projeção geométrica, a ponto de ser transformada, do dia para a noite, segundo alguns, no celeiro dos mais ignominiosos ranços autoritários, impeditivos do pleno exercício do direito fundamental da pessoa, de livremente manifestar o seu pensamento e de expressar suas opiniões dentro de uma sociedade livre, o que serviu de justificativa para o seu imediato banimento do cenário jurídico do País.

Confesso que questionei esta posição e, até mesmo, o cabimento da argüição de descumprimento, por entender exagerado pensar que a sociedade brasileira estaria exposta, pela lei de imprensa, ao risco de lesão irreparável a preceito constitucional fundamental, compreendido na dicção do artigo 1º da lei 9882/99. Até porque, como frisam Nelson Nery Junior e Rosa M. de Andrade Nery [1], somente “os preceitos que têm magnitude máxima na ordem constitucional é que se caracterizam como fundamentais para os efeitos previstos no art. 102, § 1º da CF”.

Ainda que não primasse pela perfeição quanto à redação, tampouco proviesse de um regime político de liberdade, a lei de imprensa, após ter sido, como o foi, completamente depurada pela Constituição de 88, a qual não recepcionou qualquer ranço autoritário do texto ordinário, por absoluta incompatibilidade com o modelo democrático ditado pela Carta e, após ter sido submetida à orientação jurisprudencial, na parte em que não foi enjeitada pelo Texto Supremo, o que a alinhou à estrutura jurídica em vigor no país, não poderia, segundo meu despretensioso entendimento, ser considerada motivo de grave lesão a preceitos de relevância dentro do conjunto normativo constitucional ou causa de eventual desequilíbrio aos interesses sociais, a ponto de justificar a medida constitucional urgente.

Como pondera a ilustre civilista Maria Helena Diniz, está “ínsita no sistema a regra de que a nova Carta não repudia as normas anteriores com ela compatíveis.”[2]

Cheguei mesmo a pensar que a melhor solução teria sido a de manter a velha lei em vigor até que no Congresso se buscasse a edição de norma adequada que, no momento certo e com vantagem, pudesse substituir o antigo texto, sem colisão com a Lei Maior.

Julgamento da ADPF

A Argüição foi acolhida, concedida a liminar pleiteada, para suspender a aplicação de certos artigos da lei de imprensa e, finalmente, sob alentadas discussões no Supremo, sempre ricas em conteúdo, julgada procedente, com a decisão de que a lei de informação, por descumprir preceito superior, era incompatível com a norma constitucional e, portanto, inconstitucional.

A decisão, cujo relator foi o ilustre Ministro Ayres Brito, contou com votos parcialmente contrários dos Ministros: Joaquim Barbosa e Ellen Gracie, ambos com linhas de argumentação coincidentes; do Presidente da Corte, Ministro Gilmar Mendes, também parcialmente vencido e do Ministro Marco Aurélio Mello, vencido integralmente, uma vez ter votado pela improcedência da Argüição.

O culto relator, em seu voto, declarou-se convencido da impossibilidade jurídica de se “normatizar” ou “relativizar” o que foi constitucionalmente: “concebido por modo absoluto como condição de garantia de sobre-eficácia do querer normativo da Constituição em tema tão cultural e politicamente sensível como é a liberdade de imprensa”.

Arrazoou, com firmeza, que: “nenhuma lei pode ir além do que já foi constitucionalmente qualificado como livre e pleno, a idéia mesma de uma lei de imprensa em nosso País soaria como inescondível tentativa de embaraçar, restringir, dificultar, represar, inibir aquilo que a nossa Lei das Leis circundou com o mais luminoso halo da liberdade em plenitude”.

Justiça seja feita, pode-se até discutir a latitude dos efeitos do julgamento, porém jamais alhear-se do fato de que desde Rui Barbosa e seus célebres escritos e discursos em defesa da imprensa livre, não se tinha, de parte de nenhum dos poderes constituídos, como agora do Judiciário, pela voz da Suprema Corte, um tão vibrante testemunho em louvor do valor social de maior grandeza dentro da democracia, que é o representado pela livre manifestação do pensamento e das idéias, sem a possibilidade de cerceio.

Apropriado celebrar, no encerramento deste tópico, o grande tribuno Rui Barbosa, numa de suas indeléveis orações sobre o tema: “de todas as liberdades é a da imprensa a mais necessária e mais conspícua: sobranceia e reina entre as demais. Cabe-lhe, por sua natureza, a dignidade inestimável de representar todas as outras”. [3]

É necessário uma Lei de Imprensa?

Alguns defendem a edição de uma norma especial, por entenderem que o direito comum não seja capaz de regrar a matéria com a necessária eficácia, por carecer de dispositivos adequados à regulação de certos preceitos disciplinados pela antiga lei.

Exemplo sempre citado é o pedido de resposta (art.29 e segs. da Lei 5250/67), o qual, muito embora esteja previsto, expressamente, na Constituição (art.5º, V, CF), descontém, o sistema legal, regras adjetivas a disciplinar o seu procedimento.

Outros receiam que nas reparações por dano moral, a regulação da matéria pelo Código Civil possa conduzir à interpretação de que os casos específicos passem a ser compreendidos dentro do contexto da responsabilidade objetiva ou da livre avaliação do risco, prevista no § único do art. 927 do CC: “Haverá obrigação de reparar o dano independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano, implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem”.

No terreno penal, temem que a legislação comum seja insuficiente para encampar as especificidades que caracterizam os delitos, fato que, de per si, justificaria a edição de norma especial. Citam, como perda, o artigo 27 e incisos da lei antiga, que afastava, do âmbito das manifestações abusivas, as críticas jornalísticas realizadas em função do interesse público, entre outras razões de não-abuso, taxativamente elencadas.

Reflexão sobre pontos destacados

Pedido de resposta. Procedimento sumário, cujo objetivo era o de fornecer, a quem se julgasse ofendido ou acusado por matéria jornalística, um mecanismo, rápido e objetivo, para a obtenção de resposta ou retificação do que fora divulgado e que, eventualmente, pudesse repor os fatos aos seus devidos lugares, sem a necessidade da adoção de medidas mais drásticas.

Estando previsto na Constituição (Art. 5°, inciso V), que lhe impõe parâmetros quanto à proporcionalidade, não há dúvida sobre a sua possibilidade jurídica, mesmo após o banimento da antiga lei. Pela ausência de texto legal específico, a jurisprudência, certamente, será a fonte adequada para o estabelecimento dos limites à obtenção judicial da resposta, assim como ao pedido de explicações, hoje somente previsto no art. 144 do CP.

Sobre a natureza jurídica do pedido de resposta, alguns entendem que ele melhor se adequaria, ao contrário do que previa a antiga lei, como procedimento civil. Penso que não, por se tratar de mecanismo jurídico voltado à busca de esclarecimento público da intenção do agente sobre matéria jornalística. O objetivo do pedido é o eventual esclarecimento de que erronias ou acusações, constantes da publicação, foram ou não intencionais, o que afasta a possibilidade da medida ser civil, quando se sabe que a intenção não é atributo da culpa.

Responsabilidade Civil Objetiva. Os defensores desta tese incluem a imprensa no rol das atividades definidas como de risco e, portanto, sujeita às regras da responsabilidade derivada do chamado “risco exagerado” (§ único do art. 927, CC), que se materializa independentemente da culpabilidade do agente e da existência de prova sobre o nexo causal entre a infração cometida e o dano sofrido (art. 186 do CC), tese com a qual não se pode absolutamente concordar.

A imputação independente de culpa (§ único do art. 927 do CC) constitui-se exceção dentro da regra geral da responsabilidade subjetiva adotada pela lei civil (art. 186, CC), tanto que sua existência jurídica está condicionada a previsão em lei específica, ou em contrato, em casos extraordinários.

A esse respeito o ilustre professor Humberto Theodoro Júnior destaca, com precisão, que “a teoria do risco, se adotada como cláusula geral, levaria a extremos de injustiça e a situações completamente indesejadas, porque nocivas ao equilíbrio das relações jurídicas e à paz social”.[4]

A mim é evidente a impossibilidade jurídica de se cogitar de responsabilidade objetiva no exercício da liberdade de expressão do pensamento e da informação, que se constitui direito fundamental, consagrado em cláusula pétrea pela Constituição Federal, e que representa a condição basilar do exercício pleno da cidadania no estado democrático de direito.  

A atividade de imprensa, em realidade, advém da conjugação de dois direitos pétreos, o de informar e o de ser informado, binômio que compõe a viga mestra (Art. 5º, IX e XIV, CF) da democracia.

Considerar como atividade de risco o exercício de dois direitos pétreos e basilares do modelo político adotado pelo Estado é contestar a integridade desse direito, ao qual, como disse S.Exa. o Ministro Ayres Brito, em seu voto: “… a Lei das Leis circundou com o mais luminoso halo da liberdade em plenitude”.

O V. Acórdão acentua que: “… antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras.”.

Legislação penal. Um dos pontos tidos como de reflexo negativo no campo penal é o artigo 27 da lei anulada, que relacionava os casos que não constituíam abuso no exercício da crítica jornalística.

Ainda que num primeiro momento a perda do precitado artigo possa parecer um fator desfavorável à liberdade de crítica jornalística, concluo que esse fato não tenha tal significância.

De um lado a Constituição prevê, como direito fundamental, a liberdade de informação sem qualquer censura ou barreira e, de outro, o direito do indivíduo de ter livre acesso à informação. Destarte, o interesse público que desperta a notícia, o jornalismo e a crítica jornalística, está mais do que consagrado no Texto Supremo não necessitando de legislação especial regulatória.

O ilustre Ministro Celso de Mello, no seu voto, destaca, com precisão, que: “o direito de crítica encontra suporte legitimador no pluralismo político, que representa um dos fundamentos em que se apóia, o próprio estado de direito” (art. 1°, inciso V, CF).

Ademais, o fato dos incisos do artigo 27 da antiga lei terem sido redigidos como numerus clausus, configurava fator restritivo em relação ao todo não expressamente articulado. Como a Constituição atual, no terreno da comunicação, consagra a liberdade plena, isto está a reforçar que não houve perda na revogação do texto.

Assinale-se que o inciso I do referido art. 27 encontra-se reproduzido no inciso II do art. 142 do CP.

Aspectos da Lei de Imprensa já regulados pelo direito comum

Muito antes mesmo do julgamento da Argüição, o prazo decadencial para as ações por danos moral e material, que era originalmente o trimestral previsto pela lei de imprensa (art. 56), passou a ser o trienal previsto pela lei civil (art. 206 § 3º,V, CC).

Os prazos processuais seguiram as regras do CPC (art. 297);

Os valores indenizatórios, que eram escalonados, segundo a lei de imprensa (artigos 51, incisos de I a IV e 52, caput), de há muito também passaram a ser arbitrados judicialmente. Esta matéria foi pacificada pela Súmula 281 do STJ: “A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na lei de imprensa”.

Ao STJ hoje é dado o controle do quantum arbitrado a título de dano moral, a fim de se evitar abusos ou exageros na sua quantificação (STJ, 4ª T., no AI 244.708/99).

 A fixação deverá ser realizada com moderação, equidade e equilíbrio, de modo a resultar em aplicação criteriosa, justa e, sobretudo, evitar o enriquecimento sem causa (art.884, CC).

Considerações finais 
Considerando que o Supremo decidiu ser descabida a edição de uma lei para a regulação do direito de imprensa; que grande parte das previsões da lei anulada já está contemplada pelo direito comum e pacificada pela jurisprudência e, mais, que qualquer projeto de nova lei terá um prazo de tramitação indefinido dentro Congresso, por pura lógica e pragmatismo entendo ser desaconselhável despender-se esforços para a votação de nova lei.

 Para ilustrar, nos últimos 20 (vinte) anos foi apresentada mais de uma centena de projetos de lei sobre a liberdade de imprensa no Brasil. Qualquer projeto, mesmo em caráter de urgência, tramitaria, no mínimo, pelos próximos 5 (cinco) anos, quando a matéria, a meu ver, estará  completa e perfeitamente pacificada e inserida no contexto do ordenamento jurídico do País.


[1] Constituição Federal Comentada, 2ª edição, Ed. Revista dos Tribunais, p.952

[2] Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, 11ª edição, Ed. Saraiva, p. 70

[3] Obras Seletas,Tomo VII, p. 158 (Dicionário de Conceitos e Pensamentos, Ed. Edart, p.193, Luiz Rezende de Andrade Ribeiro)

[4] Responsabilidade Civil Objetiva Derivada de Execução de Medida Cautelar ou de Antecipação de Tutela http://jus2.uol.com.br, p. 3

 

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