Herança de Goffredo

Direito Quântico, medida da liberdade humana

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3 de agosto de 2009, 8h35

Dizia Eça de Queiroz que o brasileiro vive atrás da penúltima moda europeia. Parece que não mudamos. O gênio brasileiro produziu esta obra-prima de análise da teoria geral do Direito, mas infelizmente não mereceu a atenção devida da doutrina, como é de costume entre nós. Este pequeno resumo talvez ajude a difundir as suas ideias, provando a possibilidade de pensamento brasileiro original, como é o caso de Direito Quântico.

Sopa Primordial. Movimento. No início era o caos envolto numa nuvem cósmica composta na sua maior parte de hidrogênio, a temperatura de milhões de graus, cujo declínio gerou as primeiras estrelas por contração, a princípio fontes de luz e energia, uma vez esgotadas dão lugar uma estrela densa e pequena nominada anã branca. Os planetas se formam pela atração gravitacional de poeira cósmica. A composição do universo se faz por alguns elementos químicos, compostos de micropartículas em movimento. Em repouso estão as partículas que não estiverem se deslocando em relação a um sistema de referência.(2)

Corpo e Luz: Cai o Princípio da Identidade. Quando analisa o mundo das partículas à luz da nova física, mostra realidades espantosas. Planck descobriu, contra o senso comum de que a luz é continua e indivisível e só a matéria se compõe de partículas, que a luz também é feita de partícula, um fluxo de fótons, que são porções particulares de radiação eletromagnética, quanta de energia luminosa. Um fóton é um quantum e a onda eletromagnética uma energia feita de um número inteiro de quanta, uma porção de fótons. Einstein já havia demonstrado a relação entre energia e massa, pondo em evidência a natureza corpórea da energia e a natureza energética dos corpos. E, pela observação de que a luz se desvia em virtude da atração gravitacional dos planetas, descobriu-se que a luz tem massa, uma propriedade dos corpos. Demonstrou-se que os elétrons são também energia, além de serem corpo. Os elétrons são onda, movimento que passa pelo corpo, energia como poder de deslocar a matéria. A luz é energia e é corpo, o elétron é energia e é corpo (3).

Ontologia: Ordem, Estrutura e Ser. Na realidade física a matéria não existe sem movimento, componente essencial do ser, assim a ontológica deveria nos dizer que nada existe, pois o que constantemente se move nunca é o mesmo e se nunca é o mesmo não pode existir.(4) Mas seria absurdo afirmar que nada existe. É forçoso reconhecer que as coisas existem, há uma permanência, uma estabilidade, como atributo da estrutura. A estabilidade própria da estruturas decorre da harmonia e do equilíbrio dos seus elementos constitutivos segundo uma ordem geral. Ordem é a disposição certa dos seres. Sua causa material consiste nos elementos distintos, múltiplos que a compõe; sua causa formal é a disposição dos elementos no conjunto para que façam parte do todo conforme a sua natureza e a razão de ser da ordem, a sua causa final, é justamente o fim para cuja consecução os elementos múltiplos passam a constituir uma unidade. A ordem é algo que se acrescenta à ausência de ordem, tem existência primordial, antecede a desordem, entendida como sendo a ordem que não queremos: “Damos o nome de ordem à ordem que nos convém e o nome de desordem à ordem que não nos convém” (5).

Normalidade e Anormalidade. A normalidade não decorre da ordem. Não é o fato de tudo estar em ordem que tudo é normal. Normal é um adjetivo que designa o caráter usual ou comum de um procedimento ou de um estado. Anormal é a qualidade do insólito, do que não está de acordo com aquilo que é estabelecido como padrão e modelo de comportamento e modo de ser. (6) Normalidade, portanto, vem a ser a condição estável revelada, predominância de procedimentos normais. Estado de como deve ser, pode ser ou necessariamente é, em consonância com as convicções dominantes sobre o que seja um átomo, um comportamento, um agrupamento social ou um país. Anormalidade é o nome que se dá ao procedimento que fere a normalidade. Releva destacar, pois, que a normalidade é um estado e a anormalidade um procedimento.

Norma Ética. A norma representa formulações de modelos ou padrões que servem de critério de referência para a discriminação entre o normal e o anormal, adquirindo a natureza de mandamentos no mundo ético, com caráter imperativo, como prescrições de como deve o homem se conduzir, em referência ao que considera como bom, belo, útil ou conveniente. Toda norma ética encerra um mandamento, mas nem todo mandamento encerra uma norma ética, pois apenas os mandamentos que integram ordenações normativas são normas éticas, não o sendo os mandamentos desligados ou contrários a uma ordenação normativa vigente. Normas éticas são os mandamentos constitutivos de uma ordenação vigente. (7)

Lei e Ordem. Postas essas noções será dado o conceito de lei como ideia da ordem, como fórmula da ordem, elaborada por alguma inteligência para a conveniente disposição de coisas, a fim de produzir um efeito almejado. A lei precede a ordem e é o plano concebido do que vai ou deve acontecer. Toda ordem, normal ou anormal, depende de leis. Mas somente as leis referidas a ordens normais, ordem usual e comum, são normas. Mandamentos de comportamentos anormais não são normas.(8)

Leis Éticas e Leis Físicas. Interessante ponto de vista será marcado pelo filósofo brasileiro no que toca às leis éticas, afirmando serem estas as verdadeiras leis, por seu caráter imperativo do que deve ser, e não as leis físicas, meramente descritivas do que é, lembrando que na antiguidade lei era sempre o que hoje se chama lei ética e que as leis físicas, porque nada normalizam e apenas descrevem o ser das coisas, não deveriam ser jamais chamadas de normas. (9)

A Biologia Jurídica: os degraus da liberdade. No reino da matéria bruta impera o indeterminismo, no das células vale a autonomia das enzimas reguladoras e no reino humano tudo se dá pelo ato de escolha. Mas, pergunta o nosso filósofo, por quais causas o homem escolhe esta ou aquela via possível? A resposta é genial, porque em rigorosa coerência com as mais recentes descobertas da ciência, e surpreendente, porque se trata de uma argumentação que o jurista não está acostumado: a escolha se dá por controle genético (10).

O leitor apressado, sem boa vontade, estará pensando em teorias nazistas, mas, uma vez atento à clareza da exposição verá que não se trata disso, mas de um discurso que põe a ética na base do jurídico, que prega um direito teleológico, finalístico e atento ao seu fim último de fazer justiça. Explica o professor que há uma interação entre formas inatas e formas hereditárias. O ser comporta-se conforme seus genes, mas também modifica seus genes pelo seu comportamento. Um mesmo animal que habite a China terá um comportamento tradicional diverso de outro da mesma espécie que habite o Brasil. Ao longo do tempo esse comportamento determina mutações genéticas (11).

A Lei Ética Suprema. A lei ética suprema, o primeiro fundamento da ética, é a discriminação entre bons e maus comportamentos, pois apenas os comportamentos eficientes, adequados às contingências de cada ser, é que podem conservar a vida e preservar a espécie. A consciência terá papel preponderante na evolução humana, na medida em que evoluiu do mero instinto para a inteligência racional característica dos seres humanos. Consciência é percepção mais memória, “a evolução do homem, por ser uma operação consciente, se caracteriza pela vontade humana de promovê-la. (…) É uma tensão, um impulso persistente, uma obstinação, no sentido de alcançar um status mais elevado, mais perfeito, do que aquele em que ele se encontra. (…) Nas células, as enzimas se libertaram das determinações químicas, e passaram a se comportar teleonomicamente, traídas pelos fins fisiológicos do organismo. No homem, a consciência superou as determinações fisiológicas e passou a se dirigir para alvos culturais, que cintilam como estrelas, num firmamento imaterial (12).”

A Norma Jurídica. Dá a noção de norma jurídica como “mandamentos sobre os movimentos humanos que, em sociedade, podem ser oficialmente exigidos e oficialmente proibidos. As normas sobre outros movimentos humanos não são normas jurídicas. São normas de qualquer outra espécie. Jurídicas, somente são aquelas que oficialmente permitem determinados movimentos. Isto significa que somente são jurídicas, as normas relativas às interações que a inteligência governante considera necessárias, para que uma coletividade ou agrupamento humano seja, efetivamente, uma comunidade e, assim, atinja seus objetivos (13).”

Princípio da Legalidade e Princípio da Legitimidade. Todas as permissões jurídicas, explícitas ou implícitas, têm fundamento no Princípio da Legalidade, em última análise convertido na seguinte máxima: a todos é permitido fazer o que a norma jurídica não proíbe, e não fazer o que a norma jurídica não manda fazer. Há um princípio mais alto do que o Princípio da Legalidade, o princípio supremo que mais pertence à Ciência Política, embora se imponha à inteligência do jurista, que é o Princípio da Legitimidade (14).

O Homem e a Experiência Jurídica. O direito objetivo desejado pela sociedade é o que permite ambiente propício ao uso livre de bens soberanos, cuja existência histórica permite mudarem com as circunstâncias, quando mudam os sistemas éticos de referência, cambiantes porque frutos da inteligência humana (15). Sendo do homem a inteligência, esta será sempre solidária com o todo de que faz parte. Essa solidariedade determina a inteligência. A inteligência é necessariamente determinada pelo que o homem realmente é.

Direito Natural. Direito natural é o direito legítimo, que não é artificial, porque é consentâneo com o sistema ético de referência de certa sociedade, é “o conjunto das normas em que a inteligência governante na coletividade consigna os movimentos humanos que podem ser oficialmente exigidos, e os que são oficialmente proibidos, de acordo com o sistema ético vigente”. O direito natural não é um conjunto dos primeiros e imutáveis princípios da moralidade, pois tais princípios não são normas jurídicas, não podem ser chamados de Direito (16).

O Legal e o Legítimo. São legitimas as leis compatíveis com a normalidade ambiente, que sejam compatíveis com o sistema ético de referência. Só as leis que forem realmente normas jurídicas é que são legítimas, leis de direito natural, porque como normas jurídicas atendem o sistema ético subjacente. Leis legais podem ser ilegítimas, artificiais, quando não forem leis de direito natural, porque dissonantes do sistema ético de referência. A qualidade de insólita, o discrepar da lei em relação às convicções éticas dominantes, a faz uma lei ilegítima, artificial, uma anormalidade (17).

Direito Quântico é o Direito Natural, o Direito Legítimo. “O Direito Natural é Direito Quântico porque é o Direito reclamado pelas estruturas dos elementos quânticos, nas células dos componentes de uma população. É o Direito que atende às inclinações genéticas de um povo ou de um agrupamento humano. É o Direito radicado num "pool" genético. É o Direito que liga ou religa o homem à sua própria natureza. O Direito Quântico é o Direito que resulta do processo da organização do humano. É o Direito nascido de suas fontes bióticas. É o Direito a que chegou o imemorial processo de inumeráveis mutações. É o Direito destilado nos engenhos da seleção natural. É o Direito que exprime, em linguagem humana, o indefectível controlo genético. “Esse Direito é o que brota da "alma" do povo, como se costuma dizer. É o Direito que exprime o "sentimento" ou "estado de consciência" de uma classe, de um segmento social ou de um agrupamento conjuntural estável. É o Direito que se inspira em convicções profundas e generalizadas. É o Direito que reflete a índole de uma coletividade. O Direito Quântico é o Direito do eu histórico. O Direito legitimo é quântico porque delimita, quantifica a movimentação humana, segundo o sistema ético de referência que espelha disposições genéticas da coletividade. Ele é quântico porque não é arbitrário. É quântico porque não é descomedido. É quântico porque é feito sob medida, e é a medida da liberdade humana. É quântico porque relaciona o dever-ser com o ser de um sistema social de referência. (…) Uma relação jurídica é sempre uma interação quântica. (…) As interações nas relações jurídicas são quânticas, porque são as ações que as normas jurídicas permitem e quantificam. O Direito Objetivo é a ordenação de determinadas espécies de interações humanas. É a ordenação que quantifica a liberação das energias humanas, para assegurar o equilíbrio das forças, e para garantir que, a cada direito, corresponda uma obrigação. É a ordenação que delimita a liberação da energia, nos campos dos homens, para que a sociedade seja efetivamente o que ela precisa ser, isto é, um meio a serviço dos fins humanos. (…) O Direito, livre de imposições absolutas, se pode dirigir pelos interesses reais da sociedade, de acordo com os sistemas de referência efetivamente vigorantes. Pode o Direito não se sujeitar a não ser aos fins que a sociedade almeja. (…) A ordenação jurídica é a própria ordenação universal. É a ordenação universal no setor humano”.

Referências
1. Analisamos esta obra no terceiro capítulo de nossa dissertação de mestrado pela PUCSP com o título: O Princípio da Moralidade no Processo Civil. Depois publicamos um artigo com o título “Direito Quântico: Jusnaturalismo Indeterminista”, aparentemente aceito pelo mestre, pois tivemos a honra de receber dele um telefonema agradecendo o estudo, sem que na ocasião fizesse qualquer glosa à sugestão.
2. Já se começa a perceber o tirocínio do filósofo brasileiro, pois aqui está a negação dos princípios aristotélicos da causalidade, da identidade e da não-contradição, quando expõe que uma partícula está e não está em movimento ao mesmo tempo, conforme a posição do observador.
3. TELLES, Goffredo da Silva. O Direito Quantico. 6ª Ed. São Paulo: Max Lemonad, 1985, p. 59-67.
4. TELLES, ob. cit., p. 233-4.
5. TELLES, ob. cit., p. 246.
6. TELLES, ob. cit., p. 247-8.
7. TELLES, ob. cit., p. 255-61.
8. TELLES, ob. cit., p. 261-3.
9.  TELLES, ob. cit., p. 264-9.
10. TELLES, ob. cit., p. 319.
11. TELLES, ob. cit., p. 320-2.
12. TELLES, ob. cit., p. 326-7.
13. TELLES, ob. cit., p. 345.
14. TELLES, ob. cit., p. 400-07.
15. TELLES, ob. cit., p. 415-6.
16. TELLES, ob. cit., p. 421-24.
17. TELLES, ob. cit., p. 424-7.

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