Aspiração de juiz

De Sanctis diz que seu objetivo é fazer história

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30 de abril de 2009, 13h24

Em uma entrevista descontraída à revista Joyce Pascowitch, o juiz Fausto Martin De Sanctis — que mandou prender Daniel Dantas, Kia Joorabchian, Edemar Cid Ferreira e os executivos da Camargo Corrêa —, fala de seus planos ao jornalista Claudio Tognolli, também repórter especial da Consultor Jurídico, e revela que um de seus objetivos é fazer história. Em um ato falho, o juiz ainda confunde o ministro Gilmar Mendes, seu “inimigo” público, com o também ministro Gilson Dipp, só que este do Superior Tribunal de Justiça. O juiz trocou os nomes ao falar sobre o ministro que ele mais admira.

Atualmente, o paulistano de 45 anos — que atua na 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo —, reserva parte de seu tempo para concluir seu primeiro romance. Segundo o jornalista, o juiz não quer que sua literatura seja lida como a capitulação da seriedade que a tudo ele procura impor. E, ressalta, que talvez o termo nem seja apenas seriedade, mas intensidade. “Eu tento fazer tudo com intensidade. Tenho de passar para as pessoas que tento fazer o melhor e sempre intensamente, chutado jamais. Ou é para fazer, ou não se faz”, disse.

Nesta quinta-feira, os 18 desembargadores mais antigos do Tribunal Regional Federal da 3ª Região se reuniram para votar a abertura de dois processos administrativos movidos contra Fausto De Sanctis. O juiz é acusado de desrespeitar ordens de tribunais superiores ao decretar a segunda prisão do banqueiro Daniel Dantas, a despeito da decisão do STF pela soltura, e ao não determinar a suspensão da colaboração internacional após o caso Corinthians-MSI ter sido congelado no Brasil.

Leia a reportagem

“Eu quero fazer história"
Apesar de famoso, muito famoso — ou talvez por isso mesmo — o juiz federal Fausto Martin De Sanctis, da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, cuida de seu primeiro romance com desvelos de pai devotado. Afinal de contas esse paulistano de 45 anos, que mandou por duas vezes o banqueiro Daniel Dantas para trás das grades, não quer que sua literatura seja lida como a capitulação da seriedade que a tudo ele procura impor. E talvez o termo nem seja apenas seriedade, mas intensidade. “Eu tento fazer tudo com intensidade. Tenho de passar para as pessoas que tento fazer o melhor e sempre intensamente, chutado jamais. Ou é para fazer, ou não se faz”, proclama.

Fausto De Sanctis ganhou os holofotes onipresentes da mídia não só por causa da Operação Satiagraha, que levou Dantas às barras (solto depois pelo Supremo Tribunal Federal). Irremediavelmente, foram distribuídos à sua vara casos estrondosos. Como, por exemplo, as acusações de lavagem de dinheiro recaídas sobre a MSI, ex-agregada do Sport Club Corinthians Paulista, e as acusações que levaram à cadeia o banqueiro Edemar Cid Ferreira, do Banco Santos. Sabendo-se metido em terreno movediço, o juiz De Sanctis fez-se um medidor profissional das próprias palavras. Pensa muitos segundos antes de responder às mais minguadas perguntas. Custa convencê-lo de que falar sobre seu livro é também um sinal de pulcritude.

“Meu livro faz eu me divertir muito. Estou criando personagens. É a história de um juiz que vai julgar um fato e esse fato vai marcar a vida dele. O livro está todo pronto na minha cabeça. Estou no oitavo capítulo, são dez, e os dois finais são os mais longos, têm várias coisas a ser resolvidas e finalizadas. O livro se chama Montoya de Sorrento. Agora preciso reler tudo. Eu deixo uma boa interrogação no prólogo, se os fatos do livro são reais ou não. Não quero fazer nada pesado não, minha ideia é contar a vida de um juiz, pessoal e profissionalmente.” Numa parte de seu Ecce Homo, o filósofo Nietzsche ensinou que “uma coisa sou eu, outra são os meus escritos”. Fausto De Sanctis preocupase que mesmo as leituras mais dadivosas de sua obra possam tentar julgá-lo não enquanto autor liberto – mas como vetusto juiz voltado a latinórios.

O juiz federal mais famoso do país foi um juiz estadual um ano e dois meses. Está na magistratura federal desde 17 de outubro de 1991. Resolveu ser juiz por idealismo. “Fui procurador do estado e advogado público, trabalhei em vendas antes disto, estudava à noite na FMU. Fiz doutorado na USP e especialização na UnB. Ser juiz é algo muito complexo: quando você é advogado, pode requerer o que quiser, dentro e fora da lei. Cabe ao juiz aquela postura desafiadora que é dizer o que pode e o que não pode fazer. Ser juiz é um desafio jurídico: o magistrado faz a jurisprudência, não apenas a segue.”


De Sanctis gosta de ressaltar que seus olhos se voltaram ao mundo da jurisprudência criminal não por pura calistenia, ou pelo puro espírito de um rematado boxeur. Vindica que tudo nasceu de um processo de maturação. “Quando comecei, passei em sexto lugar no concurso. A minha intenção não era vir para o crime. A vida me levou para o direito criminal. Quando era procurador do estado, fiz questão de trabalhar no júri. A procuradora-chefe não queria que eu fosse. Mas eu disse: ‘Júri é mais difícil e mais complexo. Exige mais’. Como juiz estadual no interior, vi causas de pouca importância. Era frustrante, em termos criminais. Quando assumi o cargo de juiz federal, havia vagas para o fórum civil. Numa reunião do tribunal, o presidente perguntou quem tinha experiência no crime. Eu levantei a mão. No começo a vara não era especializada em crimes financeiros e lavagem de dinheiro. Essa especialização só veio em setembro de 2004.”

Quais casos julgados por De Sanctis mais lhe tocaram a alma? É uma das raras perguntas, das disparadas em 30 minutos de conversa, que o juiz mais famoso do Brasil responde gárrulo, sem pestanejar, sem racionalizar. “O que mais me tocou foi o seguinte: havia muitos réus no caso Banco Santos. Só no interrogatório deles tive a certeza absoluta de que vários eram inocentes. Alguns, por exemplo, tinham assumido suas funções no banco apenas para atender ao Banco Central. Senti que eram pessoas altamente qualificadas e que aquele processo estava destruindo a vida deles. Para mim foi muito importante buscar a reparação adequada, que seria a absolvição dos inocentes. Faço os processos velozes e com responsabilidade. Mas o do Banco Santos durou um ano e meio, poderia ter durado dez anos. É um caso muito complexo.”

É inocultável, evidente, que estamos diante de alguém que só pensa no trabalho. “O trabalho avança na minha vida pessoal. Semana passada fui a um show de música e não conseguia vê-lo, estava pensando na decisão. Quando vou ao cinema, às vezes me perguntam: ‘O que você achou daquela cena?’. E eu respondo: ‘Que cena?’. É muito comum acontecer isso comigo.” Pela quantidade de livros abertos em sua mesa, é também, de novo, evidente, indesviável, que De Sanctis busca algo nas letras. “Sou de fases, em literatura. Tive a fase dos livros árabes, li em 2008 não somente o famoso O Caçador de Pipas e outro que adorei, chamado Malika Oufkir, Prisioneira do Rei, que é a história real de uma prisioneira, interessantíssimo. Nesse mesmo ano acabei lendo mais dois livros árabes. Agora, em 2009, reli um do Machado de Assis. Estou começando outro, As Benevolentes, que não sei se vou conseguir porque é uma bíblia em termos de volume. Livros extensos me incomodam muito, sou muito ansioso e não tenho esse tempo todo. Às vezes acabo começando livros assim e não termino. Procuro sempre ler algo novo. Só viver de jurídico te transforma num espectro jurídico.”

Um magistrado sob a mira da Justiça

O controverso juiz De Sanctis está encalacrado em pelo menos quatro situações que envolvem seus despachos — e pode ser afastado.

1. Fausto De Sanctis responde a três processos da Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. O primeiro deles acusa o juiz de ter desobedecido a ordem do ministro do STF Celso de Mello, que em setembro passado suspendeu os atos processuais contra Boris Berezovsky, o russo que é acusado de evasão de divisas na parceria MSI-Corinthians. De Sanctis será julgado no dia 15 de abril e pode ser afastado de suas funções. Os dois outros processos têm relação com a Operação Satiagraha: questionase a segunda ordem de prisão para Daniel Dantas e a inclusão de um ex-funcionário do Supremo no texto da sentença que condenou o banqueiro.

2. A OAB considerou ilegal a devassa feita pela PF no departamento jurídico da Camargo Corrêa durante a Operação Castelo de Areia. Autorizada pelo juiz Fausto De Sanctis, a utilização das provas recolhidas nas salas dos advogados da empreiteira pode levar à anulação do processo.

3. Um dia depois de a reportagem de PODER ter entrevistado o juiz De Sanctis, a Justiça Federal libertou os dez presos da Operação Castelo de Areia. Um dos habeas corpus expedidos pela desembargadora Cecilia Mello diz que expressões utilizadas pelo juiz em suas ordens de prisões revelam “meras conjecturas”. E exemplificou, pinçado partes do texto: “Teriam sido; supostas; poderia estar havendo, suposto, eventual”.


4. O “suposto” financiamento ilegal de partidos políticos pela empreiteira Camargo Corrêa foi bombardeado por várias notas fiscais apresentadas por diversos políticos citados no inquérito. A exclusão do PT do relatório final da investigação coloca sob suspeita a imparcialidade do processo.

De Sanctis parece ter optado por resignar-se a medir suas palavras com muito pontilhismo. Porque a conversa já se dilata para mais de 30 minutos e ele parece ainda se precaver sobre o que o repórter possa vir a perguntar. É nesse momento que lhe são disparadas duas perguntas, das que ele reconhecidamente não gosta de responder. Uma sobre seu figadal inimigo público, o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes – que o acusou de ter tentado macular a imagem da mais alta corte do país quando insistiu em prender Daniel Dantas. Outra sobre o delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz, que ajudou a levar Dantas à cadeia. “Não tenho nada a dizer a respeito dele”, dispara De Sanctis, lacônico, quando instado sobre Gilmar. “É uma autoridade policial que trabalhou e a quem dei resposta conforme solicitação, não posso falar em nenhum conceito sobre ele. Ele fez um trabalho e eu, com base no trabalho dele, decidi. Cada delegado tem seu perfil”, responde (mais loquaz do que no estado anterior), a respeito do delegado Protógenes.

Sigmund Freud, pai da psicanálise, referia que o ato falho é o único que realizamos com extremo sucesso. O ato falho de De Sanctis, na entrevista, foi no mínimo engraçado. Era a hora de perguntar sobre qual era a personalidade pública que o juiz mais admirava. E ele assim respondeu ao gravador: “Como autoridade judiciária, prestigio muito o ministro Gilmar… é… Gilson Dipp. Como referência jurídica conhecida, li recentemente Voltaire e fiquei encantado com ele. O Testamento de Voltaire é muito interessante”, revelou De Sanctis — de forma a que lhe sobreveio a troca do primeiro nome do ministro Gilson, do STF, pelo primeiro nome do presidente do STF, seu rival público Gilmar Mendes.

De Sanctis responde longamente sobre como são as abordagens públicas a sua pessoa. “As abordagens populares são feitas de várias formas. Ontem fui num show do A-Ha e várias pessoas vieram me cumprimentar dizendo ‘parabéns pelo seu trabalho’. Outro dia estava almoçando na rua e uma senhora muito humilde, inclusive no jeito de se trajar, e com seu linguajar humilde, veio, pegou na minha mão e falou assim, daquele jeito, com o português errado: ‘Meus parabéns!’. E, em seu jeito humilde, ela me tocou. Eu não sei administrar bem isso. Juiz é diferente de cantor, de ator, que podem se vangloriar do que fazem e tirar proveito disso. Já o juiz não: tudo ele tem de pensar. Ele tem de pensar no alcance, para que não seja mal-interpretado. Tenho de administrar isso de forma a que não comprometa a imagem de um trabalho sério, um trabalho baseado no interesse público. Tenho de evitar que as pessoas pensem que estou decidindo algo para agradar.”

De Sanctis tem muito claro que as cobranças serão cada vez mais e maiores. “Eu decido apenas conforme a minha convicção, sempre, agradando ou desagradando. Se eu tiver de desagradar à população, vou desagradar. Por exemplo: fui contra a extradição do traficante Abadia. Muita gente chegou para mim e falou: ‘Como você é contra isso? Vai ser menos um traficante no Brasil’. Eu disse: ‘Sou contra porque virão muitos outros Abadias’. Uma pessoa que faz um trabalho como o meu é comentada de todas as formas, de todos os ângulos. E é bom que isso aconteça. Apenas espero que tenha espaço para todos, que não se censure ninguém. Que venham as críticas. Se eu estiver errado, terei de reconhecer.”

De Sanctis responde, medindo muito as palavras, quando indagado sobre a patacoada que o cineasta Fernando Meirelles deu na Editora Abril, cuja homenagem a este prestada foi devidamente repassada a De Sanctis. Meirelles dedicou-lhe o prêmio recebido, dizendo ‘De Sanctis é que merece, ele é o cara!’. O juiz fala com sobriedade. “Foi significativo, porque é uma pessoa de fora da área jurídica, com um prestígio social, de um nível intelectual altíssimo, com excelente reconhecimento profissional, que deu aquele recado no momento, no lugar e do jeito certo.”

Para encerrar nossa conversa, pede-se que o juiz faça um arrazoado sobre como melhorar o Brasil, sobre como ele vê o país. Foi sua resposta mais longa, que lhe brota do peito como um discurso munificente e cheio de arrebatos. “Cada um cumprir com seu papel com responsabilidade, sem desejar o que o outro conquistou. As pessoas têm o direito de até poderem aspirar à riqueza, mas que ela venha de forma honesta. Tenho minha fé, mas não posso externála porque julgo aqui casos que envolvem igrejas. A minha fé, junto com a minha experiência, e junto com os meus valores, tem permitido que eu continue firme, apesar de momentos difíceis, ou momentos frutuosos que eu passo cumprindo as minhas decisões, já que os questionamentos vêm de todos os lados.

O Brasil precisa ser repensado, as instituições têm de ser repensadas sobre se elas servem de fato àquilo que a Constituição previu para elas. Porque as instituições não bastam existir só por existir. Eu não me conformo com o povo que fica feliz porque consegue adquirir um eletrodoméstico em dez vezes, morando numa favela. Eu jamais vou aceitar isso. Não quero ideologizar, não há nisso nada de espírito de classe social, de minha parte. O povo é muito bom e, por conta de o povo ser maravilhosamente bom, do jeito que é, é que se permite que pessoas de valores pouco nobres acabem tomando espaço e intranquilizando uma grande massa do país. Está na hora de as instituições funcionarem para dar um basta nisso, e fazer de fato este país um país grande. O povo precisa prestigiar a verdade, porque, seja na área criminal ou em outra, a verdade faz o povo se ver no espelho. Em outras palavras: o povo tem de assumir o seu papel histórico e virar o cão líder da matilha, para olhar para a frente, e não olhar a cauda dos outros cães. Se não for assim, o povo se tornará material etnográfico. Eu não me tornei material etnográfico: eu quero fazer história, não fazer história para crescer, mas cumprir o meu papel. Autoridade não significa autoritarismo. O poder não é o mesmo que a autoridade: qualquer pessoa pode assumir o poder, o poder pode ser tomado, dado, obtido, emprestado. Uma criança tem poder sobre os pais, porque domina os seus pais. Agora, autoridade quem tem é quem tem respeito. Quem tem responsabilidade tem poder e autoridade.”

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