Rastro no estrangeiro

Justiça Federal deve julgar lavagem via offshore

Autor

  • Vladimir Aras

    é professor da UFBA e do IDP integrante do MPF mestre em Direito Público (UFPE) doutor em Direito (UniCeub) especialista MBA em Gestão Pública (FGV) e membro-fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

18 de agosto de 2009, 17h39

Na esteira da ação penal proposta pelo Ministério Público de São Paulo[1] contra dirigentes da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), é oportuno examinar a questão da competência criminal para julgamento do crime de lavagem de dinheiro em sua manifestação transnacional.

Sabe-se que o crime de lavagem de capitais foi tipificado no Brasil pelo artigo 1º da Lei 9.613/98, estando em tramitação no Congresso Nacional o PL 3443/2008, que pretende alterar diversos dispositivos penais e não-penais do diploma em tela, mantendo, todavia, as regras competenciais ora existentes.

Embora a Lei de Lavagem de Dinheiro (LLD) esteja em vigor há mais de dez anos, a questão da repartição da competência entre a Justiça Estadual e a Justiça Federal ainda suscita controvérsias. As incertezas na divisão das tarefas jurisdicionais representam sério risco para a persecução criminal e a defesa da sociedade perante o Judiciário, na medida em que ações penais viáveis podem ser atingidas por nulidades, em razão da violação do princípio constitucional do juiz natural e de regras de competência material, uma vez que, segundo o artigo 564, inciso I, do Código de Processo Penal, “A nulidade ocorrerá […] por incompetência, suspeição ou suborno do juiz”“[2].

No particular, vale lembrar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal evoluiu no sentido de admitir a ratificação de atos decisórios proferidos pelo juízo incompetente, como se lê no julgado abaixo transcrito:

[…] 5. Em princípio, a jurisprudência desta Corte entendia que, para os casos de incompetência absoluta, somente os atos decisórios seriam anulados. Sendo possível, portanto, a ratificação de atos não-decisórios. Precedentes citados: HC nº 71.278/PR, Rel. Min. Néri da Silveira, 2ª Turma, julgado em 31.10.1994, DJ de 27.09.1996 e RHC nº 72.962/GO, Rel. Min. Maurício Corrêa, 2ªTurma, julgado em 12.09.1995, DJ de 20.10.1995. 6. Posteriormente, a partir do julgamento do HC nº 83.006-SP, Pleno, por maioria, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 29.08.2003, a jurisprudência do Tribunal evoluiu para admitir a possibilidade de ratificação pelo juízo competente inclusive quanto aos atos decisórios. (STF, 2ª Turma, HC 88262/SP, Rel. Min Gilmar Mendes, DJ de 30/03/2007).

Processualmente, a ação penal contra pessoas ligadas à IURD é somente mais um capítulo de um enredo já conhecido. Em situação muito semelhante (Caso Maluf), o Ministério Público Federal em São Paulo questionou a competência da Justiça Estadual paulista para supervisionar procedimento criminal em que se atribuía ao célebre político a prática de lavagem de dinheiro no exterior, mais precisamente no paraíso fiscal de Jersey, no Canal da Mancha. Na ocasião, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a causa criminal deveria ser julgada pela Justiça Federal, entre outros fundamentos, porque “Sempre que a lavagem ocorrer em instituição bancária situada no estrangeiro, a competência será da Justiça Federal”[3].

Atualmente, o artigo 2º, inciso III, da Lei 9.613/98 prevê três situações em que o julgamento dos crimes de reciclagem de ativos é de competência da Justiça Federal:

a) lavagem cometida em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (regra geral, decorrente do artigo 109, inciso IV, da CF);

b) lavagem praticada contra o Sistema Financeiro Nacional ou contra a ordem econômico-financeira (regra especial, prevista no artigo 109, VI, da CF)[4]; e

c) lavagem na qual o crime antecedente é de competência da Justiça Federal (regra de conexão harmônica com a jurisprudência do STJ, para crimes conexos em geral, com base na Súmula 122).

Porém, as hipóteses de competência federal para julgamento de crimes de lavagem de dinheiro não se esgotam nesse rol, pois o artigo 2º, inciso III, da LLD deixou de abordar expressamente a questão da lavagem de dinheiro transnacional.


Com a devida vênia das opiniões divergentes, no caso de lavagem de dinheiro realizada parcial ou totalmente no exterior, o crime determinante para a fixação da competência federal será a própria reciclagem, não sendo necessário considerar o delito antecedente (hipótese do artigo 2º, III, ‘b’, da LLD) nem sendo preciso que os recursos sejam estratificados ou dissimulados por meio de instituições financeiras estrangeiras, como faz parecer o precedente acima mencionado[5].

Exemplificando: os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional estão previstos na Lei 7.492/86 e constam do rol do artigo 1º, inciso VI, da LLD. Uma infração desta espécie pode servir como delito antecedente, essencial para a caracterização da lavagem de dinheiro (delito parasitário que é). Em tal cenário, a competência federal para o julgamento do branqueamento de capitais derivará do artigo 2º, inciso III, alínea ‘b’, da Lei 9.613/98, porque os “crimes de colarinho branco” são de competência federal, conforme o 109, inciso VI, da CF e o artigo 26 da Lei 7.492/86. Logo, o crime antecedente atrai a lavagem para o seu foro.

Contudo, num exemplo complementar, mesmo que o crime antecedente (ou “delito produtor”)[6] seja uma infração penal de competência estadual (peculato contra um ente municipal, por exemplo), ainda assim poderá firmar-se a competência de juiz federal, se houver o elemento de transnacionalidade na reciclagem dos ativos desviados da Administração Pública.

Mutatis mutandi, é o que se dá com o art. 40, I, da Lei 11.343/06, em matéria de narcotráfico internacional.

A lavagem de dinheiro (em si mesma, sem considerar qualquer dos delitos antecedentes) é crime previsto em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, a saber: as Convenções das Nações Unidas contra a Corrupção (Mérida, 2003), contra o Crime Organizado Transnacional (Palermo, 2000) e contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Viena, 1988), assim como a Convenção Interamericana contra o Terrorismo (Barbados, 2002) e a Convenção da OCDE sobre Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (Paris, 1997).

Devem ser conferidos, no particular, o artigo 3º, §1º, letra b, ‘i’ e ‘ii’, da Convenção de Viena (integrada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 154/91), o artigo 6º da Convenção de Palermo (promulgada pelo Decreto 5.015/04)[7], o artigo 23 da Convenção de Mérida (Decreto 5.687/06), o artigo 6º da Convenção de Barbados (Decreto 5.639/05) e o artigo 7º da Convenção da OCDE (Decreto 3.678/00). Em todos esses dispositivos, os Estados Partes se obrigaram a tipificar o crime de lavagem de ativos. Todas essas convenções foram devidamente integradas ao ordenamento jurídico brasileiro, de acordo com o procedimento bifásico de formação de vínculos convencionais. Portanto, são tratados em vigor, com força de lei federal ordinária.

Fixada a primeira premissa, vamos examinar a segunda.

Doutrinariamente, a lavagem de dinheiro pode ser praticada de forma segmentada, em três fases ou etapas mais ou menos distintas, mas não estanques, que são denominadas obtenção/colocação/captação dos ativos ilícitos (pré-lavagem), ocultação/dissimulação/estratificação/camuflagem (lavagem propriamente dita) e integração/utilização (pós-lavagem). Uma vez iniciado o iter criminis da reciclagem, se, em qualquer de suas etapas, a conduta "tocar" o território do Brasil e o de outro país, estará determinada a competência federal.

De fato, o artigo 109, inciso V, da Constituição — regra que complementa o preceito geral do interesse federal previsto no inciso IV do mesmo artigo 109 — dispõe que compete à Justiça Federal julgar os “crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no país, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente”.


Assim, basta que, em qualquer dos momentos do iter criminis, hajam ocorrido condutas (comissivas ou omissivas)[8] no Brasil e no exterior, na forma consumada (“resultado tenha ocorrido no estrangeiro”) ou tentada (“resultado devesse ter ocorrido no estrangeiro”), ou vice-versa.

O juiz federal José Paulo Baltazar Júnior compartilha deste entendimento:

“[…] também é de competência da Justiça Federal o crime de lavagem quando este for transnacional em decorrência da previsão do art. 109 da CF e da existência de tratados internacionais, como é o caso das Convenções de Viena, de Palermo e das Nações Unidas contra a Corrupção. Nesses casos, será suficiente para firmar a transnacionalidade da lavagem, ainda que o crime antecedente seja interno[9].”

Sendo transnacional a reciclagem de ativos (não importando onde se consumou o crime antecedente), a competência será da Justiça Federal, não havendo necessidade de invocar a Súmula 122 do STJ[10] nem o artigo 2º, inciso III, ‘b’, da LLD, para verificar, respectivamente, se há conexão entre “crime federal” e “crime estadual”, ou examinar a que órgão caberia o julgamento dos crimes antecedentes, hoje listados nos oito incisos do artigo 1º da Lei 9.613/98.

Hipoteticamente, se os agentes constituírem offshores em paraísos fiscais e utilizarem tais pessoas jurídicas interpostas para a lavagem de ativos obtidos no Brasil ou no estrangeiro, para posterior integração e utilização no próprio território nacional, haverá reciclagem transnacional. Na mesma linha, se a ocultação e a integração ocorrerem no exterior, e o crime antecedente tiver sido praticado no Brasil (ou vice-versa), a competência também será da Justiça Federal, não se exigindo que o crime precedente esteja também previsto em tratado internacional.

Então, para a correta determinação do juízo processante é imprescindível examinar a sucessão de eventos que integram o processo causal (artigo 13, caput, segunda parte, do Código Penal) e identificar onde ocorreram, tendo em mira o conceito legal de território (art. 5º do CP e Lei 8.617/93). À luz do artigo 109, inciso V, da Constituição e de tratados internacionais específicos ratificados pelo Brasil, a lavagem transnacional de ativos, obtidos ou não no país, sempre será fator determinante para atrair a competência federal, que é constitucional e de natureza absoluta. Em suma, o juiz natural (CF, art. 5º, LIII) para conhecer da lavagem transnacional é, necessariamente, o juiz federal.


[1] Ação penal n. 1121/2009 proposta pelo MP/SP em agosto de 2009 perante a 9ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo/SP, com denúncia recebida em 10/08/2009 pelos crimes de lavagem de dinheiro (artigo 1º, VII, da Lei 9.613/98) e formação de quadrilha (CP, art. 288).

[2] CPP: “Art. 567. A incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente.”

[3] STJ, 3ª Seção, CC 32.861/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, julgado em 10/10/2001, DJ 19/11/2001 p. 231. O conflito se estabeleceu entre a 8ª Vara Federal de São Paulo e o Vara do Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária (DIPO), da Comarca de São Paulo/SP.

[4] Hipótese mais abrangente do que a da Lei 7.492/86, que tipifica os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. A lavagem de dinheiro poderá ser praticada contra o SFN quando instituições do SFN forem utilizadas para a ocultação ou a dissimilação de ativos de origem ilícita. Neste sentido: BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 4. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 578.

[5] STJ, 3ª Seção, CC 32.861/SP, DJ 19/11/2001.

[6] Denomino o crime antecedente de “delito produtor”, porque este deverá ter potencialidade para gerar ativos ilícitos.

[7] E seus três protocolos, sobre tráfico de migrantes (Nova Iorque, 2000 – Decreto 5.016/2004); tráfico de pessoas para fins de exploração sexual ou escravidão (Nova Iorque, 2000 – Decreto 5017/2004); e tráfico de armas, suas peças e munições (Nova Iorque, 2001 – Decreto 5.941/2006).

[8] Entendo que os sujeitos obrigados do art. 9º da Lei 9.613/98 podem cometer o crime de lavagem de dinheiro na forma omissiva imprópria, porque são garantidores, no sentido do artigo 13, §2º, alínea ‘a’, do Código Penal. O dever legal de evitar o resultado decorre dos artigos 10 e 11 da LLD, no que se chama de compliance.

[9] BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 4. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 579.

[10] “Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crime conexos de competência federal e estadual, não se aplicado a regra do artigo 78, II, ‘a’, do CPP”.

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    é procurador da República no Paraná, ex-promotor de Justiça na Bahia, professor de processo penal na UEFS e mestre em Direito Público pela UFPE.

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