Suspeito condenado

Não há defesa efetiva após imagem veiculada na mídia

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25 de abril de 2009, 8h14

É de saltar aos olhos a intrepidez da indiferença com que a imprensa televisiva nacional tratam os direitos e garantias fundamentais – especialmente nos espetáculos das ações policiais praticadas contra cidadãos supostamente autores de condutas delitivas. Trata-se de um desvirtuado entretenimento diário transmitido em rede nacional que muitas vezes ultrapassa os limites da informação passando a exercer função de verdadeiro pré-julgamento.

O que se pergunta é: esta forma de entretenimento contribui para enaltecer discussões e participação popular em questões que são inerentes ao melhor convívio comum, ou prestam-se somente a obter maior audiência e lucros, denegrindo o cidadão comum perante os demais de sua comunidade e criando uma pseudo-barreira inter-social?

Optamos pela segunda opção como a melhor, pelos elementos que serão abordados adiante.

Em 10/4/2009, foi exibido em um programa de um canal da televisão aberta, em que um policial abordava um motorista com suspeita de embriaguez, e este se recusava a realizar o teste do bafômetro. Diante disto e dos claros sintomas de embriaguez, o mesmo foi autuado em flagrante e conduzido à delegacia. Até aí nenhuma irregularidade, prisão abarcada pelo ordenamento jurídico.

Sem adentrar no mérito da questão, o que fica no ar, é que antes que este cidadão exercesse seu direito de resposta, sua imagem que é um direito personalíssimo, difundira-se por todo o país, em cadeia nacional. Foi exibida claramente sua condução à viatura policial, as respostas aos questionamentos provenientes do policial militar condutor, e o fechamento do porta-malas onde o mesmo foi “acomodado”, tudo exibido nos mínimos detalhes. Seria este um jornalismo legalmente correto? Houve lesão à imagem do cidadão, houve lesão ao seu direito de intimidade? A Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso X, versa que: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” .

Por sua vez o Código Civil de 2002 em seu artigo 20, caput, versa que: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da Justiça, ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.”

Cristiano Chaves de Faria (2005, p.139) conceitua, a vida privada como o refúgio impenetrável pela coletividade, merecendo proteção. Ou seja, é o direito de viver a sua própria vida em isolamento, não sendo submetido à publicidade que não provocou, nem desejou. Consiste no direito de obstar que a atividade de terceiro venha a conhecer, descobrir ou divulgar as particularidades de uma pessoa.

Ora, não seria possível distorcer a imagem, com os instrumentos tecnológicos à disposição, para que o rosto do suposto infrator não fosse exibido para todo o país? È necessário expor de forma tão vexatória a vida alheia perante centenas de milhares de tele-espectadores?

Onde ficam os direitos fundamentais diante de todo este espetáculo que se utiliza da imagem das pessoas, sem a sua permissão, apenas pelo fato de que teria, em tese, praticado uma conduta defesa em lei?

Onde fica a presunção da inocência quando um programa televisivo, por conta própria, emite um juízo de valor contra determinado suspeito de infração penal?

E, não obstante tal afronta legal, pergunta-se: mesmo que fosse apurada sua culpabilidade em seara própria, ou seja, no Poder Judiciário com o devido trânsito em julgado, a penalidade de exposição televisiva para todo o país é razoável, justa e proporcional? Um órgão da imprensa porventura viria a ter a competência legal pra aplicar a pena a um infrator com suas características próprias – dosimetria da pena, análise dos elementos subjetivos, agravantes e atenuantes, dentre outros? A resposta é não.


O que se discute não é se há uma efetividade ou não das normas em matéria penal, mas sim a existência de uma distorção do campo em que a discussão deveria ocorrer. Havendo interesse em trazer ao público discussões de interesse comum, porque exibir os cidadãos em situações constrangedoras? Qual o interesse em exibir A ou B perante todo o país nos meios de comunicação, e, qual a utilidade prática disto, que em nada condiz com o alcance da “(…) administração de Justiça ou a manutenção da ordem pública(…), conforme permissivo que excetua a proibição constante no artigo 20, caput, do Código Civil de 2002?

Um cidadão que, suspeita-se, tenha praticado uma infração como dirigir alcoolizado ou outra qualquer não deveria se defender nas vias judiciais e investigativas? Por acaso a suspeita de incorrer em qualquer infração penal retira do cidadão o direito de ter resguardada a sua imagem e sua intimidade, e integridade moral – corolários do Estado democrático de Direito?

Pergunta-se: como poderá, um suspeito, defender a si mesmo, se, antes da instauração de um inquérito policial, já teve sua imagem veiculada por todo o país como se criminoso fosse? E mais: como poderá um condenado pela justiça, mesmo com sentença transitada em julgado, defender-se de uma exposição midiática, que impõe a penalidade de exposição de sua honra, integridade moral e sua intimidade, sem que sequer isto na conste na peça decisória?

Diante desta invasão televisiva à privacidade das pessoas, onde fica o direito ao contraditório, a ampla defesa, ao devido processo legal, e, ainda, da razoabilidade e da proporcionalidade?

Pode-se falar em presunção da inocência após a imagem do cidadão ser veiculada por todo o país com a tão popularizada alcunha de “bandido”?

Os abusos da imprensa nacional, em seus espetáculos midiáticos, e seus pré-julgamentos fazem com que os Tribunais fiquem em segundo plano em relação à imagem do cidadão perante seu grupo social. Como recuperar sua imagem após a exposição midiática que tenha formado uma opinião e um julgamento a seu respeito até às mais remotas localidades de toda extensão do território nacional?

Qual a diferença prática, para um cidadão que valoriza o bom nome acima de todas as coisas, entre uma absolvição em determinado juízo estadual, com a publicação da sentença no Diário Oficial do Estado, após a veiculação de sua imagem perante todo o país, acompanhada por milhões de pessoas inclusive a comunidade em que o mesmo esteja inserido, como se criminoso (no sentido de lesivo à coletividade) o fosse ? Salta aos olhos o abuso e o desrespeito à Carta Magna.

Poderão os mais radicais alegar que tal medida de exposição midiática milita a favor da Justiça, uma vez que a morosidade processual e a impunidade são características marcantes do Judiciário brasileiro, e que os espetáculos televisivos estariam compensando esta ineficiência estatal. Tal alegação é refutável de plano pelo simples fato de que sua aceitação é a negação do próprio Texto Constitucional.

Como aplicar uma pena contra a imagem, a dignidade e a intimidade, sem julgamento (princípio do devido processo legal), sem direito de resposta (princípio do contraditório e da ampla defesa), sem a atuação do profissional competente para tal (princípio do juízo natural e vedação ao tribunal de exceção)?

Defender a tese de que a imprensa cumpre seu papel ao exibir em seus programas um possível infrator, ou mesmo infrator (até mesmo com o devido trânsito em julgado), para todo o país é como defender uma outra modalidade de punição não prevista em lei, para compensar as mazelas do sistema processual penal nacional.

Ora, a imprensa não tem a função de ser um órgão que aplica a Justiça, e, mesmo com a mora do Judiciário e com o apoio popular, não pode se aproveitar de suas garantias constitucionais para se sobrepor à própria Constituição Federal, julgando, condenando e aplicando a pena conforme lhe pareça mais conveniente e atrativo ao público em geral.


Adentrando nos fundamentos da matéria, surge a questão: as garantias fundamentais prestam-se à defesa do cidadão contra abusos praticados tão somente pelo Estado deixando aos particulares a prerrogativa de acatarem ou não os comandos legais destinados ao Estado? A resposta mais uma vez é negativa.

O Supremo Tribunal Federal em decisão de lavra da eminente ministra Ellen Gracie já decidiu in verbis : “(…) As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.”. (Processo RE 201.819 / RJ. Relator(a): Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 11/10/2005. Órgão Julgador:2ª Turma. Data da Publicação DJ 27/10/2006)

Não obstante tal argumentação, podemos, então, situar de forma mais científica o presente debate com a seguinte questão: o princípio da liberdade de expressão e da atividade de comunicação independentemente de censura ou licença – constante no inciso IX do artigo 5º da Carta Magna, sobrepõe-se aos demais princípios constitucionais – também elencados no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, tais como direito à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem das pessoas e, ainda, ao devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, a presunção da inocência, entre outros? A resposta é não.

É pacífico o entendimento de que não há hierarquia entre princípios constitucionais fundamentais, e, ainda que, não há regras para a solução conflitual de princípios, pelo que no presente caso não há que se falar em preponderância de um em detrimento de outros vários. Há que se preservar a visão sistêmica e o princípio da unidade das normas constitucionais.

Pelo cenário exposto, ousamos resignadamente afirmar que beira a instituição do tribunal de exceção toda a exposição midiática que vem sendo exercida pelos meios de comunicação, os quais possuem um poder de convencimento e de formação de opinião, que deveria sim, ser regulado e regulamentado pelo Estado como forma de efetivação dos direitos e das garantias fundamentais, protegendo e resguardando os cidadãos brasileiros das atividades invasivas e ditatoriais da imprensa quando. Ao invés de atuar no sentido de promover uma integração social e uma melhoria na obtenção do bem coletivo, a imprensa age vilipendiando e mitigando a dignidade e a intimidade, a honra moral, a privacidade e a respeitabilidade do cidadão como ser humano, exercendo pré-julgamentos e punições, sem o devido compromisso com a Constituição da República de 1988.

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