Briga na Corte

Pela primeira vez, briga foi considerada crise

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26 de abril de 2009, 18h01

Dora Kramer, colunista do jornal O Estado de S. Paulo, fala neste domingo (26/4) sobre a discussão entre os ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes, na última quarta-feira (22/4). A colunista comenta que o bate-boca entre ministros da Corte não foi inédito.

Leia o texto de Dora Kramer:

Banzé no Centro-Oeste

O empurra-empurra verbal entre o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, e o ministro Joaquim Barbosa não foi edificante nem inédito.

Mas foi a primeira evasão de temperamentos, entre as várias recentemente ocorridas naquela corte, a ser enquadrada na categoria "crise institucional" em algumas interpretações da cena.

Isso não acontece à toa nem por acaso. Há motivos certamente. Eles podem refletir desconhecimento sobre o verdadeiro significado de uma ruptura nas instituições, perda da noção do que seja crise, falta de discernimento na análise de episódios distintos ou, o que é mais provável, uma confusão completa na mente do espectador, tantos são os espetáculos em cartaz na República.

Uma coisa é um magistrado repreender o outro em plena sessão de julgamento no STF – Nelson Jobim, quando presidente do tribunal, era useiro e vezeiro em desqualificar em público a tese alheia – quando o ambiente é de razoável normalidade.

Outra é isso acontecer, nos termos em que aconteceu, com acusações pesadas, enquanto se assiste à exposição das feias entranhas do Congresso. A tendência, claro, é de se amplificar a impressão de bagunça.

Isso não quer dizer que, por serem agora habituais, os bate-bocas entre ministros do Supremo sejam normais ou aceitáveis. Não são. Entre outros e óbvios motivos, porque se a prática vira regra termina por contaminar o conteúdo dos julgamentos.

Sem falar do péssimo exemplo de que o exercício da divergência dispense a presença da civilidade.

Tampouco, como disse o presidente Luiz Inácio da Silva, ajudam "a sociedade e a democracia". Muito menos, conforme o entendimento de Lula, podem ser comparados a "brigas em campo de futebol".

O presidente quis colaborar com água fria na administração do episódio. Intencionalmente não iria depreciar o valor da liberdade de expressão, da transparência nos atos de Poder e, sobretudo, da dimensão do STF e seus integrantes.

Mas acabou depreciando, com uma metáfora que não facilita a compreensão do fato. Antes, subtrai cerimônia das instituições já tão carentes de solenidade e empanturradas de informalidades.

Há determinadas situações em que a simplificação complica. Dá margem ao maniqueísmo que tem se mostrado cada vez mais ativo e disseminado na separação dos fatos e das pessoas entre representantes do "bem" e delegados do "mal".

Exemplo bem recente e nítido ocorreu a partir da Operação Satiagraha, seus desdobramentos e repercussão na CPI dos Grampos. O delegado Protógenes Queiroz tornou-se o santo guerreiro combatente do dragão da maldade incorporado na figura do banqueiro Daniel Dantas.

A partir daí, estabeleceu-se um esquema segundo o qual quem critica as ilegalidades cometidas pelo delegado na investigação em nome do "bem" é aliado do satã, identificado em toda e qualquer pessoa que tome decisões – ainda que sustentadas na legalidade – formalmente favoráveis a Dantas.

Isso apesar de as irregularidades detectadas no inquérito contra o banqueiro terem fornecido bons, senão definitivos, argumentos à defesa de Daniel Dantas.

Entre os satanizados, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. E por quê? Porque concedeu habeas corpus ao banqueiro, porque reagiu a uma ofensiva de desmoralizar o Judiciário que levou o ex-ministro Sepúlveda Pertence – de temperamento diferente – a refugiar-se no abatimento, porque denunciou a existência (comprovada) de um esquema paralelo no aparato de segurança do Estado.

Por causa da exorbitância nos métodos, pagou o preço do carimbo de defensor dos poderosos. Basta pensar dois segundos para perceber que a ação de grampeadores clandestinos não atende exatamente às causas dos fracos e oprimidos.

E o que tem a ver o reducionismo da imagem de Gilmar Mendes a uma caricatura "maligna" com a briga no Supremo e a confusão geral de percepções?

Tem a ver com a boa imagem do ministro Joaquim Barbosa, justamente construída em sua atuação na relatoria do processo do mensalão, sua identificação com o presidente "operário" que o indicou (em contraposição à nomeação de Gilmar pelo intelectual Fernando Henrique Cardoso) e o fato de ser o primeiro, e único, ministro negro do STF.

Nada disso guarda relação direta e objetiva com esse e outros atritos protagonizados por ele no Supremo. Mas, para efeito de opinião pública, Barbosa começa encarnar a representação do "bem" no tribunal em oposição a Gilmar Mendes.

Como se um firmasse fileira com Protógenes, outro lutasse na trincheira de Daniel Dantas e ambos desfilassem seus atributos para gáudio das respectivas torcidas.

Nada mais artificial, nada mais pernicioso, nada mais maniqueísta e prejudicial a uma sociedade que se pretende autônoma em sua capacidade de decidir seu destino que a tutela da patrulha imbecilizante, infantil e passadista que condena ou absolve sem julgar por preguiça de pensar.
 

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