SEGUNDA LEITURA

Há um abismo entre a realidade e o Direito Positivo

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

23 de agosto de 2009, 10h26

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Cena 1: Curitiba. Rua Ângelo Sampaio, início da noite de um dia de julho de 2009. Chuva, umidade e frio. Duas crianças, aparentemente com 11 anos de idade, empurram uma carreta repleta de caixas de papelão que atingem 3 metros de altura. São “catadores de papel” ou “carrinheiros”. Nesta atividade informal, fazem um serviço gratuito ao Poder Público, auxiliam na reciclagem de resíduos e recebem algum dinheiro para sua sobrevivência.

Cena 2: Horas depois, na comodidade de minha moradia e protegido contra o clima inclemente, leio o Código Civil brasileiro que afirma:

Artigo 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. § 2o.  O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas."

É inevitável comparar realidade e norma. Realidade: temos milhares de crianças e adolescentes desamparados pelo Estado, em uma realidade social injusta e desumana.

Norma: o Código Civil e a Constituição em vários dispositivos, prometem tudo, solidariedade, saúde, educação, lazer, faltando apenas garantir felicidade, com o que suporíamos estar no paraíso.

A pergunta que se faz é: ao assegurarmos ao casal a livre decisão sobre o planejamento familiar asseguramos também o cumprimento das promessas feitas na legislação?

O tema é polêmico. Afasto-me, propositadamente, das previsões de Thomas Malthus no século 18, sobre a falta de alimentos decorrente do aumento populacional. Até porque, existem posições opostas, como a da ONU que concluiu que o tema perdeu espaço (Paulo Cabral, em 15.9.2004, www.google.com.br, acesso 22.8.2009) ou da elite econômica mundial que elege o controle da natalidade como prioridade número 1 (John-Henry Westen, 2.5.2009, www.google.com.br, acesso 22.8.2009).

E a diferença de situações faz com que no mundo existam soluções diversas. Em campos opostos estão Japão e a China. O primeiro com baixa natalidade e a população envelhecendo cada vez mais, gerando problemas previdenciários. O segundo exercendo rígido controle, através da Lei de População e Planejamento Familiar, de 1.9.2001, que foi discutida desde 1977 para ser aprovada e que estabelece um filho por casal e a necessidade de decisão de ambos.

No Brasil, as pesquisas do IBGE relatam que as taxas de crescimento alcançam nível de estabilidade. Aliás, basta olhar em volta para saber que a maior parte dos jovens da classe média ambiciona apenas um filho e muitos não desejam nenhum. Nas classes menos favorecidas é que a natalidade é maior.

Com foco exclusivo no Brasil, façamos uma análise de nossa realidade. E antes de qualquer tentativa de resposta, deixo bem claro não estar pregando o controle populacional pelo Estado e muito menos o aborto ou outra medida nesta linha.

Nosso Código Civil, no artigo 1.565, § 2º, começa por afirmar que o planejamento é decisão do casal. E aí a primeira observação. É que a lei dá-nos a impressão de um casal a discutir sua descendência quando nem sempre assim é que sucede. Um número expressivo de nascimentos não se origina de casais, mas sim de encontros casuais, incidentais. Nada mais comum atualmente do que filhos serem criados por avós ou por mães solitárias. Esta afirmação não precisa de suporte doutrinário. Basta estar conectado com ávida.

Mas, ainda que assim não fosse, é hipócrita aceitar que a lei civil proíba qualquer tipo de orientação ao casal, prometa tudo aos que nascerão e depois nos mostre uma realidade, cujo exemplo citado ao início é apenas um entre milhares. E vem da cidade de Curitiba, por muitos considerada como de primeiro mundo.

Basta sair às ruas para vermos crianças mendigando, fazendo malabarismos nos semáforos, lançados à própria sorte. Ou então, contratados por traficantes de drogas para pequenas tarefas, tendo suas primeiras lições na escola do crime. Ou, ainda, as do sexo feminino entregando-se à prostituição na beira das rodovias ou, nas cidades turísticas, a estrangeiros impulsionados pelo chamado turismo sexual.

Entre a realidade e o Direito Positivo, fácil é ver, há um abismo profundo. As normas são feitas para um mundo ideal e a realidade nos aponta um mundo cruel.

Dirá um sonhador, bem intencionado por certo, que a norma está certa, é uma meta a ser perseguida. E se isto for dito perante um auditório bem intencionado, com palavras bonitas, certamente arrancará palmas emocionadas. Alguns irão às lágrimas. Só que depois, todos irão para casa e a vida continuará a mesma.

As cidades com a periferia crescendo. Crianças abandonadas à própria sorte. O Brasil chegando a duzentos milhões de habitantes, mal distribuídos entre espaços vazios e aglomerados urbanos submersos em problemas de toda ordem. Espaços ambientais protegidos sendo invadidos por populações carentes, com ameaça concreta aos recursos naturais (p. ex., poluição da represa Billings que abastece São Paulo).

Em meio a tal situação, há que fazer algumas ponderações. O Código Civil, na sua rígida restrição a qualquer orientação familiar, não pode ser interpretado restritivamente. Deve sê-lo de forma submissa à Constituição. E esta garante, no artigo 1º, inc. III, o respeito à dignidade humana. E no art. 225, “caput” o direito das futuras gerações a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Ora, se a Carta Magna garante a todos dignidade e um meio ambiente são quando nascerem, e este direito não se reduz ao ecológico, mas se estende, entre outros, à educação, trabalho, moradia e saúde, forçoso é concluir que o administrador não só pode como deve orientar no planejamento familiar, desde que, evidentemente, não interfira na decisão do casal.

Esta deve ser a hermenêutica. Para o bem de todos, mas, principalmente, daqueles que não pediram para nascer e que se vêem lançados em um mundo duro, sem suporte econômico, familiar, espiritual ou afetivo.

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