Segurança ameaçada

Leis não coibem entrada de celulares nas prisões

Autor

  • Renato Marcão

    é membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal Político e Econômico professor de Direito Penal Processo e Execução Penal (Graduação e Pós). É também autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva 2001); Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas (Saraiva 2004) e Curso de Execução Penal (Saraiva 2004).

1 de dezembro de 2009, 5h51

Não constitui novidade a quem quer que seja a complexidade dos problemas relativos às organizações criminosas e suas variadas maneiras de atuação, dentro e fora dos estabelecimentos penais, noticiada pela mídia tantas vezes, e que de maneira permanente tem ocupado a atenção dos estudiosos do Direito Penal e de outros variados ramos do conhecimento humano ligados à segurança pública, em sentido amplo.

Nada obstante algumas investidas do Poder Público contra a alarmante realidade que é “poder paralelo” em que o “mundo do crime” se transformou, as organizações criminosas se estabeleceram, cresceram e fincaram raízes profundas na sociedade e nos diversos segmentos da administração pública, inclusive e notadamente no âmbito de alguns de seus tentáculos destinados exatamente ao combate da criminalidade.

No manejo das atividades criminosas, o uso de aparelhos de telefonia celular se tornou componente de acentuada magnitude na agilização das negociatas, constituindo, ainda, uma das formas de se “fazer presente e ter voz ativa” dentro dos segmentos das facções que desafiam a vida ordeira, esteja o agente submetido ou não aos rigores de um estabelecimento penal.

Se na vida livre tal produto da tecnologia moderna tem se revelado valioso instrumento nas atividades ilícitas, estando o agente preso, com mais forte razão traduz mecanismo de grande valia no comando das práticas ilícitas e viabilizador de sua participação na rotina diária do empreendimento marginal, permitindo direto contato com seus pares em liberdade ou confinados em outros estabelecimentos penais, de forma a manter, e algumas vezes ampliar e até intensificar, as molduras do comando organizacional da realidade em que se inserem.

Bem por isso, desde o surgimento de tal aparato eletrônico passou-se a discutir a respeito de consequências jurídicas que devam ser impostas àqueles que se encontram no cumprimento de pena criminal e possuem e/ou se utilizam de tais aparelhos de telefonia celular no interior de estabelecimentos penais, bem como no tocante às medidas punitivas direcionadas àqueles que, de qualquer maneira, introduzem ou permitem a entrada dos mesmos aparelhos no ambiente carcerário, para utilização dos detentos.

A realidade exigiu e continua a exigir o pronunciamento da doutrina e dos tribunais, terminando por movimentar a máquina legislativa federal, quase sempre envolvida com seu próprio mundo marginal, como também é de sabença comum.

Instados inicialmente os Tribunais a se pronunciarem a respeito de configurar ou não falta grave no cumprimento de pena privativa de liberdade a conduta consistente em portar aparelho de telefonia celular no interior de estabelecimento prisional, a jurisprudência dominante firmou-se no sentido negativo, ou seja, de não configurar falta grave, isso em razão da inexistência de previsão legal tratando da matéria, conforme demonstram os julgados que seguem indicados. (STJ, HC 59.436/SP, 5ª T., j. 15-8-2006, v.u., rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJU, 4-9-2006, RT 855/568; STJ, HC 73.295/SP, 5ª T., j. 24-4-2007, v.u., rela. Ministra Laurita Vaz, DJU, 28-5-2007, RT 864/567; TJRJ, Ag. 2005.076.00233, 7ª Câm., j. 23-5-2005, v.u., rela. Desa. Maria Zélia Procópio da Silva, DORJ, 20-9-2006, RT 856/657; TJSP, AE 964.801.3/7-0000, 7ª Câm., j. 7-12-2006, v.u., rel. Des. Ivan Marques, RT 859/603; RJDTACrimSP 62/32; TJSP, HC 1.118.677-3/7, 1ª CCrim., rel. Des. Márcio Bártoli, j. 11-12-2007, v.u., Boletim de Jurisprudência do TJSP n. 138. Em sentido contrário, consultar: TJSP, HC 474.433.3/0, 4a Câm., rel. Des. Luís Soares de Mello, j. 14-6-2005, RT 842/533; TJSP, AE 00999728.3/4-0000-000, 5ª Câm. da S. Crim., j. 11-1-2007, v.u., rel. Des. José Damião Pinheiro Machado Cogan, RT 860/608-609)

Portar aparelho de telefonia celular no interior de estabelecimento prisional constitui falta grave no cumprimento de pena privativa de liberdade desde 29 de março de 2007.  A Lei 11.466/2007, que entrou em vigor no dia 29 de março de 2007, resolveu a discussão a respeito da matéria, ao acrescentar o inciso VII ao artigo 50 da Lei de Execução Penal, estabelecendo que constitui falta grave no cumprimento de pena privativa de liberdade, ter o preso em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo.


“A superveniência da Lei 11.466/2007, que alterou o artigo 50 da Lei 7.210/84, passando a prever como falta disciplinar grave a posse de telefone celular nas dependências do presídio, não alcança situações anteriores à sua vigência, em face do princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais gravosa” (TJSP, AE 01058130-3/5-0000-000, 1ª Câm. do 1º Grupo da S. Crim., j. 3-7-2007, rel. Des. Figueiredo Gonçalves, RT 866/643-644).

Também a Lei 11.466, de 28 de março de 2007, introduziu o artigo 319-A ao Código Penal Brasileiro, possibilitando punir com detenção, de três  meses a um ano, o diretor de penitenciária ou agente público que deixar de cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo.

A Lei 12.012, de 6 de agosto de 2009, introduziu o artigo 349-A ao Código Penal Brasileiro e passou a punir com detenção, de três meses a um ano, “ingressar, promover, intermediar, auxiliar ou facilitar a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento prisional”.

Por se tratar de infração penal de menor potencial ofensivo, encontra-se exposta ao procedimento dos Juizados Especiais Criminais, conforme decorre do disposto no artigo 61 da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995 (com a redação do artigo 1º da Lei 11.313, de 28-6-2006), e do artigo 394, parágrafo 1º, III, do Código de Processo Penal (com a redação da Lei 11.719, de 20-6-2008), pois a pena máxima cominada não é superior a dois anos.

Cuida a hipótese de crime comum, pois não se exige qualquer qualidade especial do agente, muito embora em boa parte das vezes terminará por alcançar funcionários públicos envolvidos com a administração do estabelecimento prisional visado pela prática criminosa, notadamente nas modalidades auxiliar ou facilitar, raciocínio que não exclui, evidentemente, a possibilidade da prática pelos mesmos funcionários públicos mediante a realização de qualquer dos outros verbos. Não se pode negar, é óbvio, que o funcionário público também poderá ingressar, promover ou intermediar a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento prisional, expondo-se, desta maneira, à incidência penal.

Muito embora o legislador não tenha dito, quando deveria, é inegável que a incidência típica somente surgirá quando a conduta tiver por objetivo proporcionar que o aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, seja introduzido no estabelecimento prisional para chegar em mãos de qualquer pessoa submetida a encarceramento por força de decisão judicial.

Só é punível a conduta dolosa. É de se exigir, ainda, a demonstração de dolo específico, evidenciado na intenção dirigida de fazer com que o aparato termine em mãos de quem não poderia recebê-lo em razão de estar submetido a estabelecimento penal. A regra não alcança o simples incauto.

Nesta exata medida, não pode se ver exposto à acusação criminal por incidência do artigo 349-A do Código Penal aquele que simplesmente ingressa ou tenta ingressar no estabelecimento penal trazendo consigo aparelho de telefonia celular, v.g.. É preciso que a conduta tenha por finalidade algo que verdadeiramente tem sentido punir nos moldes da tipificação trazida com a Lei 12.012, de 6 de agosto de 2009. O princípio da razoabilidade, dentre outros, assim determina.

A inovação revelada no artigo 349-A do Código Penal tem relação direta com o crime do artigo 319-A, do mesmo Codex, introduzido pela Lei 11.466/2007, que pune com iguais consequências penais “o diretor de penitenciária e/ou agente público que deixar de cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo”.

A regra, de tal maneira interpretada, não alcança os funcionários da administração penitenciária, os advogados ou qualquer outra pessoa que trabalhe ou se encontre nas dependências de determinado estabelecimento penal, exceto quando demonstrada a intenção de fazer com que o aparato eletrônico vá desaguar em mãos de qualquer pessoa submetida ao confinamento por decisão judicial.


Esta é a interpretação adequada. Este é o verdadeiro alcance que se deve emprestar ao artigo 349-A do Código Punitivo. A despeito da Lei 12.012, de 6 de agosto de 2009, não ter tipificado as condutas consistentes em possuir, portar ou utilizar aparelho de telefonia celular no interior de estabelecimento penal, impende anotar que as modalidades típicas que estão previstas também podem alcançar a pessoa do preso que se encontrar em estabelecimento penal, seja ele o destinatário ou não do aparelho de telefonia celular, ao contrário do que pode sugerir uma primeira e apressada leitura do novo tipo penal.

Não se pode excluir a possibilidade de algum preso, por exemplo, quando do gozo de permissão de saída (artigo 120 da Lei de Execução Penal) ou de saída temporária (artigo 122 da Lei de Execução Penal), ao retornar praticar uma das condutas reguladas.

Mesmo estando preso, dentro dos limites de estabelecimento prisional fechado, é possível que o agente venha a promover, intermediar ou auxiliar a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, naquele estabelecimento prisional em que se encontrar ou em outro.

Muito embora o novo artigo 349-A do Código Penal indique que as condutas nele previstas devam ser praticadas sem autorização legal para efeito de aperfeiçoamento da incidência típica, é força convir que, adotada nossa forma de interpretação, jamais poderá haver autorização legal, e menos ainda judicial ou administrativa, para o ingresso de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, em estabelecimento prisional, para dar em mãos de presos. As razões são evidentes.

Uma vez mais o Poder Legislativo disse menos do que deveria, assim como o Poder Executivo tem feito bem menos do que é sua obrigação no campo da prevenção e repressão criminal. A posse de aparelho de telefonia celular no interior de estabelecimento prisional configura falta grave no cumprimento de pena privativa de liberdade, nos moldes introduzidos pela Lei 11.466, de 28 de março de 2007, que também tipificou a condescendência criminosa do diretor de penitenciária e agente público, no ato de deixar de cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo.

O tipo penal que decorre da Lei 12.012, de 6 de agosto de 2009, não pune a posse, o porte ou a utilização de aparelho de telefonia celular no interior de estabelecimento penal, mas tem a pretensão de fazer diminuir/impedir, pela força da retribuição penal, o ingresso de tais aparatos nos estabelecimentos que indica, na exata medida em que penaliza as condutas antecedentes à posse, ao porte ou utilização pelo encarcerado, nos limites dos verbos empregados na formação do tipo alternativo de conduta variada que é o novo artigo 349-A do Código Penal.

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    é membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal, Político e Econômico, professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós). É também autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001); Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas (Saraiva, 2004), e, Curso de Execução Penal (Saraiva, 2004).

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