RETROSPECTIVA 2009

2009 foi o ano da crise da globalização

Autor

  • Eduardo Felipe Pérez Matias

    é sócio de Nogueira Elias Laskowski e Matias Advogados. Doutor em Direito Internacional pela USP e autor dos livros A Humanidade contra as cordas: a luta da sociedade global pela sustentabilidade e A humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global vencedor do Prêmio Jabuti. Twitter: @EduFelipeMatias

14 de dezembro de 2009, 15h11

Este texto sobre Direito Internacional faz parte da Retrospectiva 2009, série de artigos sobre os principais fatos nas diferentes áreas do Direito e esferas da Justiça ocorridos no ano que termina.

Eduardo Felipe Matias - SpaccaSpacca" data-GUID="eduardo_felipe_matias.png">Introdução
Diversos acontecimentos marcaram 2009 no plano internacional. Nesta retrospectiva, no entanto, nos concentraremos em alguns assuntos de caráter econômico ou comercial que foram destaque neste ano. Nesse sentido, 2009 foi, principalmente, o ano da crise financeira internacional – iniciada em 2008 – e dos planos de recuperação concertados nos encontros do G20, que se consolidou como o mais importante foro de discussões sobre a economia mundial. Trataremos também da integração regional, com foco no Mercosul – lembrando os embates comerciais entre Brasil e Argentina, a perspectiva de adesão da Venezuela ao bloco e a retomada das negociações deste com a União Europeia (UE). Quanto a esta última, a questão de maior relevância foi a ratificação do Tratado de Lisboa, que promoveu alguns avanços nesse processo de integração.

A crise trouxe ainda, como veremos, um aumento do protecionismo. A Rodada Doha da Organização Mundial de Comércio (OMC) continuou emperrada durante todo o ano. De relevante para o Brasil, na OMC, o que se teve foi a decisão da disputa do algodão contra os Estados Unidos, que será aqui analisada. Por fim, não poderíamos deixar de abordar as discussões relacionadas ao combate ao aquecimento global, na espera dos resultados trazidos pela Conferência que está sendo realizada neste momento, em Copenhague.

Há vários outros eventos que merecem ser mencionados, mas que não serão objeto de análise nesta retrospectiva. Um exemplo foi a expedição de mandado de prisão pelo Tribunal Penal Internacional, logo no início do ano, contra o presidente do Sudão, Omar al-Bashir, por genocídio e crimes contra a humanidade, tornando-o o primeiro chefe de Estado no exercício do cargo, na História, a ser objeto de um mandado internacional de captura. Depois disso, em maio, o mundo manifestou grande preocupação com o anúncio pela Coréia do Norte de que teria realizado, com sucesso, novos testes nucleares – condenados pelo Conselho de Segurança da ONU, em reunião de emergência. O ano foi também marcado pelas discussões envolvendo o programa nuclear do Irã e pelos protestos, naquele país, contra a reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad.

Na América Latina, recebeu destaque a decisão da Organização dos Estados Americanos (OEA) de revogar a resolução de 1962 que havia expulsado Cuba da entidade, reabrindo a possibilidade de sua incorporação ao sistema interamericano. Em Honduras, uma crise política se instalou a partir da derrubada, em 28 de junho, do presidente Manuel Zelaya. O golpe militar foi condenado pela comunidade internacional – a Organização dos Estados Americanos negou a legitimidade do governo interino e fundos de ajuda econômica ao país foram cortados.

No último mês de novembro, foi eleito novo presidente, o candidato do Partido Nacional, Porfirio Lobo, o que pode significar o final do impasse. No Brasil, uma das principais discussões de caráter internacional foi a possível extradição do italiano Cesare Battisti. Em novembro, os ministros do Supremo decidiram, por 5 votos a 4, que Battisti pode ser extraditado, na medida em que o status de refugiado político, reconhecido pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, foi recusado – a decisão da extradição, entretanto, foi transferida ao presidente Lula. Passemos, então, à análise dos pontos selecionados.

A crise da globalização e o G20
O ano de 2009 começou acusando os efeitos da crise financeira iniciada em 2008. Para combater o problema, os líderes do G20 se reuniram duas vezes neste ano, a primeira delas em Londres, no mês de abril, e a segunda em Pittsburgh, em setembro. Na reunião de cúpula de Londres, os governos do G20 pretendiam demonstrar haver chegado a um consenso sobre como combater a crise.

Tinham, ainda, a missão de delinear uma arquitetura regulatória capaz de impedir que algo similar ocorra novamente. Atingiram mais o primeiro do que o segundo objetivo, ao prometerem injetar generosos recursos no FMI, parte deles para financiar o comércio internacional em queda. Para tentar prevenir crises futuras, criou-se o Conselho de Estabilidade Financeira, que deverá fornecer alertas prévios sobre riscos macroeconômicos, resolveu-se sujeitar os paraísos fiscais a sanções caso não forneçam informações às autoridades de outros países, e decidiu-se supervisionar as agências de classificação de crédito, para prevenir conflitos de interesses. Adicionalmente, o G20 se comprometeu a estender a regulação e a supervisão a todas as instituições e instrumentos financeiros sistemicamente importantes, incluindo os fundos de hedge.

Boa parte dessas resoluções relacionadas à prevenção de crises futuras, no entanto, não avançou. Foi o que aconteceu também com a discussão sobre a legitimidade do FMI, onde os países emergentes precisam ganhar mais voz. Isso foi reconhecido pelo G20, refletindo a relevância alcançada pelas economias de alguns desses países no mundo atual. Contudo, a redistribuição do poder de voto na instituição ficou mesmo para 2011, mantendo as distorções que conferem aos EUA – ironicamente, o epicentro da crise – um poder de veto na instituição.

A dúvida agora é se, com a retomada do crescimento econômico, ocorrida já no final de 2009, alguns dos compromissos assumidos pelo G20 ficarão apenas no plano das boas intenções. Seria uma pena, porque a impressão que se tinha era a de que, após a crise, seria possível falar-se em um novo “Consenso de Londres”, baseado em duas constatações principais: a primeira seria o reconhecimento da importância do papel indutor e regulador do Estado e do fato de este ainda ser a principal fonte de legitimidade; a segunda se referiria à cooperação internacional, imprescindível devido ao aumento da interdependência – “uma crise global requer uma solução global”, como afirmou naquela ocasião o primeiro ministro britânico, Gordon Brown. Logo, para ser efetivo, o papel dos Estados deve ser exercido coletivamente (e, nesse sentido, até a própria legitimidade de um grupo restrito como o G20 pode ser questionada, apesar de este ser mais representativo do que o G8).

Olhando para trás, a conclusão a que se chega é de que esta foi, na verdade, uma crise da globalização. Foram as características desse processo e a falta de instituições que o regulassem adequadamente que nos conduziram a essa situação. A fraca regulamentação, o surgimento de produtos financeiros exóticos e obscuros, a forma de avaliação de riscos, entre outros aspectos, tinham mais a ver com a ganância em obter lucros e bônus de final de ano do que com o objetivo de estabelecer um ambiente econômico sadio. Nesse contexto, o curto prazo tende a prevalecer sobre o longo prazo, e os interesses particulares, sobre os públicos. É para evitar que isso siga ocorrendo que se faz urgente reestruturar a ordem mundial e repensar profundamente a governança global.

Comércio Internacional/ OMC
Protecionismo/Doha
Entre as diversas promessas feitas pelo G20 em 2009 que correm o risco de não sair do papel, estão a do combate ao protecionismo e a da rápida retomada da Rodada Doha de negociações comerciais, no âmbito da OMC.

A crise econômica abateu o comércio internacional, levando a uma queda de 11% dos fluxos comerciais em 2009, segundo dados da OMC. O que se viu nesse período foi a adoção de pacotes para apoiar as indústrias nacionais, o aumento de tarifas e mais medidas não-tarifárias e de defesa comercial. Sabendo que o protecionismo é um dos principais fantasmas que assolam o mundo em tempos de crise, o G20 reafirmou e estendeu até o final de 2010 seu compromisso (assumido em sua reunião anterior, em novembro do ano passado) de não impor novas barreiras comerciais. A promessa anterior, entretanto, já havia sido quebrada por boa parte desses mesmos países e, pelo visto, continuará sendo desrespeitada. Em levantamento feito em meados de 2009, o Global Trade Alert – centro de estudos financiado pelo Banco Mundial e pelo governo inglês – mostrou que, até então, desde o agravamento da crise, em setembro do ano passado, aproximadamente três medidas que distorcem o comércio internacional haviam sido adotadas por semana.

A conclusão da Rodada Doha – que, estima-se, traria ganhos de 150 bilhões de dólares anuais para a economia mundial –, parece distante, apesar de o G20 também ter reafirmado a urgência de se retomarem essa negociação. A última chance de que isso acontecesse neste ano se deu na reunião ocorrida em Genebra, agora em dezembro, que só serviu para tornar evidente o clima de troca de acusações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Ao menos, no mesmo encontro, confirmou-se o projeto de um futuro espaço econômico do Sul – um acordo multilateral entre países em desenvolvimento, com previsão de corte tarifário de 20% sobre a importação de produtos agrícolas e industriais.

Brasil x EUA – Disputa do Algodão
2009 foi marcado pela decisão final a respeito da disputa do algodão, envolvendo Brasil e Estados Unidos, que se arrastara por sete anos. O caso, iniciado pelo Brasil em setembro de 2002, se referia aos subsídios concedidos pelos Estados Unidos a produtores e exportadores de algodão entre os anos de 1999 e 2002. Nesse período, segundo cálculos apresentados, esses subsídios teriam alcançado US$ 12 bilhões, provocando uma baixa dos preços internacionais do algodão, a exclusão do Brasil de determinados mercados estrangeiros e a elevação da fatia norteamericana no comércio mundial do produto para 39%. Em setembro de 2004, o grupo especial (panel) escolhido para julgar o caso aceitou as principais alegações apresentadas pelo Brasil.

Os Estados Unidos recorreram dessa decisão e, em março de 2005, o Órgão de Apelação confirmou a condenação anterior. Porém, as medidas adotadas por aquele país para adequar seus programas às recomendações do Órgão de Solução de Controvérsias não foram satisfatórias. Isso levou o Brasil a acionar novamente esse órgão que, no último 31 de agosto, concedeu ao Brasil o direito de retaliar os Estados Unidos em US$ 294,7 milhões. O limite para essa retaliação é variável, dependendo dos subsídios ilegais concedidos a cada ano, e foi calculado com base em dados de 2006, podendo aumentar consideravelmente levando-se em conta números mais atuais (para aproximadamente US$ 800 milhões, estima o Itamaraty, caso se baseie no ano de 2009).

Apesar da expressividade do montante – o segundo maior da história da OMC – o que mais chamou a atenção nessa decisão foi a possibilidade de aplicação da chamada “retaliação cruzada”, medida raramente autorizada. Assim, a reação brasileira poderá abranger não apenas no comércio de bens, mas também poderá ser aplicada sobre direitos de propriedade intelectual e serviços, sempre que os subsídios norteamericanos ultrapassem um determinado patamar. Uma das lógicas da retaliação cruzada é que, ao afetar outro setor igualmente poderoso dentro do país condenado (por exemplo, o farmacêutico), o país vencedor poderia contar com o apoio do lobby interno desse setor para forçar o perdedor a rever a legislação que viola as regras da OMC.

Para permitir a retaliação cruzada, o governo brasileiro apresentou projeto de lei que prevê a suspensão ou taxação das remessas de royalties, a quebra temporária de patentes, ou a abertura à importação de versões genéricas de medicamentos ainda não protegidos pela lei de patentes. Esse projeto poderá entrar em breve em vigor, na forma de medida provisória, ou aguardar a tramitação no Congresso, em regime de urgência.

Com relação à retaliação de bens, no mês de novembro foi apresentada para Consulta Pública uma lista preliminar contendo 222 produtos originários dos Estados Unidos que poderão ser objeto da retaliação comercial. A lista, composta de bens de consumo (64%) e bens intermediários (36%) que chega ao valor de US$ 2,7 bilhões, deve ser enxugada para um valor em torno de US$ 450 milhões, levando em conta interesses da indústria nacional e dos consumidores. A partir das respostas recebidas, deve-se reduzir a relação inicial de produtos, que será então levada à aprovação do Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior (Camex). Uma vez aprovados, os produtos poderão ter seu imposto de importação aumentado em até 100%, a partir de janeiro de 2010.

O caso é um exemplo interessante de como um país em desenvolvimento enfrenta dificuldades para fazer valer seus direitos concretamente na OMC. A primeira delas é que, pela disparidade de tamanho entre as economias dos países desenvolvidos e as dos países em desenvolvimento, as sanções eventualmente aplicadas por estes últimos são pouco sentidas pelos primeiros. Além disso, as sanções aplicadas por um país em desenvolvimento podem ter efeitos negativos sobre esse mesmo país – por exemplo, o encarecimento de componentes importados utilizados na fabricação de seus produtos, ou o aumento no preço de determinadas mercadorias estrangeiras, prejudicando o bem estar de sua própria população.

Assim, apesar dos avanços nas resoluções dos conflitos comerciais recentes, ainda há a necessidade de uma evolução do sistema para que este se torne mais jurídico e menos político. Em outras palavras, os países em desenvolvimento dependem de novos aperfeiçoamentos desse sistema se quiserem contar com que, nas disputas comerciais internacionais, o Direito sempre prevaleça sobre o Poder.

Integração Regional
Mercosul: Brasil x Argentina
Ao longo do ano, as relações comerciais entre Brasil e Argentina enfrentaram fortes turbulências. A Argentina, receosa dos efeitos da crise internacional sobre sua indústria, apostou no protecionismo. Em março deste ano, ampliou em 58 o número de produtos brasileiros submetidos a medidas de avaliação prévia para entrada em seu território (o chamado licenciamento não automático). Não fosse já suficientemente extensa essa lista, na última semana de outubro, a Argentina acrescentou a ela mais 50 itens, chegando a 411 o número de produtos brasileiros que devem aguardar liberação para entrar naquele país.

Demorou um tempo, mas o Brasil reagiu. Em outubro, o país incluiu 35 produtos argentinos no licenciamento não automático, como farinha de trigo, vinho e frutas. Uma conseqüência desse maior controle foi a retenção de inúmeros caminhões provenientes da Argentina, muitos deles contendo produtos perecíveis. Uma segunda ação relevante do governo brasileiro foi a introdução da exigência de licenças para uma série de autopeças – vale lembrar que o setor automotivo representa 40% do comércio entre os dois países.

Esse panorama levou os governos de Brasil e Argentina a prever, para os próximos meses, reuniões periódicas de negociação e coordenação. Se esses encontros não trouxerem resultados práticos, a solução para o Brasil pode ser levar o caso à Organização Mundial do Comércio (OMC) ou a uma arbitragem no âmbito do Mercosul. Qualquer dessas duas últimas opções seria preferível à continuação na escalada de barreiras comerciais, que prejudicará cada vez mais ambos os países.

Venezuela e Mercosul
Outra questão que gerou polêmicas neste ano, pelo impacto que pode ter sobre o Mercosul, foi a adesão da Venezuela ao bloco. Este fato está prestes a se concretizar: depende só da aprovação do plenário do Senado brasileiro – que deverá ocorrer nos próximos dias – e do Paraguai.

Economicamente, a adesão da Venezuela é promissora, especialmente para o Brasil, cujas exportações para a aquele país aumentaram, no período de 1996 a 2008, mais de 930%. Temos apresentado sucessivos superávits em nosso comércio com a Venezuela desde 2001. No ano passado, esse superávit foi de mais de US$ 4 bilhões, o que representa quase 20% do saldo de nossa balança comercial. Porém, se o que se deseja com a entrada da Venezuela é impulsionar ainda mais suas relações comerciais com os países do bloco, seria de se esperar que a discussão sobre reduções tarifárias precedesse o seu ingresso. Infelizmente, no caso da Venezuela, a adesão vem sendo aceita antes mesmo de esse país acertar as concessões que fará na área comercial.

Por outro lado, politicamente, a entrada da Venezuela traz algumas complicações. A primeira delas está relacionada à estrutura do próprio Mercosul. Este surgiu com o objetivo de garantir a inserção competitiva de seus quatro participantes – Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – na economia mundial, seguindo uma fórmula conhecida como regionalismo aberto. Sua ambição não era exclusivamente a de ampliar o comércio entre seus participantes, que pretendiam, com a sua criação, somar forças e ganhar escala, aumentando seu peso no cenário internacional. O modelo escolhido foi o da União Aduaneira, que evita a burocracia e as ineficiências existentes em uma Zona de Livre Comércio, graças à adoção de uma Tarifa Externa Comum (TEC). A existência da TEC obriga os países membros do Mercosul a adotarem uma posição conjunta nas negociações internacionais em que tenham que fazer concessões que impliquem em reduções de alíquotas.

No Mercosul, as decisões são tomadas por consenso, tendo todos os seus integrantes o mesmo poder de voto e de veto. Quando seus países membros não se entendem, não há acordo. E há inúmeros exemplos recentes de ocasiões em que os países do Mercosul apresentaram divergências de opinião que levaram a impasses e a oportunidades perdidas. Tendo em vista que o Mercosul tem dificuldades para definir uma posição única, e que isso o tem prejudicado, é preciso avaliar se o ingresso da Venezuela aumenta ou diminui a harmonia do bloco. E nesse aspecto, a avaliação da Venezuela não pode ser separada da análise do comportamento do seu presidente.

O governo de Hugo Chávez tem sido acusado de cercear a liberdade da imprensa, de nacionalizar empresas privadas de forma arbitrária, de controlar tanto o Legislativo quanto o Judiciário de seu país. Será que, com tamanha concentração de poder em suas mãos, Chávez estará disposto a acatar as opiniões dos demais governantes do Mercosul?

Além disso, ao caminhar rumo ao autoritarismo, a Venezuela tornaria sua entrada incompatível com as regras do Mercosul. Isso porque ela deixaria de atender à “cláusula democrática” do bloco – que foi estabelecida em 1998, pelo Protocolo de Ushuaia, e prevê que a plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para esse processo de integração.

O Mercosul não conta com instituições fortes. Por isso, seu sucesso ou o seu fracasso dependem muito das atitudes dos seus governantes. Não é preciso muito esforço para perceber que o personalismo de Chávez pode fazer com que o ingresso da Venezuela no Mercosul acentue as dificuldades que esse bloco vem enfrentando há algum tempo.

Mercosul e União Europeia
Se, por um lado, as relações internas do bloco se mostraram um tanto quanto estremecidas, por outro, ao menos um projeto externo deixado de lado há tempos foi retomado. Trata-se da tentativa de criação de uma zona de livre comércio entre Mercosul e União Europeia (UE). Estagnado desde 2004, o projeto foi recentemente relançado na reunião de cúpula entre Mercosul e UE, no último dia 6 de outubro, em Estocolmo. Nesse encontro, as partes se comprometeram a intensificar seus esforços para a retomada dos entendimentos, sendo este um momento favorável para isso – entre outros fatores, pela presidência espanhola da UE, a ser iniciada em janeiro de 2010, e pela ocupação da presidência da Comissão Européia pelo português José Manuel Durão Barroso.

No dia 5 de dezembro, UE e Mercosul fecharam um acordo de cooperação visando impulsionar a integração econômica e o desenvolvimento sustentável dos dois blocos. Para isso, prevê-se uma contribuição de 12 milhões de euros, em fundos não reembolsáveis, por parte da UE, e de 6 milhões de euros por parte do Mercosul.

Apesar das evoluções nas negociações e do acordo de cooperação firmado, devemos nos questionar se os mesmos desentendimentos internos do Mercosul ressurgirão em suas negociações com a UE, impedindo que o projeto de criação de uma área de livre comércio entre eles venha a prosperar.

União Europeia – Tratado de Lisboa
No contexto europeu, o tema de maior relevância do ano de 2009 foi a ratificação do Tratado de Lisboa pela República Tcheca – que era o que faltava para sua entrada em vigor. O Tratado, que altera, sem substituir, os tratados da União Europeia e da Comunidade Europeia atualmente em vigor, prevê instrumentos para procurar fazer face aos desafios futuros da UE.

Assinado em 13 de dezembro de 2007, o tratado busca, em primeiro lugar, trazer maior democracia e transparência para a UE. Prevê, inclusive, a possibilidade de participação popular por meio de petição de pelo menos um milhão de cidadãos de um número significativo de Estados-Membros. Ampliaram-se, ainda, os poderes do Parlamento Europeu, no que se refere à legislação e ao orçamento da UE.

Além disso, os Estados membros tiveram reconhecida, pela primeira vez, sua possibilidade de se retirar da União.

O tratado procurou aumentar a eficiência no processo de tomada de decisões: a votação por maioria qualificada no Conselho será estendida a novas áreas, de modo a acelerar o processo decisório e reforçar sua eficiência.

Outra novidade foi a criação do cargo de Presidente do Conselho Europeu, que terá a função de incentivar os trabalhos do Conselho, assegurando sua preparação e continuidade, em cooperação com o presidente da Comissão, e agindo para aumentar a coesão do órgão. As relações exteriores serão reforçadas pela criação do cargo de Alto Representante para Política Externa e de Segurança, que trará maior coerência e visibilidade para a ação internacional da UE.

Por fim, duas declarações encontradas no Tratado merecem destaque. A primeira estabelece que, se um Estado-membro for alvo de ataques terroristas ou vítima de desastres naturais provocados pelo homem, deverá receber o apoio e a solidariedade dos outros Estados-Membros. A outra afirma o compromisso da UE com a luta contra o aquecimento global – que, como veremos em seguida, foi um dos temas essenciais de 2009.

O combate às mudanças climáticas
As discussões sobre o aquecimento global se fizeram presentes ao longo de todo o ano, e chegam a seu momento mais importante agora em dezembro, quando representantes de 192 nações se encontram reunidos em Copenhague para a 15º Conferência das Partes (COP). Em alguns dias, poderemos avaliar se o encontro terá efeitos significativos, ou se ficará marcado como mais uma oportunidade perdida.

A necessidade de se chegar a um acordo se deve ao fato de que os compromissos do Protocolo de Kyoto – que demorou para entrar em vigor e não obteve até agora a redução de emissões de carbono que buscava – valem até 2012. Como é preciso tempo para que os países ratifiquem o novo tratado e este entre em vigor em 2013, a COP de Copenhague vinha sendo considerada a data limite para assegurar essa transição.

Entre os pontos relevantes de um possível novo acordo está a adoção do mecanismo conhecido como REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação), que pretende estabelecer uma compensação financeira aos países que conservem florestas, mas cujo formato resta indefinido. Fala-se na criação de um fundo internacional, bancado pelos países ricos, mas pode ser que ele seja introduzido como mecanismo de mercado, via MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), caso em que o REDD seria mais uma atividade elegível para a obtenção de créditos de carbono.

Porém, os pontos de maior controvérsia dizem respeito à adoção de metas mais significativas pelos países do Anexo I do Protocolo de Kyoto (países industrializados que assumiram metas obrigatórias de redução, até 2012, de 5% nas emissões de gases de efeito estufa em relação aos níveis de 1990) e pelos Estados Unidos, e à determinação de metas também para os países em desenvolvimento. Estas, por sua vez, continuam tentando fazer valer o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas – estabelecido pela Convenção Quadro sobre a Mudança do Clima, assinada no encontro do Rio de Janeiro, em 1992 – segundo o qual são os países ricos que teriam de fazer mais sacrifícios, por serem historicamente os maiores responsáveis pelas emissões de CO2. Essa idéia se soma à constatação de que as nações mais pobres são as mais vulneráveis ao aquecimento global, o que lhes daria direito a receber recursos financeiros e transferência de tecnologia para combater seus efeitos.

Esses fatores, em Copenhague, se acrescerão à dificuldade dos Estados Unidos em assumir metas obrigatórias, o que, sendo esse país fundamental na discussão, diminuirá as chances de se alcançar um tratado legalmente vinculante neste momento. Assim, aguardamos nos próximos dias que se chegue, ao menos, a um compromisso político de que as metas necessárias serão adotadas – um pequeno avanço no caminho da superação daquele que pode ser considerado o maior desafio que a humanidade já enfrentou.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo e D.E.A. pela Universidade de Paris II, sócio de L.O.Baptista Advogados, autor do livro A Humanidade e suas Fronteiras – do Estado soberano à sociedade global e ganhador do prêmio Jabuti

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