Ativismo indevido

É ilegal obrigar banco a instalar porta giratória

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16 de dezembro de 2009, 11h00

Ao decidir que o Banco Real deve instalar portas giratórias no RR-205/2004-007-18-00.3, o TST ordenou, com manifesto ativismo judicial, a prática de um ato ilegal.

Sobre a segurança das instituições bancárias existe lei específica tratando da matéria, na qual não se enquadram as famigeradas e constrangedoras portas giratórias. A ilegalidade decorre do desatendimento aos preceitos do art. 2º da Lei 7.02/1983.

O artigo 2º da referida lei reza que:
Artigo 2º – O sistema de segurança referido no artigo anterior inclui pessoas adequadamente preparadas, assim chamadas vigilantes; alarme capaz de permitir, com segurança, comunicação entre o estabelecimento financeiro e outro da mesma instituição, empresa de vigilância ou órgão policial mais próximo; e, pelo menos, mais um dos seguintes dispositivos:

I – equipamentos elétricos, eletrônicos e de filmagens que possibilitem a identificação dos assaltantes;
II – artefatos que retardem a ação dos criminosos permitindo sua perseguição, identificação ou captura; e
III – cabina blindada com permanência ininterrupta de vigilante durante o expediente para o público e enquanto houver movimentação de numerário no interior do estabelecimento.

De acordo com tais prescrições, pode-se inferir o seguinte:
1) o sistema de segurança das instituições financeiras deve incluir, obrigatoriamente, vigilantes, alarme que permita a comunicação segura entre o estabelecimento da instituição e outro da mesma entidade ou com a empresa de vigilância ou órgão policial mais próximo, e pelo menos um dos dispositivos aludidos nos incisos I a III, podendo incluir todos
2) os dispositivos previstos nos incisos I a III não incluem as famigeradas portas giratórias.

Com efeito, o inc. I refere a equipamentos elétricos, eletrônicos e de filmagens que possibilitem a identificação dos assaltantes. Desse enunciado legal ressaltam algumas inferências básicas: 1) trata-se de equipamentos cuja finalidade é exclusivamente de identificação; 2) pressupõe uma ação de assalto em andamento, isto é, já iniciada e anunciada à instituição financeira, pois do contrário não referiria a assaltantes.

O inciso II, alude a artefatos que retardem a ação dos criminosos e permita sua perseguição, identificação ou captura. Artefato é qualquer objeto do engenho humano, i.e., manufaturado, independente da tecnologia utilizada para sua construção e do mecanismo de funcionamento, podendo ser elétrico, eletrônico, magnético, eletromagnético, mecânico, etc. Com isso, o legislador ampliou o rol dos equipamentos que podem ser utilizados para identificar os assaltantes, previstos no item anterior, porém, ali, restritos aos que encerram tecnologia de funcionamento elétrica ou eletrônica. Trata-se de providência salutar, pois se houver interrupção no fornecimento de energia elétrica, poderá ocorrer de tais equipamentos ficarem temporariamente desativados, expondo a instituição aos riscos que com eles se pretendeu evitar.

Os artefatos previstos no inc. II podem também caracterizar-se por permitir um retardamento da ação dos criminosos. Este inciso deve ser bem entendido, para evitar a degradação da dignidade da pessoa humana, consistente na admissão de uma insurgência ou dominação, sempre constrangedora, do homem particular pelo homem particular, pois em nosso sistema impera o primado de que somente ao Estado, ente a que se delegou tal atribuição, é permitido controlar e coagir os indivíduos.

Assim, por criminosos deve-se entender assaltantes, como aludido no inciso anterior. A razão é mesmo singela. Rigorosamente, criminoso é quem sofre condenação penal definitiva. Antes disso não se pode afirmar ter o sujeito cometido crime, logo, não é possível dizê-lo criminoso. Demais disso, o crime que a Lei 7.102 visa a combater são os de roubo (CP 157) e furto (CP 155) de valores e/ou documentos do interior da instituição financeira, únicos a que se aplica ao agente a palavra “assaltante”. O legislador brasileiro sói incorrer no vezo de utilizar palavras sinônimas ou analógicas, tais aquelas que apresentam ligeira variação semântica entre si, para designar indiferentemente o mesmo objeto de cognição só para não incorrer na monotonia da repetição de um mesmo vocábulo. Isso pode, por vezes, confundir e levar à dúvida e a interpretações dissonantes com o espírito da norma. Parece-me ser o caso do inc. II relativamente à palavra “criminosos”, que, na verdade, indica a vontade do legislador em não repetir-se empregando novamente “assaltantes”, já utilizada no inciso anterior.

Além disso, o inciso II prevê que tais artefatos sejam capazes de retardar a ação dos assaltantes. Ora, retardar não pode ser entendido aí com relação de sinonímia com prevenir, por mais que a medida profilática afigure-se racionalmente mais atraente, razoável, adequada e eficaz. Retardar significa atrasar, tornar tardio, fazer chegar ou começar mais tarde. Sob tal perspectiva, só se retarda uma ação que ou já iniciou, hipótese em que seu termo final é que é protraído, ou iniciar-se-á inexoravelmente, independentemente do esforço de preveni-la. Prevenir uma ação, por outro lado, é impedir que ocorra. A ação preventa jamais terá início, portanto, não se pode dizer que foi retardada. O significado de prevenção está fora do espectro semântico do de retardamento.

O vocábulo foi bem empregado pelo legislador, que mostrou uma preocupação específica com o tipo de ato coibido. Uma pessoa pode estar, por exemplo, portando uma arma, mas não ser assaltante nem ter nenhuma pretensão de roubar a instituição financeira à qual se dirige para utilizar os seus serviços. Se esta pessoa estiver incursa no crime de porte ilegal de arma, qualquer do povo poderá prendê-la em flagrante delito, mas ela não representa a ameaça que a Lei 7.102 pretende combater. Portanto, a situações como tais não se aplicam as disposições desse diploma legal.

Concluo, o retardamento previsto na lei é de chegada, isto é, de conclusão da ação delitiva. Posto em outros termos, o artefato escolhido pela instituição financeira deve ser capaz de atrasar o término da ação dos assaltantes.

Além disso, deve ser capaz de permitir sua perseguição ou captura. Perseguir é ir ao encalço de, enquanto capturar é prender, impedir que se evada.

Ora, as portas giratórias não cumprem nenhuma dessas finalidades: a) não permitem a identificação dos assaltantes, o que somente se consegue por meio de câmeras de filmagem; b) não atrasam a conclusão da ação dos assaltantes, mas impedem que ela se inicie, já que a ação sequer será anunciada a partir do lado de fora do estabelecimento financeiro; b) não permitem a perseguição ou captura dos assaltantes, que por não iniciarem a ação, não poderão ser acusados de roubo, nem mesmo de tentá-lo.

O artefato previsto no inciso II deve ser capaz de identificar os assaltantes, como, por exemplo, uma cabine onde a pessoa ingressa e apresenta um documento para ser anotado por funcionário do estabelecimento e só depois ter seu acesso ao interior do estabelecimento liberado. Deve ser capaz de retardar a ação dos criminosos. Um tal equipamento deve, portanto, dificultar ou impedir que os assaltantes deixem o local depois de iniciarem o assalto. Somente assim estará atendida mens legis, pois, no primeiro caso, retarda a ação; no segundo, permite a captura dos assaltantes. Definitivamente, as portas giratórias não se prestam a nenhuma dessas funções.

O inciso III não interfere nos direitos que asseguram a dignidade humana, o seu cumprimento não tem o potencial lesivo de gerar constrangimento para os usuários dos serviços bancários e afetar direitos com assento garantido na Constituição Federal.

Pondere-se, ainda, que o argumento de que tais equipamentos colimam prover a segurança dos utentes de serviços bancários é falacioso. A segurança do público ficaria muito mais garantida se não houvesse vigilantes portando armas letais que se opusessem à ação dos assaltantes. O assaltante que não encontra resistência não atira a esmo e não fere ninguém (aliás, esse foi o lema adotado na campanha do desarmamento que vê as pessoas como incapazes de se defenderem ou de decidirem se querem ou não defender-se pessoalmente). Tampouco poderá haver vítima de bala perdida se não ocorrer confronto armado entre assaltantes e vigilantes ou policiais. Na verdade, o que se deseja é a segurança patrimonial da instituição financeira para salvaguardar os valores nela depositados e que pertencem a terceiros.

Assente essa realidade, é razoável desejar tal segurança. Mas não à custa da dignidade e do constrangimento das pessoas ordeiras, em muito maior número, que hoje têm de provar não ser uma ameaça potencial ao banco pelo só fato de utilizarem equipamentos de última geração tecnológica como celulares, chaves de carro e de casa, estarem portando moedas, etc. A segurança pode ser obtida por outros meios, aliás, muito mais eficazes, como, por exemplo, situar os caixas atrás de um balcão elevado, com vidros blindados e uma pequena fenda por onde passariam notas, documentos, moedas, e outros papéis, sem nenhuma chance para os assaltantes terem contato direto com o setor onde a instituição manipula os recursos e valores monetários. O funcionário se comunicaria com o usuário por meio de um sistema de microfone e alto-falantes, como já ocorre nas bilheterias do Metrô e cinemas da capital de São Paulo. 

Por essas breves razões, sem que elas representem ou pretendam esgotar o tema, são ilegais as decisões que obrigam as instituições financeiras à instalação de portas giratórias. Por outro lado, as decisões que julgam as portas giratórias ilegais devem também indicar a existência de alternativas como uma forma pedagógica de sinalizar o caminho para a melhor solução, conciliando o direito de segurança patrimonial com a garantia da dignidade da pessoa humana, que não deve ser constrangida como se fosse um assaltante em potência só porque necessita dos serviços bancários. Afinal, o patrimônio não vale mais do que a pessoa natural guarnecida de todos os atributos de sua personalidade, como reconhecidos pelo direito dos dias atuais. 

Em suma, estas a linhas mestras dos fundamentos por que são ilegais as portas giratórias, as quais não atendem às finalidades previstas na lei de regência. 

A exegese aqui conferida foi integralmente adotada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo na Apelação Cível nº 432.693-4/1-00, que condenou o banco a pagar indenização por dano moral a usuário dos serviços bancários constrangido pelo emprego dessas máquinas de constrangimento chamadas portas giratórias.
Clique aqui para ler o acordão do Tribunal de Justiça de São Paulo. 

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  • Brave

    é advogado, diretor do Departamento de Prerrogativas da Federação das Associações dos Advogados do Estado de São Paulo (Fadesp) e mestre em Direito pela USP.

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