Extinção temporária

Extinção do crédito-prêmio em 1990 é inconstitucional

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12 de agosto de 2009, 17h10

A questão que buscamos levantar neste singelo texto não se pauta nos argumentos da grande discussão a respeito da natureza setorial ou não do incentivo chamado de crédito-prêmio de IPI. O objetivo é voltado para a total inaplicabilidade dos ditames do Artigo 41 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ao crédito-prêmio, por outro aspecto ainda mais relevante.

Antes, permita-nos uma breve e parcial digressão a respeito da vigência, eficácia e da interpretação das normas jurídicas em geral, porque entendemos curial para a compreensão de nossa explanação.

Como sabemos, as normas jurídicas são proposições que fixam o direito reconhecido pelo Estado para uma dada situação de fato. Não obstante terem, em regra, características de generalidade e abstração, sem dúvida que pressupõem uma situação fática sobre a qual incidirão, regulando o comportamento dos indivíduos e impondo a proteção do Estado na defesa de sua concretude. Ou seja, quando uma norma jurídica é editada, pressupõe-se que ela incidirá sobre um caso concreto, obrigando os indivíduos a um dado comportamento ou às suas consequências.

Sem a ocorrência de um fato previsto na norma ela permanecerá vigente, embora sem aplicação. A aplicação de uma norma jurídica, portanto, depende da existência concreta de um fato nela previsto. Sem o fato, é impossível a aplicação da norma. O direito exposto na regra jurídica, embora vigente, fica aguardando o momento concreto para vincular os indivíduos e o Estado.

Diz-se que a norma é eficaz quando está apta a produzir seus efeitos. Em regra, a eficácia se dá a partir de sua vigência, porém com ela não se confunde. A vigência de uma regra de direito ocorre no momento em que se torna obrigatória, ou seja, quando adequadamente editada, publicada e vencida a data fixada para o seu início. Em geral, a vigência de uma norma jurídica se estende indeterminadamente sobre o tempo, até que outra norma a revogue, expressa ou tacitamente.

Porém, há proposições normativas intermitentes, ou seja, editadas para regular situação fática temporária, tendo por causa a própria característica temporal do fato (normas excepcionais), ou porque ela mesma traz expressa a data final da possibilidade de sua aplicação. No primeiro caso (leis excepcionais), temos, por exemplo, as normas editadas para combater determinada calamidade. Cessada a calamidade para a qual fora editada, embora a regra formalmente permaneça vigente (porque não foi revogada), não mais terá eficácia. No segundo (leis temporárias), temos como exemplo as leis que congelam preços por determinado período. Passado o período nela fixado, os preços ficam liberados, independente de sua expressa revogação.

Em ambos os casos, embora não tenha havido revogação da regra jurídica, ela não terá eficácia para os fatos que são posteriores ao período de excepcionalidade. Está vigente, mas sem eficácia. Continuarão, porém, tendo eficácia apenas para os fatos ocorridos durante o período de sua aplicabilidade. Diz-se, então que eficácia é sinônimo de vigor. A lei em vigor é aquela que tem eficácia para um dado fato.

Na esfera constitucional, as normas jurídicas intermitentes, em regra, estão contidas no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. São regras de direito excepcionais ou temporárias, editadas para vincular os indivíduos e o Estado por certo tempo. Passada a situação fática ou o aspecto temporal nela previsto, não mais terão vigor, ainda que não tenham sido revogadas.

Acrescente-se, ainda, outra forma de perda de vigor (ou eficácia) da lei: a declaração de sua inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal em controle abstrato. O STF não revoga a lei. Decreta a sua ineficácia ante sua desconformidade com a Constituição. Só lei revoga lei, papel do Congresso Nacional. Essa declaração, efetuada em controle concentrado, em regra, tem eficácia ex tunc, ou seja, a lei perde o seu vigor desde a sua edição, devendo ser desconstituídos todos os efeitos que ela veio a produzir, como se nunca tivesse existido. Atualmente, permite-se a modulação de efeitos, de modo que, mesmo decretada a inconstitucionalidade, pode o Supremo reconhecer à lei determinada eficácia, mantendo parte de seus efeitos.


No controle concreto, a declaração de inconstitucionalidade pelo STF não tem o efeito de retirar o vigor da lei. A lei perde a eficácia apenas para aquele caso concreto, ou seja, a decisão do Supremo vale apenas para as partes daquele específico processo. Nesse caso, a Constituição Federal previu que cabe ao Senado Federal decretar a ineficácia da lei, por meio de resolução que suspenda a sua execução (art. 52, X, CF/88). É pacífico que tal decisão política também tem efeitos ex tunc, ou seja, retroativos à data da edição do dispositivo que se suspendeu.

Feita esta introdução, cumpre-nos, desde já, fixar algumas premissas necessárias para a compreensão de nossa argumentação:

1º) O incentivo ao crédito foi criado pelo Decreto-lei 491/69 e reeditado pelo Decreto-lei 1.894/91.

2º) Tais proposições normativas não eram excepcionais ou temporárias e jamais foram revogadas.

3º) O artigo 1º do Decreto-lei 1.724/79 e o inciso I do artigo 3º do Decreto-lei 1.894/81 permitiram que o Poder Executivo extinguisse o incentivo por meio de ato administrativo. Seria o típico caso de retirada de eficácia da lei, porque não haveria revogação, mas a impossibilidade de sua aplicação a partir do ato administrativo.

4º) O Poder Executivo extinguiu definitivamente o benefício em 1º de maio de 1985, por meio da Portaria MF 176/04, retirando-lhe o vigor.

5º) O artigo 41 do ADCT/88 determinou que o Poder Executivo reavaliasse todos os incentivos fiscais em vigor em 5 de outubro de 1988[1].

6º) Em 26 de novembro de 2001, o STF, em controle difuso de constitucionalidade, reconheceu a inconstitucionalidade dos mencionados dispositivos que delegavam ao Executivo o poder de extinguir o incentivo fiscal conferido pela lei[2].

7º) Tal decisão foi encaminhada ao Senado Federal, que, em 27 de dezembro de 2005, por meio da Resolução 71[3], retirou a eficácia dos dispositivos inconstitucionais e, consequentemente, do ato administrativo que extinguiu o crédito-prêmio, restaurando o seu vigor com efeitos ex tunc.

Ora, sabemos que não se interpreta a norma jurídica visando ao absurdo. Não se interpreta para atingir fins não pretendidos pelo ordenamento.

Sem necessidade de muito esforço intelectual, para que o Poder Executivo pudesse reavaliar um incentivo fiscal de natureza setorial e propor ao Poder Legislativo a medida cabível (nos termos determinados pelo artigo 41 do ADCT), era primordial que o dito incentivo estivesse em pleno vigor na data da Promulgação da Constituição Federal como condição fática basilar de aplicabilidade do dispositivo.

Ocorre que o mesmo Poder Executivo que hoje defende a extinção do incentivo pelo Art. 41 do ADCT, se esquece que ele mesmo extinguiu o crédito-prêmio através Portaria 176/84, em 1º de maio de 1985, e que, em 1988, quando da promulgação da Constituição, o Poder Executivo não poderia sequer reavaliar o incentivo fiscal de natureza setorial (ou não) ora em vigor, pois o mesmo não estava em vigor à época. Somente aos 27 de dezembro de 2005, por meio da Resolução do Senado Federal 71, foi restabelecido o vigor do crédito-prêmio, com efeitos ex tunc.

Normas jurídicas regulam fatos. Sem fato, não cabe falar em aplicação da norma. Sem o fato “vigor do incentivo em 05/10/88” não se pode falar em sua revogação pela norma transitória constitucional. Ao contrário, o fato concreto, à época, é que o incentivo não estava em vigor.

Não se admite interpretação que leve ao absurdo. A restauração do vigor do incentivo em 2005, ainda que com efeitos ex tunc, não pode atrair o ADCT, porque o ADCT não regulava esse fato. É fora de lógica exigir que o Executivo reavaliasse o que ele havia extinto. Assim, o comando constitucional inserto no artigo 41 do ADCT jamais poderia ser cumprido em relação ao crédito-prêmio de IPI, faltando situação fática que reclame a sua incidência.

Para exemplificar, o parágrafo 2º do artigo 12 do ADCT/88 previu que os estados e municípios poderiam, no prazo de três anos, mediante acordo entre eles, promover a demarcação de suas linhas divisórias que estivessem em litígio à época. Se, eventualmente, um desses acordos fosse declarado inconstitucional por defeito de representação de uma das partes, poder-se-ia retomar a possibilidade de acordo, já que se retornaria ao statu quo ante? É evidente que a resposta é negativa. Passado o prazo fixado, não se aplica mais o ADCT, cabendo, agora, ao Congresso Nacional, ou ao Judiciário, determinar os limites. É dizer, não se aplica o ADCT quando já se tem passado o momento de sua aplicação.


Desta forma, o ato administrativo extintivo — ainda que posteriormente declarado inconstitucional — serviu tão somente de ponte para transpor o crédito-prêmio incólume aos efeitos do Art. 41 do ADCT. Afinal, as disposições transitórias não se aplicam a um incentivo fiscal que não estava em vigor à época. Insistir na discussão por supor ser o incentivo fiscal de natureza setorial, não reavaliado nem convertido em lei; supor extinto sem observar a premissa de que não vigorava quando da determinação da disposição transitória sugestiona nova inconstitucionalidade para com o tema.

O Supremo, com toda a certeza, já deve ter observado a questão sob esse aspecto, e não restará muita alternativa, se observada somente a interpretação da Lei Maior para a definição da questão do crédito-prêmio.

Portanto, o acordo que está sendo elaborado no Poder Legislativo é a melhor das opções neste “Dilema dos Prisioneiros”[4], mas, garante que quem perde mais são os que sem merecer, contabilizaram sucessos individuais, de parte a parte.


[1] “Artº 41 – Os Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios reavaliarão todos os incentivos fiscais de natureza setorial ora em vigor, propondo aos Poderes Legislativos respectivos as medidas cabíveis”, grifamos.

[2] RE 186623 / RS, Relator Min. CARLOS VELLOSO: “CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. INCENTIVOS FISCAIS: CRÉDITO-PRÊMIO: SUSPENSÃO MEDIANTE PORTARIA. DELEGAÇÃO INCONSTITUCIONAL. D.L. 491, de 1969, arts. 1º e 5º; D.L. 1.724, de 1979, art. 1º; D.L. 1.894, de 1981, art. 3º, inc. I. C.F./1967. I. – É inconstitucional o artigo 1º do D.L. 1.724, de 7.12.79, bem assim o inc. I do art. 3º do D.L. 1.894, de 16.12.81, que autorizaram o Ministro de Estado da Fazenda a aumentar ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou restringir os estímulos fiscais concedidos pelos artigos 1º e 5º do D.L. nº 491, de 05.3.69. Caso em que tem-se delegação proibida: CF/67, art. 6º. Ademais, matérias reservadas à lei não podem ser revogadas por ato normativo secundário. II. – R.E. conhecido, porém não provido (letra b)”.

[3] RES SF 71/05: “Art. 1º É suspensa a execução, no art. 1º do Decreto-Lei nº 1.724, de 7 de dezembro de 1979, da expressão "ou reduzir, temporária ou definitivamente, ou extinguir", e, no inciso I do art. 3º do Decreto-Lei nº 1.894, de 16 de dezembro de 1981, das expressões "reduzi-los" e "suspendê-los ou extingui-los", preservada a vigência do que remanesce do art. 1º do Decreto-Lei nº 491, de 5 de março de 1969.
Art. 2º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação”.

[4] ”Dilema dos Prisioneiros”- Exemplo na Teoria dos Jogos no qual dois prisioneiros devem decidir separadamente se confessam um crime; se um deles confessar receberá uma pena mais leve e seu cúmplice, uma mais pesada, mas, se nenhum confessar as sentenças serão mais leves do que se ambos tivessem confessado.

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