Caso concreto

Independência judicial e a segurança jurídica

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27 de agosto de 2009, 21h51

Muito já divaguei no recôndito das minhas alma e consciência sobre a suposta antonímia entre a independência judicial e a segurança jurídica no Estado Democrático de Direito.

Parece que a independência judicial não é só um mandamento constitucional, mas um imperativo da consciência humana daquele ser humano que está nessa função abnegada de se doar por completo aos outros seres humanos e à sociedade, com o único objetivo de “fazer justiça no caso concreto”. Sim, parece-me que a magistratura é um sacerdócio, onde os votos vão para a sociedade, e não para um deus.

Note que se trata de homens. Como quaisquer outros. Por isso, sua função é “justiça no caso concreto” e não “Justiça”. A “Justiça no caso concreto”, parece-me, decorre da lei lida constitucionalmente, com racionalidade, razoabilidade, equidade, bom senso e visando o bem comum. Gosto de pensar no dito de Kant: “Haja de forma que seus atos possam ser elevados à categoria de lei universal”. É quase uma fórmula matemática. Quase um mandamento divino; que se não o é, assimila-se com alguns — pelo menos dos que dizem que o filho Dele nos deixou.

A “Justiça” não é para os homens. Na atual impossibilidade de mandar um e-mail daqui ou ligar para o “0800”, quando eu chegar lá em cima, com certeza perguntarei se “era para Ele”. Mas o certo é que Juiz não é Deus. E nem pensa que o é, como brincam alguns (salvo eventuais psicóticos, mas que podem exercer qualquer profissão). A diferença é que o juiz precisa decidir (vedação ao Non Liquet). Dessa obrigação, aos destituídos de um pensar mais apurado, deriva uma ideia de “prepotência”, tangencialmente remetida à figura divina (onipotência, onipresença).

Por outro lado, como advogado, tive a grande oportunidade de, digamos, “ter um convívio mais próximo” com as Cortes Superiores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça), através de sustentações orais que lá fiz. Outras vezes, por me dirigir às cortes para só assistir as sessões, enquanto em estada em Brasília-DF.

Sei que inúmeros profissionais nunca tiveram essa oportunidade que, de fato, a primeira vista, apenas está disponível para advogados com clientes abonados, ou que atuem em Brasília-DF…ou que tenham televisão paga — ou parabólica — em cujos sinais é possível assistir a TV Justiça, o quê, já informo, “não é a mesma coisa”. Mas vale a tentativa. Porque é fantástico o aprendizado!

Assistindo uma sessão das Cortes Superiores, aqueles que achavam que “os juízes se acham Deus” terão uma completa mudança de pensamento (não…não vou dizer que os “Ministros tem certeza” – a segunda piada que aqueles do sexto parágrafo fazem). Esses passarão a ter certeza de que o julgador é um ser humano. E que nas Cortes Superiores, a exemplo do que fazem nossos parlamentares com a lei, as interpretações são realizadas de forma momentânea e efêmera.

No Brasil, sabe-se, a lei é feita no calor das emoções, egos e intenções de uma ou outra bancada, de um ou outro setor com mais força de lobby. Não sabia eu que as interpretações das Cortes Superiores também seguem o mesmo prumo — pelo menos tive a olhos vistos diversas provas disso (o que também não significa que não existam interpretações sobre as quais realmente se meditou. Como disse Galileu Galilei, “não é porque o Sol nasce todo dia que amanhã nascerá novamente” — porque não tinha ele à época conhecimentos científicos para afirmar isso).

Daí diversas vezes surgirem aberrações interpretativas nas Cortes Superiores. Veja-se um exemplo. Relativamente à transação prevista na Lei 9.099/95. Para o Supremo Tribunal Federal, a) não há a possibilidade de condicionar a homologação da transação ao cumprimento dos encargos. Por outro lado, b) é possível o Ministério Público retomar a persecução criminal em caso de descumprimento das obrigações impostas. Para o Superior Tribunal de Justiça, c) a sentença homologatória produz coisa julgada material e formal, não podendo ser retomado o procedimento.

Veja que uma corte privilegiou a possibilidade ou não de impunidade (e quis que o Ministério Público pudesse retomar o procedimento em caso de descumprimento). A outra privilegiou a doutrina processual das sentenças (homologatórias). Enquadrou a transação.

As duas cortes entendem que ao Ministério Público cabe a faculdade de propor ou não a transação. Porque ela “não seria direito subjetivo do ofendido” e aquele seria o “titular da ação penal”. Sim, e de fato é. Mas no rito dos Juizados Especiais, com essa titularidade, o Ministério Público já não apresentou o caso ao Juiz? Poderia tê-lo arquivado. Poderia tê-lo remetido ao Juízo Comum.

Sabe-se que essa interpretação decorreu de lobby do Ministério Público, no afã de consolidar essa novel instituição, e seus poderes. Contudo, o Ministério Público é titular do direito de propor/mover a ação penal. E no caso fará isso, propondo a perseguição, apresentando a denúncia. Mas não é ele o titular do direito de decidir a quem deverá ser dado ou não os benefícios que a lei — impessoal — prevê a todos (que cumpram os requisitos objetivos nela estipulados).

Agora o problema: e nos casos de ação privada pelo rito dos Juizados Especiais? Nestas ações, o “titular da ação privada” é o ofendido. A se seguir a orientação das cortes superiores de uma forma indireta está se transferindo o “Poder Estatal de aplicar a lei no caso concreto” ao ofendido. Ainda que o ofensor cumpra os requisitos objetivos constantes da lei, cabe ao ofendido decidir se quer a transação ou o “outro na cadeira”?

Eu não daria o benefício. Você leitor, daria? Pense naquele cara que “te cortou a frente” e ainda te esbofeteou numa briga de trânsito porque media 2 metros e você só 1,50! Ocorre que as Cortes Superiores entendem justamente isso. Para “assegurar a autoridade de suas decisões” (encobrir seus erros), precisam cometer outros erros.

É como na historinha que minha mãe contava sobre as mentiras, me ensinando a dizer a verdade: “A cada mentira que contas, dez terão que ser criadas para mantê-la, de forma que te cansarás demais mantendo-as; ou chegarás um dia em que só conseguirás sustentá-las, nada mais”.

E nesse mar de casuísmos, lobby e egos, em que optar o magistrado? Na independência judicial ou na segurança jurídica? Ou no tuti-fruti? “O Ministério Público é o titular da ação e só a ele cabe propor a transação; mas quando for o particular (Ação Penal Privada), aí o juiz pode propor a transação, porque direito subjetivo do ofendido”? Dois tratamentos, para situações iguais …Ah…essa falta de reflexão…

Enquanto as Cortes Superiores não pararem e refletirem abnegadamente sobre a matéria e o rumo que deverá ser tomado de forma peremptória em situações fáticas iguais, fico com a independência do juiz…

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