Ficha limpa

PL proíbe candidatura de condenados

Autor

  • Márlon Reis

    é juiz de Direito doutor em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas pela Universidad de Zaragoza autor do livro Direito Eleitoral Brasileiro.

18 de agosto de 2009, 16h43

O Brasil tem acompanhado o desenrolar de uma bela experiência de mobilização social que busca apontar caminhos para a restauração da credibilidade das nossas instituições democráticas.

Tocada por 42 organizações da sociedade civil brasileira — organizadas sob a rede denominada Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) — a Campanha Ficha Limpa já conquistou o envolvimento de um milhão de brasileiros e continuará crescendo a passos largos até atingir as 1,3 milhão de assinaturas de que necessita para sustentar a apresentação de um novo projeto de lei de iniciativa popular ao Congresso Nacional.

A Campanha surgiu da necessidade de impulsionar o Parlamento a estabelecer hipóteses de inelegibilidade que levem em conta a vida pregressa, o histórico objetivo dos candidatos. O artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição instituiu o princípio da precaução em matéria eleitoral, concedendo ao Congresso base constitucional para criar inelegibilidades voltadas ao declarado fim de “proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício dos mandatos”.

Isso basta para se ter presente que, em tema de inelegibilidades, por expressa opção do texto constitucional, não se aplica o princípio da presunção de inocência, cujo espectro se dirige exclusivamente à esfera penal. Impera aqui, diversamente, o princípio da precaução.

É lógico que seja assim. A democracia é o primeiro dos bens comuns. Ela é constituída pela força abstrata surgida da aceitação de regras de convívio político por grupos, classes, credos, raças e cores diversos. A democracia se afirma no coletivo, no plural, na diversidade, reclamando por isso a adoção de mecanismos que impeçam o seu desvirtuamento por quaisquer indivíduos. Não há direito individual absoluto que assegure a alguém oportunidades para lesar os direitos fundamentais de toda a sociedade.

A Campanha Ficha Limpa não tem, por outro lado, objetivos moralistas, mas fundamentos filosóficos centrados na ética como estatuto de convivência e na restrição de determinado perfil de candidaturas como estratégia de legitimação do Parlamento e de aprofundamento da experiência democrática.

Daí o nome afirmativo da campanha. Em lugar da expressão jocosa “ficha suja”, preferimos aludir a aspectos afirmativos que ressaltam a imprescindibilidade de selecionarmos mandatários cujo histórico pessoal não indique que representam risco para a sociedade.

Argumenta-se que a lei não deveria restringir candidaturas, que só à população deve ser concedido o direito de optar por quem quer que seja. Se aceitássemos essa linha de raciocínio, teríamos que abolir todas as demais inelegibilidades, como os que hoje já afetam os parentes e cônjuges de titulares de cargos eletivos e os que tiveram suas contas rejeitadas pelos órgãos competentes.

As inelegibilidades têm todas elas esse sentido de proteção do futuro mandato ou do próprio processo eleitoral. Quando se alija do pleito alguém que incorre em uma vedação abstratamente definida em lei, não se viola direitos individuais. O que se dá é a afirmação do direito de todos a um governo honesto e eficiente, que encontre na vontade do povo a base para a sua autoridade.

Quando se admite que participe da disputa quem ostenta condenações por crimes como o de tráfico de drogas, desvio de verbas da saúde ou da educação, homicídio, estupro ou roubo está-se aceitando uma eleição em que um dos candidatos certamente não disputará com os outros em condições de igualdade. Em lugar da propaganda lícita, ele se valerá da concessão de benesses e da distribuição de ameaças. Tudo vale em sua campanha, menos perder.

Não há obstáculo constitucional, político ou ético a impedir que preventivamente sejam excluídas dos pleitos pessoas que já ostentem condenações criminais. E não é por considerá-las culpadas, o que só interessa ao juízo criminal, mas pelo fato objetivo de possuírem uma grave reprovação de conduta consubstanciada por uma sentença criminal.

Outro aspecto a considerar é o seguinte: a iniciativa popular de projeto de lei não torna inelegível todo e qualquer condenado criminalmente. Pessoas condenadas em ações penais privadas ou por infrações de menor potencial ofensivo, contravenções, atos infracionais ou pela grande maioria dos crimes não serão afetados pela medida. Só aqueles que receberam sentença condenatória por crimes efetivamente graves, devidamente relacionados no projeto e que suscitem a necessidade dessa prevenção especial, é que deverão primeiro resolver suas pendências eleitorais para só depois voltar para a vida política.

O projeto prevê ainda a inelegibilidade dos que renunciam a mandatos para impedir a aplicação de punições e poder participar do pleito seguinte, filme ao qual assistimos muitas vezes em nosso país.

O projeto abre apenas uma exceção no que toca a necessidade de existência de prévia condenação ao considerar inelegíveis os detentores de foro privilegiado que tenham denúncia criminal oficialmente recebida. Essa distinção ocorre porque nesse caso o recebimento da denúncia é um ato praticado por um colegiado de magistrados, que têm que levar em conta pelo menos a existência de prova do crime e de indícios da sua autoria. Além disso, quem já detém foro privilegiado não precisa de novos privilégios.

O professor Celso Antônio Bandeira de Mello, um dos grandes juristas que apoiam a iniciativa popular, disse recentemente que num país que tem que fazer campanha para que sejam eleitos apenas candidatos com “ficha limpa”, algo grave está acontecendo.

Em pouco mais de um ano nossa campanha reuniu apoios de grandes organizações sociais e de incontáveis cidadãos e cidadãs. Todos os dias novas forças sociais somam-se aos que se esforçam para levar ao Congresso esse projeto de lei, que já nasceu vitorioso por haver propiciado a muita gente a reflexão básica sobre esse aspecto tão elementar da democracia, que é a consideração do histórico pessoal dos candidatos.

Autores

  • Brave

    é juiz de Direito no Maranhão, presidente da Associação Brasileira dos Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais e membro do Comitê Nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral

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