Homo Juridicus II

O ministro que não trocou ideias por cargos

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18 de agosto de 2009, 10h33

O jornalista Vladimir Herzog começou a ser assassinado, em 1975, quando outro jornalista, usando o Shopping News (Suplemento do Diário do Comércio e Indústria), ofereceu o nome do colega aos gorilas da ditadura como um perigoso subversivo, algo que Herzog nunca foi. O que pouca gente sabe é que ao mesmo tempo em que atacava o jornalista, o algoz Cláudio Marques fulminava também o secretário de Cultura, José Mindlin — a quem coube indicar Herzog para a direção de jornalismo da TV Cultura.

Mindlin tinha na sua assessoria jurídica dois nomes que hoje estão em Brasília: Flávio Bierrenbach e José Celso de Mello Filho — dois alvos da direita raivosa de então. Ao lembrar esses fatos, o ministro Celso de Mello, que completa 20 anos de Supremo Tribunal Federal esta semana, rememora algumas das rebeldias que lhe custaram o cargo de procurador de Justiça, posto que só alcançou pouquíssimo tempo antes de ser indicado à Suprema Corte.

O atraso da promoção foi causado por ataques como os do coronel Erasmo Dias, então secretário de Segurança Pública de São Paulo, que foi ao Jornal Nacional“denunciar” o promotorzinho de Osasco que, segundo ele, “colocava a população contra a polícia”. Essa era a forma pitoresca escolhida pelo coronel para descrever quem defendia os direitos humanos à época.

Quando Herzog foi morto, Celso de Mello estava na Cidade do México, participando de um congresso sobre direitos conexos.

Cláudio Marques tinha uma coluna na página 2 do Shopping News. Ficou famoso por “alertar as autoridades” sobre a subversão. Ou seja: delatava quem era contra a ditadura reinante o que costumava levar a condenações sem julgamento. “A campanha ganhou um vulto que provocou a dissolução da equipe da Secretaria de Cultura”, lembra Celso de Mello. Depois de trabalhar por um ano com Bierrenbach, Celso voltou para o Ministério Público e foi lotado em Osasco, na Grande São Paulo.

Resistência ministerial

Essa é parte da história de Celso de Mello na defesa de direitos fundamentais no Ministério Público, onde ficou quase 20 anos antes de se tornar ministro do Supremo. Cargo que ocupa há 20 anos.

Celso tomou posse como promotor em 3 de novembro de 1970, aprovado em primeiro lugar em um concurso com 1.118 concorrentes. No mesmo concurso, foram aprovados o hoje ministro Massami Uyeda, do Superior Tribunal de Justiça; Vladimir Passos de Freitas, ex-presidente do TRF-4; e Antonio Magalhães Gomes Filho, atualmente vice-diretor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco.

Corria o governo do general Emílio Garrastazu Médici e vicejava o Ato Institucional 5. Em seu discurso de posse, o jovem promotor discorreu sobre seu papel e de seus colegas em uma sociedade em que não prevaleciam as liberdades fundamentais e sobre o direito de resistência às normas ilegítimas da ditadura militar.

Começou, ali, a chamar a atenção, de desafetos e admiradores. Depois disso e da passagem pela Secretaria da Cultura paulista, Celso de Mello voltou a desagradar ao regime vigente. Em 24 de março de 1977, na inauguração do Fórum de Osasco, Celso falou em nome do Ministério Público para um auditório lotado. Presentes à solenidade o comando do TJ paulista, do Ministério Público, o prefeito Francisco Rossi e um coronel representante do Exército.

Depois de mornos discursos, Celso de Mello ocupa o microfone e faz um discurso contundente em ataque à existência de instrumentos autoritários no ordenamento jurídico brasileiro, o estado das prisões, as detenções arbitrárias. O coronel presente esfrega as mãos nervosamente. O AI-5 só seria revogado 1 ano e 9 meses depois. Mas o discurso foi aplaudido de pé — menos pelas autoridades que integravam a mesa, imóveis, impassíveis. Somente o corregedor-geral do Ministério Público, Alberto Hermínio Marques Porto, se levantou, atravessou o salão e abraçou Celso de Mello.

No mesmo dia, o corregedor-geral do MP recebeu o recado de que, “em nome do bom relacionamento entre o governo e o MP”, seria preciso punir o promotor abusado. O corregedor perguntou ao interlocutor se ele se dispunha a fazer um pedido de sindicância contra o exercício da liberdade de expressão. Diante da resposta negativa, não houve sequer sindicância. O corajoso Marques Porto morreu há dois meses, aos 82 anos.


No dia seguinte ao polêmico discurso, o jornal O Estado de S.Paulo destacou a defesa dos direitos humanos feita por Celso de Mello e suas críticas ao AI-5. As críticas se tornaram a principal notícia nos diários de Osasco e Celso foi distinguido como cidadão honorário do município. Mas o promotor permaneceria na primeira instância, sem promoção por praticamente toda a carreira. Era o preço a ser pago por atitudes como aquela.

Em seguida, Celso de Mello voltaria a trabalhar com Flávio Bierrenbach, então líder do MDB. Em 1978, Bierrenbach elegeu-se deputado estadual e foi escolhido presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa. Neste posto, convidou novamente Celso para integrar sua assessoria.

Celso de Mello integrou uma equipe de primeira linha, da qual fez parte, primeiro, Luiz Antonio Guimarães Marrey, atual secretário de Justiça paulista. Depois, Pedro Dallari se juntou ao time. À época, eram deputados Eduardo Suplicy, Fernando Moraes, Rubens Lara, honrosas exceções em uma assembléia dominada pelo governador Paulo Maluf, embora a oposição fosse majoritária. No gabinete de Bierrenbach morava a resistência.

Em São Paulo, Celso lecionou por nove anos no curso do professor Damásio de Jesus. Lecionar era uma de suas paixões, que só largou por conta dos demais encargos que surgiram. Nesta época, escreveu sua Constituição Federal Anotada, cuja primeira edição saiu em 1984. Começava a campanha pelas Diretas Já. A primeira edição do livro saiu com a capa amarela no mesmo tom da campanha. Na segunda edição, a cor foi trocada pelo azul escuro. Não houve terceira edição. O ministro sugeriu à editora que se aguardasse a nova Constituição, já iminente.

A trajetória para Celso de Mello ganhar o mundo começou em 1963. Premiado com uma bolsa de estudos concedida pela American Field Service, embarcou para os Estados Unidos em 17 de agosto daquele ano, com outros estudantes como Sérgio Bermudes, que foi para Iowa, e Julita Lemgruber. Cursou a Robert E. Lee Senior High School, em Jacksonville, Flórida. Um ano depois, com 18 anos, foi nomeado cidadão honorário de Jacksonville, por deliberação unânime do City Council.

Quando voltou ao Brasil, foi estudar Direito na Faculdade do Largo São Francisco, na Universidade de São Paulo. Formaram-se na mesma turma nomes como João Grandino Rodas, Antonio Magalhães Gomes Filho, Sílvio Venosa, Antonio de Souza Correa Meyer, Ayrton Soares, Sérgio Barbour, Sérgio Marques da Cruz, Breno de Freitas, Cleuza Dallari, José Roberto Maluf, Luiz Inácio Homem de Mello, Márcio Camarosano, Raquel Maria Sarno Pranto, Rui Silva Prado, entre outros. A turma comemora 40 anos de formatura em novembro próximo.

Rodas, hoje diretor da Faculdade de Direito pela qual se formou, protagonizou com Celso de Mello uma história folclórica. Em 1967, os dois amigos de turma queriam viajar para os Estados Unidos, mas não tinham dinheiro. Arquitetaram, então, um plano: “Fomos a uma agência de turismo na Avenida São João e perguntamos quantas passagens teríamos que ajudá-los a vender para conseguir mais duas”, lembra, saudoso, o ministro Celso de Mello.

Com 15 passageiros os dois ganhariam as passagens grátis. O plano foi contado aos colegas. Celso de Mello prometeu conseguir hospedagem para as primeiras duas semanas nas casas de família que conheceu quando morou por lá. E escreveu para cada família. O plano deu certo.

Rodas e Celso cursavam o terceiro ano. Conseguiram 20 colegas e ganharam as passagens. “Embarcamos em Viracopos. No mesmo vôo, por coincidência, embarcavam também a miss Brasil e a miss Universo”, rememora o decano do Supremo.

“Nunca esqueço que, quando íamos para a agência de turismo, demos com o Teixeirinha na calçada da Avenida São João. Vimos o fotógrafo que nos apontava a câmera. Não era para nós, claro. Uma semana depois, na revista Cruzeiro, publicavam uma reportagem sobre o Teixeirinha, com as fotos tiradas no centro de São Paulo, Rodas e eu ao fundo”, conta Celso de Mello.

Respeito à divergência

No Supremo, o ministro Celso de Mello, de novo, enfrentou novamente resistências. De outra ordem, claro. Tanto que afirma ter aprendido muito com seus colegas, por mais diferente que fosse sua visão em diversos aspectos. O hoje decano, quando caçula representou o papel fundamental de protagonista na renovação da jurisprudência do Supremo.


Quando tomou posse, a recém-promulgada Constituição de 1988 ainda era interpretada à luz da jurisprudência, baseada nas antigas Cartas, pouco democráticas. Coube a Celso estabelecer marcos importantes para a virada de jurisprudência do tribunal, sobretudo no capítulo de garantias e direitos fundamentais.

Indicado pelo presidente da República, José Sarney, Celso de Mello chegou ao Supremo Tribunal Federal, em 17 de agosto de 1989, para substituir o ministro Rafael Meyer. A casa, presidida pelo ministro Neri da Silveira, tinha, à época, os ministros Aldir Passarinho, Carlos Madeira, Célio Borja, Francisco Rezek, Moreira Alves, Octávio Gallotti, Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence. Nos 20 anos seguintes, Celso de Mello ainda dividiria a banca do STF com Carlos Velloso (substituto de Rezek), Ilmar Galvão (que substituiu Passarinho), Maurício Corrêa (no lugar de Brossard) e Nelson Jobim, além dos dez atuais integrantes da corte.

Em vez de criticar, o ministro comemora a divergência: “É um desafio permanente que se renova a cada dia. Faz parte da essência da Suprema Corte a existência de visões doutrinárias, ideológicas e da realidade diferentes. É dessa diversidade e multiplicidade de percepções e posições doutrinárias que se alimentam os julgamentos do STF e nascem as soluções sábias”.

Celso de Mello crê que posições divergentes qualificam as decisões. “A divergência permite constatar que a visão pluralística do fenômeno social e jurídico. E esse pluralismo de idéias é que confere o coeficiente maior de legitimidade democrática. Isso representa um dado altamente positivo. É preciso que haja divergência. Daí a importância do voto vencido e daí o meu apoio ao ministro Marco Aurélio”, afirma.

O ministro também ressalta a independência da Corte, apesar de sete de seus atuais membros terem sido nomeados pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Celso de Mello afirma que seus colegas “são muito qualificados e têm demonstrado clara independência em relação ao Executivo, mesmo nas questões mais delicadas”.

O decano justifica seus votos longos, detalhados e exaustivamente fundamentados com o argumento de que é preciso que o jurisdicionado saiba porque perdeu e porque ganhou. Celso de Mello leva dias trabalhando e estudando uma decisão. Qualquer advogado sabe como seus votos são produzidos. Ao final de seus votos, o cidadão sabe porque perdeu ou porque ganhou.

*Com entrevistas do jornalista Márcio Chaer

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