Advocacia pública

Valores perdem espaço com novas posturas da AGU

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14 de dezembro de 2009, 14h34

A Advocacia Pública Federal passa por um singular, instigante e desafiador processo de transformações profundas de procedimentos e comportamentos. Trata-se de uma fase de transição cultural que deixa para trás uma certa forma de exercer a advocacia pública e inicia o desenvolvimento e a utilização de ferramentas e instrumentos ajustados a um novo padrão de desempenho dos advogados públicos. Neste momento, valores do passado, construídos e assentados durante décadas, perdem continuamente força e sentido diante do surgimento de novos paradigmas de atuação funcional.

Um dos mais emblemáticos exemplos da velha forma de atuação no seio da Advocacia Pública Federal reside na diretriz, delineada e alimentada durante anos, de que o advogado público deveria manejar todos os recursos processuais possíveis, adiando indefinidamente o término do processo judicial e, na medida do possível, percorrendo todas as instâncias do Poder Judiciário.

Ilustram bem esse último aspecto da questão em debate os termos da Lei nº 9.469, de 1997, do Decreto nº 322, de 1991, e da Portaria PGF nº 86, de 2003. Segundo o art. 4º da citada Lei nº 9.469, de 1997: “não havendo Súmula da Advocacia-Geral da União (arts. 4º, inciso XII, e 43, da Lei Complementar nº 73, de 1993), o Advogado-Geral da União poderá dispensar a propositura de ações ou a interposição de recursos judiciais quando a controvérsia jurídica estiver sendo iterativamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelos Tribunais Superiores”. Já o Decreto nº 322, de 1991, em seu art. 3º, comanda: “As Procuradorias-Gerais ou os departamentos jurídicos das autarquias, bem assim os órgãos jurídicos das fundações públicas federais recorrerão até a última instância possível, de toda decisão judicial concessiva de diferenças, aumentos ou reajustes de vencimentos ou remuneração, de reclassificação ou equiparação e de extensão de quaisquer vantagens a servidores públicos, dentro de suas respectivas competências jurisdicionais”. O art. 1º da Portaria PGF nº 86, de 2003, estabelece: “Determinar às Procuradorias Regionais Federais, Procuradorias Federais, Procuradorias Federais Especializadas, Procuradorias, Departamentos Jurídicos, Consultorias Jurídicas ou Assessorias Jurídicas das fundações e autarquias federais, inclusive as especiais, que se abstenham de fixar, em âmbito interno, e sem autorização do Advogado-Geral da União, qualquer orientação relativa ao não ajuizamento de ações ou à não interposição de recursos judiciais com base em jurisprudência de Tribunais”.

Assim, considerando o quadro normativo posto, poderíamos concluir no seguinte sentido: na ausência de súmula ou orientação formal do Advogado-Geral da União a interposição de recursos judiciais é obrigatória quando vencido o Poder Público. 

Ocorre que nos vários órgãos da Advocacia-Geral da União, notadamente nas unidades regionais da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), da Procuradoria-Geral da União (PGU) e da Procuradoria-Geral Federal (PGF), constata-se um quadro em que centenas ou milhares de recursos não são interpostos sem lastro em súmulas ou orientações do AGU (ou qualquer outra autoridade superior).

Não se trata, é bom registrar desde já, de um movimento de desobediência funcional, de protesto ou coisa parecida. Em verdade, a não interposição de recursos judiciais fora das hipóteses expressamente autorizadas pelo Advogado-Geral da União é uma das mais claras manifestações da existência de um importante processo de transição cultural na Advocacia Pública Federal, anunciado já no primeiro parágrafo deste escrito.

A não interposição de recursos judiciais, nos níveis atualmente observados na Advocacia Pública Federal, decorre de algumas preocupações ou influências bem claras. São as seguintes as razões mais significativas para o processo em curso (algumas delas devidamente explicitadas e outras implícitas na atuação dos advogados públicos federais): a) consciência de que a mera protelação do reconhecimento de direitos não concorre para a realização do interesse público e para o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito; b) alinhamento com o movimento institucional de redução: b.1) do tempo para a conclusão da prestação jurisdicional e b.2) da quantidade de processo em tramitação no Judiciário e c) exercício mais consistente do espaço de independência técnica (relativa) do advogado público federal.

As várias modificações (constitucionais e infraconstitucionais) no quadro normativo regulador da prestação jurisdicional (no direito processual) são, ao mesmo tempo, influências decisivas para a atuação dos advogados públicos federais na seara recursal e fundamentos jurídicos para caracterizar a licitude da não interposição de recursos em inúmeras situações não tratadas explicitamente pelo Advogado-Geral da União.

Assim, a repercussão geral (no âmbito do STF), os recursos repetitivos (no âmbito do STJ), as súmulas vinculantes, a duração razoável do processo (art. 5º , inciso LXXVIII, da Constituição), entre outros, apontam, como dito anteriormente, para abreviar a duração do processo judicial e para reduzir o número de feitos em tramitação. Nessa linha, é perfeitamente lícita a não interposição de um recurso que afrontaria a jurisprudência dominante do Tribunal destinatário da irresignação, ou de Tribunal Superior. Afinal, nos termos do art. 557, do Código de Processo Civil, o relator do recurso negaria seguimento ao mesmo. 

Evidentemente, a consideração anterior não afasta os eventuais procedimentos de controle voltados para identificar que se trata efetivamente de um caso em que legislação processual, ou outro vetor presente na ordem jurídica, aponta para a não interposição do recurso, em tese, cabível.  Também não pode ser utilizada: a) como “desculpa” para a falta de combatividade na defesa do interesse público; b) para a consagração de meros entendimentos pessoais “caprichosos” e c) para a ausência de uma ação “especial” voltada, quando for o caso, para a tentativa de reversão da jurisprudência consolidada em certo sentido.

Destaque-se que o movimento pela não interposição automática de recursos judiciais vem “de baixo”, emerge das “bases”, impõe-se como uma “prática” do dia-a-dia dos advogados públicos federais. Assim, o “motor” das mudanças na Advocacia Pública Federal reside na atuação diária dos advogados públicos. Em suma, quem fixa os contornos da nova Advocacia Pública Federal são justamente os advogados públicos federais no seu labor diário.

Por ser um “movimento espontâneo”, que dá forma a tendências, que materializa novas concepções, num contexto mais amplo de avanços e recuos institucionais, encontra uma normatização reduzida e esparsa (normalmente a partir de iniciativas localizadas nas unidades regionais da AGU). Outro importante aspecto digno de nota consiste na falta de uniformização dos procedimentos utilizados nos casos de não interposição de recursos. Nesse último campo, são encontradas unidades em que o advogado público federal: a) simplesmente deixa de interpor o recurso (sem qualquer registro ou justificativa); b) viabiliza algum tipo de registro, físico ou eletrônico, da ocorrência; c) justifica, em nota interna e sozinho, a não interposição do recurso e d) justifica, em nota interna e com o superior imediato, a não interposição do recurso.

Por fim, cabe uma palavra acerca do papel das direções dos órgãos jurídicos nesse contexto de delicada e significativa transição cultural, notadamente os vértices, os dirigentes máximos, da Advocacia-Geral da União (AGU), da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), da Procuradoria-Geral da União (PGU), da Procuradoria-Geral Federal (PGF), da Procuradoria-Geral do Banco Central (PGBC), da Consultoria-Geral da União (CGU), da Corregedoria-Geral da Advocacia da União (CGAU) e da Secretária-Geral de Contencioso (SGCT).

A principal missão ou papel das direções dos órgãos jurídicos no contexto atual consiste em dar vazão ou concretude ao processo de transformação (e de afirmação) em curso. Não se trata, contudo, de funcionar como simples “caixa de ressonância”. Existe um papel ativo a ser desempenhado, notadamente: a) na avaliação e inserção no quadro político-institucional (buscando aliados e contornando obstáculos e adversários); b) na identificação do momento e da forma de avançar; c) no reconhecimento do momento de recuar e d) na definição da melhor formatação das normas necessárias para efetivar o novo perfil da Advocacia Pública Federal.

Nos últimos dois anos (2007 a 2009), sob a firme liderança do Ministro José Antonio Dias Toffoli, foi formada uma competente e diversificada equipe de trabalho na direção máxima da AGU impregnada do propósito de contribuir decisivamente para a construção de uma nova Advocacia Pública Federal. Os resultados obtidos foram expressivos e prepararam o “ambiente” para vôos mais altos em futuro (que se espera) breve.

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