Política e Judiciário

"Faz parte da essência da Justiça preencher vazio"

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11 de agosto de 2009, 13h51

A maior especialista em pesquisa sobre o Judiciário brasileiro, professora Maria Tereza Sadek, é a entrevistada de agosto, mês do advogado, do jornal Tribuna do Direito. Ao longo da conversa, a cientista política faz uma análise dos avanços do Judiciário pós Constituição Federal de 88, da demanda cada vez maior e da política dentro do Judiciário.

“Às vezes, os magistrados sentem-se incomodados quando falo que o Judiciário é politicamente atuante. Ficam reticentes porque confundem político com partidário. Não é partidário. É político”, diz. A professora explica que político significa ter a oportunidade de mudar a vida pública, alterar o rumo de políticas no país, “de forçar que determinadas políticas sejam implementadas”.

Quando questionada pela repórter Eunice Nunes se essa atuação política não invadiria a competência de outros poderes, Sadek afirma que preencher o espaço deixado pelo Legislativo ou pelo Executivo faz parte das funções do Judiciário e da sua própria essência, em uma democracia presidencialista. “Se o Legislativo, por exemplo, tivesse se empenhado para regulamentar a greve do funcionalismo público, o Judiciário não teria feito a intervenção”, observa.

A recente atuação do Conselho Nacional de Justiça, para Maria Tereza, é uma grande revolução. “O CNJ ainda não é popularmente conhecido, mas o que está fazendo é uma grande revolução.” Para ela, as mudanças no Judiciário têm também a ver com a personalidade dos magistrados. “Se for comparado o Supremo da Ellen Gracie com o de Gilmar Mendes encontram-se diferenças. O Gilmar Mendes é muito mais pró-ativo do que era a Ellen. Tudo isso tem consequências.”

Com mais de 20 obras publicadas sobre o sistema judicial brasileiro, a cientista política Maria Tereza Sadek tornou-se uma das maiores autoridades no assunto. Professora de pós-graduação do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), desde 1993 dedica-se a desenvolver pesquisas sobre o Judiciário, o Ministério Público e a Advocacia.

Sua última pesquisa foi sobre o funcionamento das promotorias da tutela coletiva do Ministério Público do Rio de Janeiro. “Fizemos um levantamento completo de tudo o que entrou nas promotorias de tutela coletiva e foi muito interessante. Descobrimos que essa atuação do Ministério Público é muito significativa particularmente na área de termos de ajustamento de conduta”, declarou à Tribuna do Direito.

Leia a entrevista concedida ao jornal Tribuna do Direito

O Judiciário cumpre a função de fazer justiça?
O Judiciário que conheci em 1993, quando comecei minhas pesquisas na área, não é mais o Judiciário de hoje. Mudou inteiramente de cara.

Para melhor ou para pior?
Em muitas coisas, para melhor e, às vezes, diante de tantos problemas, fica difícil reconhecer isso. E por que digo isso? Porque o tamanho do nó é tão grande que por vezes perde-se a dimensão de algumas novidades. Uma grande inovação foram os Juizados Especiais, que antes da Constituição de 88 eram chamados de Pequenas Causas. Com eles abriu-se uma grande porta de acesso à Justiça como jamais houve. A atual Constituição reafirmou esses Juizados, que depois tiveram a competência ampliada. O que não quer dizer que estejam bem hoje em dia, mas foram, do ponto de vista de acesso à Justiça, a grande inovação. A presença pública do Judiciário é muito intensa e vem crescendo. É uma decorrência direta da Constituição de 88, que fortaleceu o Judiciário como Poder. Ele tornou-se de fato um Poder do Estado e, como tal, atuante politicamente. A Constituição consagrou direitos, é detalhista e, com isso, toda e qualquer questão pode ser judicializada. A presença pública do Judiciário é quase uma imposição do texto constitucional.

E quanto à atuação política do Judiciário?
Às vezes, os magistrados sentem-se incomodados quando falo que o Judiciário é politicamente atuante. Ficam reticentes porque confundem político com partidário. Não é partidário. É político. Político significa dizer que tem possibilidades de alterar a vida pública, de alterar o rumo de políticas públicas, de forçar que determinadas políticas sejam implementadas e daí por diante. Como aconteceu nos Estados Unidos, isso demora. Não é porque está no texto constitucional que o Judiciário imediatamente se consagra como um poder político de fato. Ele é legalmente, mas não é na prática. Esse poder político ele vai construindo, firmando aos poucos. Todos os países que copiaram o modelo norteamericano têm essa potencialidade. Se a concretizam ou não é outra história, que vai depender da co-relação de forças. No caso brasileiro, pós Constituição de 88, é visível o crescimento do Judiciário como poder político. Nos últimos tempos, não é possível falar em uma única política ou uma única alteração na vida pública, de que o Judiciário não tenha participado. O uso das células-tronco em pesquisa, por exemplo. Fora isso, ele cobre tudo o que o Legislativo deixou de examinar e onde, por isso mesmo, há um vácuo legislativo. Na questão eleitoral, por exemplo, isso é claríssimo.

Não haveria aí uma invasão de competência?
De maneira alguma. Não se pode deixar em aberto. Quando o Judiciário entra, está cumprindo a sua função. Faz parte da própria essência do Poder Judiciário numa democracia presidencialista. Mas isso é parte da questão. Não resolve todo o problema. É preciso analisar, depois, como é que se dá a co-relação de forças. Qual é a relação do Executivo, Legislativo e Judiciário. Se o Legislativo, por exemplo, tivesse se empenhado para regulamentar a greve do funcionalismo público, o Judiciário não teria feito a intervenção. Como não o fez, coube ao Judiciário fazê-lo. Por outro lado, as atitudes também têm a ver com a personalidade dos magistrados. Se for comparado o Supremo da Ellen Gracie com o de Gilmar Mendes encontram-se diferenças. O Gilmar Mendes é muito mais pró-ativo do que era a Ellen. Tudo isso tem consequências. Ao ser mais pró-ativo provoca-se mais reações e também mais mudanças na vida coletiva. Características individuais contam, fazem diferença. Isso vale não só para o Judiciário como para o Ministério Público e qualquer instituição.

O perfil dos magistrados tem mudado?
Com certeza. Não se tem o mesmo perfil de 20, 30 anos atrás. Hoje, tem-se um quadro mais heterogêneo. Tem-se duas variáveis. De um lado, o número de magistrados multiplicou-se várias vezes. Só o fato de ter aumentado já provocaria mudanças. Uma coisa é uma instituição com cinco mil pessoas. Outra coisa é uma instituição com 15 mil. Fora isso, o recrutamento por concurso permite o ingresso de pessoas muito diferentes. Basta ver a relação homem-mulher. O número de mulheres cresceu enormemente. Outro dado muito importante é que hoje há um percentual muito significativo de juízes filhos de pais que não têm o primeiro grau completo. Isso era impensável há algumas dezenas de anos. Esse é um dado importante porque no Brasil quem não tem escolaridade não tem renda. A desigualdade aqui é cumulativa. Quem não tem renda não tem educação, saúde, moradia, transporte. Pode-se supor com alguma margem de certeza que hoje tem-se mais magistrados que vieram dos setores mais desfavorecidos da população, o que significa dizer que há magistrados de todas as classes sociais. Por si só, esse dado revela que a homogeneidade que havia antigamente dentro do Judiciário acabou. A heterogeneidade revela-se também nas posições. Qualquer questão divide. Há vários grupos de pensamento no Judiciário. Tem os mais garantistas e os menos garantistas. Há os ativistas judiciais e aqueles que são totalmente contra o ativismo judicial. Tudo divide, embora às vezes se consiga a maioria. Uma posição que vem mudando com o decorrer do tempo é sobre o CNJ. Nas primeiras pesquisas em que se perguntava sobre controle externo da Magistratura, a maioria absoluta era contra. Talvez fossem, se muito, 5% a favor. Hoje, a maioria assimilou. Não só assimilou como vê-se um apoio claríssimo. Basta ver a questão do nepotismo. Os juízes apoiaram fortemente. Talvez tenha sido a primeira instituição que entrou contra.

Como a senhora avalia a atuação do CNJ e quais as iniciativas mais importantes do Conselho?
O CNJ, do ponto de vista da transparência e de um controle interno do Judiciário, foi a grande revolução. O CNJ ainda não é popularmente conhecido, mas o que está fazendo é uma grande revolução. Para começar, hoje tem-se a possibilidade de conseguir um diagnóstico muito mais realista do Judiciário do que no passado. Tem-se dados confiáveis que permitem verificar onde estão os gargalos, por que é que eles existem e examinar os efeitos das medidas adotadas. A repercussão geral, por exemplo, que foi adotada pelo STF e pelo STJ, reduziu o número de processos de forma significativa. Tudo isso graças à iniciativa do CNJ. Não dá para comparar o banco de dados que tem-se hoje sobre o Judiciário nem com o que tinha-se no passado nem com o que há em outros países. Antes do CNJ, o que o Judiciário tinha era uma absoluta impossibilidade de conhecer seu próprio desempenho. Sabia-se apenas que a Justiça era morosa e cada um dizia uma coisa. Era o império absoluto do “achismo”. Hoje, existem dados concretos. Pode ainda haver erros na coleta desses dados, mas já se tem um quadro muito claro. Sabe-se quais são os estados onde se trabalha mais, quais onde se trabalha menos, onde há mais juízes, onde há menos, onde falta vara, etc.. E tudo em um período muito curto de tempo. É um avanço que precisa ser reconhecido e valorizado.

E as inspeções que o CNJ vem fazendo?
São uma das iniciativas mais louváveis do CNJ. As inspeções vêm sendo realizadas desde o fim de 2008 e prosseguiram em 2009. Tem-se diagnóstico das varas e dos tribunais. Sabe-se onde estão os problemas no tribunal. Constatou-se nepotismo, constatou-se juízes que passavam determinados processos na frente de outros, não obedecendo à ordem de entrada, casos de desvio de verbas, de corrupção. Há tribunais em que os militares encarregados da segurança não trabalham no tribunal, mas na casa do desembargador. Uma série de situações ilegais que estão sendo descobertas e que provavelmente eram de conhecimento dos juízes entre si e também dos membros do Ministério Público, dos advogados e da população, mas que quando denunciadas caíam no vazio.

Havia “espírito de corpo”, já que as denúncias eram julgadas pelos próprios tribunais onde aconteciam as irregularidades?
Quando a Corregedoria atuava, e em geral a Corregedoria só atua em relação ao primeiro grau e não em relação aos desembargadores, o espírito corporativo predominava em relação ao espírito republicano e democrático. Ou não acontecia nada ou, quando acontecia, era uma reação mínima. Agora, não. Tem juiz punido, desembargador afastado, ou seja, o Judiciário está cortando a própria pele. São medidas de saneamento do Judiciário. Há casos de nepotismo cruzado que foram descobertos aos montes e estão sendo revelados. Isso é inédito na história do país e merece aplausos.

Há também as inspeções nos presídios.
Presídio é outro lugar onde todo o mundo sabe o que acontece de errado. Todo mundo sabe que tem preso além da conta, que tem preso misturado — homem com mulher, com adolescente, até com crianças —, enfim, há uma lista infindável de coisas ilegais, criminosas, dramáticas que não deveriam ocorrer, mas ocorrem nas prisões. O que foi feito até hoje, apesar das várias ONGs atuando nesse setor e denunciando tudo de abominável que acontece? Agora, tem-se uma chance real de as coisas mudarem. Foram encontrados presos provisórios há mais de cinco anos. Tinha preso com sentença cumprida, presos sem processo. O último levantamento, se não estou enganada, indicou que em torno de 20% dos que estão na prisão não poderiam estar. É muito. São milhares de erros. Acompanhei uma inspeção e vi umas fotos que me deixaram assustada: presos dentro de contêineres, sem ventilação, sem privada e sem torneira. Um horror. Alguma coisa tem de ser feita.

E tem muita gente presa por crimes insignificantes.
Fiquei sabendo que o número de Habeas Corpus concedido pelo Supremo já passa dos 100 mil. Desses, certamente 80% referem-se a pessoas sem condições econômicas que estão presas. Mas o que é explorado, o que se divulga com alarde é o Habeas Corpus que foi dado ao banqueiro Daniel Dantas. Não digo que não se deva fazer isso, mas é preciso dar atenção ao outro lado da moeda. Há gente presa porque furtou um sabonete, um pacote de bolachas. Isso é motivo para se encarcerar alguém? Outra coisa importante é dar atenção àqueles que estão saindo da cadeia. Uma iniciativa louvável que o Supremo tomou foi dar emprego para egressos do sistema penitenciário porque ninguém quer dar trabalho para essas pessoas. Com o crescimento assustador da violência, o mais fácil é dizer que todo o mundo tem de ser preso, não importa o delito cometido. Mas falta presídio. Para que as prisões tivessem um padrão aceitável para tantos presidiários teria-se de construir centenas deles. E aí tem-se um dilema: todo mundo quer presídio, mas nenhum município quer que construam prisões em seu território. Então, continua-se a amontoar gente dentro das prisões, misturando gente que roubou um pacote de biscoitos com assaltantes de banco e assim por diante. Entra por causa de um pequeno delito e é capaz de sair integrado ao crime organizado. Nessa questão penal, entra-se em um círculo vicioso e as pessoas não percebem. Está-se numa situação quase sem saída. Por isso as iniciativas do CNJ são importantes. Podem romper esse círculo vicioso. Não é só porque proporcionam uma radiografia exata do sistema, mas porque também estão resultando em atitudes práticas, como soltar presos que não deviam estar detidos.

Os últimos dados indicam que há cerca de 70 milhões de processos em tramitação, o que significa um para três habitantes. É muito, não?
Esse dado, de certa forma, é enganador. Não é verdade que a cada três pessoas que for interpelada na rua, uma tenha entrado com um processo judicial. Têm-se os grandes litigantes, dos quais o maior é o poder público, têm-se os litigantes de má-fé, que não são punidos por isso, e a população como um todo está excluída do Judiciário. É um paradoxo, mas no Brasil tem-se, simultaneamente, acesso de mais e acesso de menos. Tem quem entre demais e quem entre de menos. A população entra de menos. É preciso olhar as duas pontas, é preciso desestimular o ingresso quase automático do poder público, é preciso punir a litigância de má-fé e é preciso incentivar quem não entra. Um exemplo claro de litigância de má-fé é o da igreja que insuflou os fiéis a entrarem com ações por todo o Brasil pedindo indenizações contra jornais por se sentirem ofendidos por uma reportagem sobre as atividades empresariais de seus líderes. E houve alguma punição? Nenhuma. E o poder público, quantas vezes não litiga sem necessidade, só para adiar obrigações?

O que a senhora acha do Prêmio Innovare?
É outra grande descoberta. Não dá mais para imaginar que os problemas vão se resolver com mais recursos, mais funcionários, mais juízes. O prêmio incentiva as pessoas a tomar iniciativas no dia a dia para encontrar soluções e desafogar o Judiciário. São pequenas ideias que provocam consequências e têm a possibilidade de serem reproduzidas em outros lugares. Possuem efeito multiplicador. Estou no júri do Innovare desde que foi criado e é uma das coisas que faço com a maior satisfação. Começou só com o Judiciário, mas agora tem também o Ministério Público, a Advocacia e a Defensoria Pública. Lembro-me de duas iniciativas muito bacanas: a de um juiz do Maranhão que saiu de cidade em cidade para ensinar como é que se vota e como identificar atos de corrupção e a de uma juíza no Amapá que subia o Rio Amazonas de barco e atendia as pessoas. Não era só uma vara itinerante fluvial, era mais do que isso, porque ela levava também o representante do Ministério Público, da Defensoria Pública, gente que emitia carteira de trabalho e ia atendendo as pessoas de localidade em localidade, ouvindo as demandas, resolvendo ali mesmo sem excesso de formalidades. Subi o rio com eles e foi uma das melhores experiências da minha vida.

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