Direito dos Homens

A Declaração Universal, sua significação e alcance

Autor

  • Manoel Gonçalves Ferreira Filho

    é professor emérito e titular aposentado de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Doutor honoris causa da Universidade de Lisboa. Doutor pela Universidade de Paris. Ex-professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence (França). Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Presidente do Instituto "Pimenta Bueno" — Associação Brasileira dos Constitucionalistas.

25 de abril de 2009, 6h02

1. Os sessenta anos da Declaração.

As efemérides dão ensejo o mais das vezes ao elogio não raro exagerado dos fatos que comemoram. Entretanto, podem elas servir de pretexto, ou de ocasião, para o exame dos méritos, ou eventuais deméritos do fato posto em evidência.

O propósito desta palestra não é nem o primeiro, nem o segundo. É, sim, em função do sexagésimo aniversário da promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, examinar algumas das questões jurídicas fundamentais que ela suscita. Assim, pretende sucessivamente provocar uma ponderação acerca da força jurídica da Declaração, do fundamento dos direitos declarados, da universalidade desses direitos e dos caracteres que os marcam, depois de um breve escorço da elaboração do mencionado documento.

E, como um aspecto leva a outro, o estudo abordará alguns temas que interessam particularmente o direito brasileiro.

I. Alguns dados históricos

2. A elaboração

A Declaração de 1948 resulta de um texto preparado no âmbito da Comissão de Direitos Humanos, constituída no âmbito da ONU, por seu Conselho Econômico e Social. Essa comissão foi presidida pela sra. Eleanor Roosevelt, viúva do presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt. Nela, destacou-se a contribuição de um jurista francês, René Cassin, que anos mais tarde recebeu o Prêmio Nobel da Paz por essa participação. Igualmente, merece registro a colaboração que a ela deu o brasileiro Austregésilo de Athayde, membro da delegação à Assembleia Geral de 1948, que aprovou a Declaração em 10 de dezembro.

3. O estabelecimento do texto

O texto da Declaração resultou de um compromisso, depois do afrontamento de concepções divergentes sobre os direitos do homem, seu conteúdo, caracteres, assim como sobre o alcance do documento. Na verdade, preponderou quanto a ele o pensamento dominante nos países liderados pelos Estados Unidos, ao tempo em “guerra fria” com os que encabeçava a URSS. Isto claramente na sua votação pela Assembleia Geral.

4. A votação e as dissidências

Foi o texto aprovado por unanimidade — 48 votos — mas houve oito abstenções e dois Estados não estavam presentes quando da deliberação. Estes foram Honduras e Iêmen, aqueles, URSS, Belarus, Ucrânia, Tchecoslováquia, Polônia, Iugoslávia, mas igualmente Arábia Saudita e África do Sul.

Claramente, pois, ficou nítida a dissintonia sobre o documento, entre os Estados então governados pelos comunistas e os Estados muçulmanos e a maioria, as democracias ditas “ocidentais, pondo-se de parte a ausência de Honduras e a abstenção da África do Sul, esta ainda comandada por racistas. Não surpreenda o voto favorável da China, que, à época, era regida por Chiang-Kai-Chek, aliado dos “ocidentais”.

II. A força jurídica da Declaração

5. O aspecto técnico

A Declaração Universal foi adotada e proclamada pela Assembléia Geral da ONU por meio da Resolução 217-A, de 10 de dezembro de 1948.

6. Uma recomendação, não uma “lei”

Ela enuncia uma recomendação, não edita uma lei, isto, é um conjunto de normas cogentes. Deflui isto claramente do seu próprio enunciado. O seu preâmbulo conclui: “A Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos direitos do Homem como o ideal comum — enfatizo — a atingir por todos os povos e todas as nações”.

Sua finalidade não é editar normas de direito, mas antes educativa. Como faz logo em seguida do trecho acima citado, ela o indica: “A fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo esta Declaração constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, a desenvolver o respeito desses direitos e liberdades”, etc.

Juristas há que, hoje, pretendem ser ela cogente. Argumentam com uma supremacia absoluta do direito internacional que não é aceita por outros, muito menos pela prática da grande maioria das nações. Exceção talvez possa ser o direito italiano, porque o art. 10, primeira parte, da Constituição de 1947 afirma: “A ordem jurídica italiana conforma-se com as regras de direito internacional geralmente reconhecidas”.


7. Desdobramentos cogentes

Em verdade, a própria ONU não a reconhece como cogente. Depreende-se isto de modo insofismável do fato de que, pelo Pacto internacional relativo aos direitos civis e políticos, de 16 de dezembro de 1966 (Resolução 2.200-A da Assembléia Geral), ela veio a instaurar para os Estados a ele aderentes a cogência do de normas enunciativas de direitos fundamentais.

Indiscutivelmente, porém, a Declaração Universal poderia servir para a identificação dos direitos (fundamentais) implícitos, que Constituições como a brasileira — 1988, artigo 5º, parágrafo 2º — admitem. Entretanto, a questão é meramente teórica, visto que a Declaração constitucionalizada em 1988 não deixa de explicitar quaisquer dos direitos que o documento internacional consagra.

III. O fundamento dos direitos declarados

8. O fundamento dos direitos do Homem

A Declaração Universal não enfrenta diretamente esta questão, a mais polêmica de todas concernentes à doutrina dos direitos fundamentais. Ela afirma haver “direitos iguais e inalienáveis”, cujos titulares são “todos os membros da família humana”, na abertura do preâmbulo. E, nesse passo, invoca o “reconhecimento da dignidade humana”. Mais longe, acena para a importância de uma “concepção comum dos direitos e liberdades”. Assim, sem escolher entre as opções, sugere duas: a posição jusnaturalista, segundo a qual os direitos decorrem da natureza humana, sendo inerente a esta uma dignidade especial; e a posição sociológico-positivista, segundo a qual eles exprimiriam um “consensus humani generis”.

9. O consensus humani generis

Esta tese, a que Bobbio se refere sem subscrever, vê como fundamento dos direitos um consenso comum entre os indivíduos, povos e nações.[1] Consenso que se inspira numa evidência que fala por si só à mente humana. É a posição que tantos assumem no Brasil, confundindo suas convicções com as evidências e propondo a sua boa razão como medida de todas as coisas. Fácil, todavia, é refutá-la, bastando lembrar a votação da Assembleia Geral do ONU — ou será que os marxistas ou os islamitas são desprovidos de razão, ou cegos para as evidências? A este ponto mais adiante se voltará a propósito da universalização.

10. A dignidade da pessoa humana

A referência à dignidade da pessoa humana remete ao direito natural. Na verdade, quando, no século XVIII, afirmaram-se os Direitos do Homem o fundamento destes era indiscutível: o direito natural. Isto é patente, seja na Declaração de Independência das colônias inglesas da América do Norte, seja na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

Entretanto, a avassaladora crítica sofrida pelo jusnaturalismo por parte dos positivistas, que ainda é formulada com intensidade por Norberto Bobbio,[2] levou ao abandono — ao menos, ostensivo — da tese. Realmente, no curso do século XIX, declaram-se direitos fundamentais, passando em silêncio a sua razão de ser.

Deve-se registrar, todavia, que A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, editada em Bogotá em 1948, afirma que os “direitos essenciais do Homem” repousam sobre os “atributos da pessoa humana” (Preâmbulo, item 2º). A Convenção americana relativa aos direitos do Homem — o Pacto de S. José da Costa Rica, de 1969, repete a fórmula. Ou seja, funda os “direitos fundamentais do Homem” nos “atributos da pessoa humana”.

A Declaração sobre os direitos do Homem, expedida pelo Conselho de Ministros da União Européia em 1978, aponta que tais direitos decorrem da “dignidade da pessoa humana” (item 4).

A Carta Africana dos direitos do Homem e dos Povos, adotada em Nairobi em 1981 declara que os “direitos fundamentais do ser humano são fundados nos atributos da pessoa humana” (Preâmbulo, item 4).

A própria Declaração Universal refere-se, no primeiro item do Preâmbulo, ao “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana”. Isto pelo menos sugere um fundamento jusnaturalista para tais direitos.


Sem dúvida, persiste, envergonhada, a invocação do direito natural como base dos direitos fundamentais.

11. Bobbio pretende pôr de lado a discussão sobre o fundamento dos direitos. Para, o problema não é justificá-los, mas é protegê-los

Entretanto, não pôde fugir à discussão do tema. Apresenta então algumas observações dignas de exame. Aponta serem os direitos do Homem “direitos históricos, que emergem gradualmente das lutas que o homem trava por sua própria emancipação”.[3] São eles “o produto não da natureza, mas da civilização humana”. Assim, “os direitos elencados na Declaração (universal) não são os únicos e possíveis direitos do Homem: são os direitos do Homem histórico”. E ajunta: “A Declaração Universal apresenta a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX”.

A tese é hábil, contudo a experiência do mundo pós-declaração leva à formulação de graves questionamentos. Um, a experiência histórica é igual para todos os povos, de modo a justificar uma conscientização dos mesmos direitos? Somente existe uma “civilização”, a que paulatinamente todos os povos acedem? Ao pretender que a “humanidade” toda possua os mesmos valores, não se estará, por um lado, voltando ao consensus humani generis que o próprio Bobbio repeliu? Enfim, alicerçar os direitos fundamentais na história não importa em relativizá-los?

IV. A universalidade.

12. A discussão precedente desdobra-se noutras que vale a pena aflorar. Uma delas é o da universalidade dos direitos fundamentais[4]

A lógica tanto da tese jusnaturalista como da tese humanista de Bobbio impõe essa universalidade. Se todos os homens têm a mesma natureza e dignidade, todos devem gozar de tais direitos. Se a humanidade tem os mesmos valores, todos hão de ter os mesmos direitos.

Cabe observar, todavia, que a concepção prevalecente quanto à dignidade da pessoa humana, adotada pela doutrina dos direitos fundamentais, desenvolveu-se vinculada à cultura greco-romana-cristã, a “ocidental” e não coincide com a idéia que dessa dignidade fazem outras culturas.

Ela é motivo de orgulho para os que se integram nessa cultura, contudo não dispensa se leve em conta o entendimento de outras culturas. Do contrário, ela poderá aparecer aos não pertencentes a esta civilização, como mais uma manifestação da pretendida superioridade “ocidental”.

13. De fato, a antropologia mostra — e a prática torna evidente — que há pelo mundo a convivência de diferentes culturas, mesmo que se aceite (o que me parece contestável) existir uma única civilização. Ora, cada cultura tem da pessoa humana e de sua dignidade uma visão pelo menos em parte diversa. Isto deve ser levado em conta na definição das projeções dessa natureza e dignidade que são os direitos fundamentais reconhecidos.

Registra Jorge Miranda, a grande diferença de concepções sobre direitos e deveres do ser humano, e sobre a sua própria liberdade, que existe entre as grandes culturas.[5]

Algumas sequer enfatizam direitos.

A hindu, por exemplo, põe em paralelo cinco liberdades e cinco virtudes. As liberdades: a liberdade frente à violência, a liberdade frente à necessidade, a liberdade frente à exploração, a liberdade frente à desonra, a liberdade frente à morte e à doença; a elas correspondem as virtudes: a ausência de intolerância, a compaixão ou solidariedade, a sabedoria, o império da consciência, a ausência de medo

O confucionismo – ainda relevante na China – enfatiza deveres para com os "vizinhos", o "companheirismo", o respeito aos mais idosos, presumidamente mais sábios.

14. O ponto mais delicado da questão concerne à cultura islâmica. Com efeito, é visível no mundo contemporâneo o afrontamento entre esta e a cultura “ocidental”, uma das causas do conflito bélico a que presentemente se assiste no Iraque e noutros países. Ora, essa cultura concebe a dignidade da pessoa humana de modo diferente da que está inscrita na doutrina prevalecente sobre o assunto, ao menos no chamado Ocidente.


Cumpre observar que a cultura islâmica registra ser o homem dotado de uma eminente dignidade. Um pensador muçulmano, Muhammad Hamad Ader, pretende mesmo que os princípios relativos aos direitos do homem “provêm do Islam”. E acrescenta: “De fato, ninguém pode negar a influência exercida pelo Islam sobre o Ocidente por meio da Andaluzia e dos cruzados”. Para concluir: “Ao contrário, os princípios que não adota o Islam não são senão slogans vãos e fúteis, não apresentando qualquer interesse para a dignidade do homem”.[6]

Igualmente, não há objeção quanto à possibilidade por parte do islamismo quanto a declarar os direitos do homem, o que esta cultura admite. Foi mesmo difundida uma Declaração Islâmica dos Direitos do Homem, publicada em 1981 pelo Conselho Islâmico, órgão não-oficial, mas oficioso do mundo muçulmano.

15. Entretanto, na enunciação dos direitos abre-se a grande diferença entre a concepção “ocidental” e a islâmica

Na verdade, o islamismo não aceita, entre outros, o princípio da igualdade entre fiéis e infiéis, bem como entre homens e mulheres, óbice intransponível à sua compatibilização com a doutrina dos direitos fundamentais. Recusa, também, a liberdade de crença, não aceitando que o muçulmano abandone a religião islâmica. Na verdade, deve ele ser morto, se o fizer. Não aceita, para o homem a liberdade de contrair casamento com pessoas de determinadas religiões, tolerando o matrimônio com mulheres cuja religião tenha livros reconhecidos (é o caso do cristianismo); para a mulher, proíbe rigorosamente o casamento com não muçulmano. Reserva os direitos políticos aos muçulmanos. Não tolera, sequer, o princípio da igualdade de acesso a cargos públicos: a função de juiz há de ser de muçulmano. Seu direito penal consagra penas que, na opinião dos "ocidentais", seriam intoleráveis, cruéis, desmedidas: o apedrejamento da adúltera, a amputação de membros dos culpados de certos crimes – da mão do ladrão – as marcas infamantes, etc.

E ninguém esqueça que abençoa a poligamia, e, na prática, tolera a escravidão.

Deve-se convir, com Sami A. Aldeeb Abu-Salieh, haver um fosso entre a concepção islâmica e aquela que prevalece na Declaração dita universal, de 1948.[7]

É certo que os posicionamentos acima citados pertencem a uma concepção “integrista” do islamismo. Entretanto, como os muçulmanos consideram ter o direito um caráter religioso, estando contido no Corão e subsidiariamente na Suna (narrações e gestos) de Maomé, isto bloqueia, ou, ao menos, dificulta uma evolução que o compatibilize com a concepção "ocidental".

V. A identificação dos direitos.

16. Uma outra indagação delicada deflui do questionamento sobre o fundamento dos Human rights. Igualmente, ela se põe tanto em relação ao jusnaturalismo, quanto ao humanismo à Bobbio. Sim, em ambos os casos há que buscar os caracteres que presidem a atribuição da qualificação de fundamentais a alguns direitos e não a outros. E o problema se torna grave, quando se leva em conta documentos como a Constituição brasileira de 1988 que erige a direito fundamental o direito a certidões, ou a instâncias internacionais em que já se propôs a consagração do direito ao sono.

Ora, a consagração generalizada de direitos como fundamentais, irá, como já observou Tércio Sampaio Ferraz Júnior, trivializá-los, diminuindo sua força moral.[8]

17. Este tema não escapou a Robert Alexy. Examina-o num estudo intitulado “Direitos fundamentais no Estado constitucional Democrático[9], em que ele aponta os caracteres de um direito, necessários para que seja inscrito entre os direitos do homem.


O primeiro dentre eles é ser um direito universal. Isto significa ab initio que o direito deve concernir a todo e qualquer ser humano, mas daqui não decorre que coletividades não possam ter direitos fundamentais, na medida que sejam “meio para a realização de direitos do homem”.[10]

O segundo é ser um direito moral. Ou seja, que à sua base esteja uma norma que “valha moralmente”. [11]

Outro consiste em fazer jus à sua “proteção pelo direito positivo estatal” — ser, na sua terminologia, um direito preferencial.[12] Lembra que este aspecto está previsto no artigo 28 da Declaração Universal de 1948, quando ela afirma: “Toda pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem tal que os direitos e liberdades enunciados na presente Declaração aí possam ter pleno efeito.”

Igualmente, o direito deve ser fundamental.[13] Quer dizer, que preencha duas condições: a primeira é que “deve tratar… de interesses e carências que, em geral, podem e devem ser protegidos e fomentados pelo direito”[14]; e a segunda: “é que o interesse ou carência seja tão fundamental que a necessidade de seu respeito, sua proteção ou seu fomento se deixe fundamentar pelo direito”, vale dizer, “quando sua violação ou não-satisfação significa ou a morte ou sofrimento grave ou toca no núcleo essencial da autonomia”.[15]

Alude ainda Alexy a um quinto traço característico dos direitos do homem: ser o direito abstrato, sendo, por isto, suscetível de restrição.[16]

18. A preocupação com a identificação dos caracteres próprios a um direito fundamental está presente, contemporaneamente, no campo dos internacionalistas.

Na verdade, alguns destes é que têm dado maior atenção ao tema. A razão disto é simples. Nas instâncias internacionais, já se reconheceram direitos como fundamentais que muito longe estão do perfil dos direitos de liberdade, ou dos direitos sociais. É o caso do direito à paz, do direito ao patrimônio comum da humanidade, do direito ao desenvolvimento, etc. E muitos outros têm sido propostos como o direito a modos de vida alternativos, o direito ao sono já mencionado, etc.[17]

Neste contexto, num importante estudo, Philip Alston, depois de analisar a opinião de conhecidos estudiosos como Maurice Cranston e F. G. Jacobs sobre o assunto, manifesta a sua, a respeito dos requisitos de um direito fundamental[18]. Para ele, na perspectiva internacionalista, não podem ser reconhecidos como fundamentais, senão os direitos que: 1) reflitam um importante valor social; 2) sejam relevantes para todos, embora em grau variável dados os diferentes sistemas de valor coexistentes no mundo; 3) tenham base em normas da Carta da ONU, ou em regras jurídicas costumeiras, ou nos princípios gerais de direito; 4) sejam consistentes com o atual sistema de direito internacional, sem serem repetitivos; 5) sejam capazes de alcançar um muito alto nível de consenso; 6) não sejam incompatíveis com a prática comum dos Estados; e 7) sejam suficientemente precisos para dar lugar a direitos e obrigações identificáveis.[19]

19. À luz desses ensinamentos, pode-se dizer que um direito fundamental deve manifestar cinco traços, ao menos. Aproveitando-se o ensinamento de Alexy, seriam eles: 1) direitos vinculados diretamente à dignidade da pessoa humana; 2) portanto, concernirem a todos os seres humanos; 3) terem valor moral; 4) serem suscetíveis de promoção ou garantia pelo direito e 5) pesarem de modo capital para a vida de cada um.

20. Estes seriam direitos humanos fundamentais materiais, portanto, “verdadeiros” direitos fundamentais. Outros, mesmo que inscritos numa Declaração, caso não apresentem todos esses caracteres, serão direitos fundamentais apenas formais.


Esta distinção entre direitos fundamentais materiais e direitos fundamentais formais é acolhida pela melhor doutrina. É o que ensina Jorge Miranda.[20] E — vale apontar — transparece de decisões do Supremo Tribunal Federal.

VI. Os direitos implícitos

21. O posicionamento de que há traços necessários para a configuração de um direito fundamental é uma contribuição significativa para a identificação dos direitos fundamentais implícitos, a que se refere o artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição brasileira, por exemplo. Sobre tal tema, grande tem sido a hesitação da doutrina.

22. A referência a direitos implícitos foi pela primeira vez enunciada na Emenda Constitucional nº 9, de 1791, à Constituição dos Estados Unidos da América. No texto americano, que se destaca por ser o primeiro, lê-se: “A enumeração de certos direitos na Constituição não será interpretada como excluindo ou restringindo outros direitos conservados pelo povo”.

23. A doutrina americana, de modo geral, evita a determinação de critério para a identificação dos direitos implícitos. No livro clássico de Corwin, A Constituição norte-americana e seu significado atual, não há senão uma vaga menção à “história da cláusula de due process of law”.[21]

A Suprema Corte, em várias oportunidades, levou em conta a referida Emenda. Assim, por exemplo, a propósito do direito à privacidade e, mais recentemente, acerca da projeção deste nas relações conjugais — no famoso caso Griswold. Neste, o Justice Goldberg discorreu sobre o assunto, mas apenas para salientar a existência de direitos não enunciados expressamente no Bill of Rights.[22] E o tema voltou, com tratamento equivalente, no caso Roe x Wade.[23]

Entretanto, a Suprema Corte, apesar de haver reconhecido muitos direitos fundamentais não enumerados no Bill of Rights, tem preferido apresentá-los como desdobramento de direitos expressos, fundamentando-os, portanto, nestes.

Isto torna-se claro na manifestação do juiz Brennan acerca da abrangência da liberdade. Esta compreenderia: 1) a ausência de constrangimento corporal; 2) o poder de decidir sobre as questões básicas da vida; e 3) a autonomia quanto ao desenvolvimento e expressão do próprio intelecto e personalidade.[24] Disto resulta evidentemente que basta desdobrar a liberdade, para justificar, se não todos, a grande maioria dos direitos implícitos que se pretende consagrar.

Tomando este caminho, a Suprema Corte tem fugido à crítica de que estaria afirmando direitos criados pela mera vontade do juiz (“judge’s own discretion”)[25]. Esta objeção provêm da forte corrente “conservadora” que pretende dever ser a Constituição interpretada como a quiseram os seus elaboradores. Disto é expressão a conhecida afirmação de Robert Bork: “A verdade é que o juiz que olha para fora da Constituição histórica sempre olha dentro de si mesmo e para nenhum outro lugar”.[26]

Destarte, não se extrai da jurisprudência da Suprema Corte qualquer critério nítido para a identificação dos nonenumerated rights.

24. No direito brasileiro, talvez a primeira a reiterar a idéia, a previsão de direitos implícitos está na a Constituição de 1891 (art. 78). Tem sido repetida pelas Constituições posteriores, como a de 1988, que o faz no artigo 5º, parágrafo 2º.

O texto de 1891 encarou tais direitos como “resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna”. Disto não se afasta, na sua primeira parte, o preceito vigente, que os encara como “decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”, (acrescentando, todavia, “ou dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte”).


25. A doutrina brasileira em geral não tem procurado identificar os elementos que justificariam o reconhecimento de novos direitos. Vale lembrar que, do artigo 78 da Lei Magna de 1891, Barbalho apenas extraiu a rejeição do princípio de interpretação “inclusio unius exclusio alterius”.[27]

Não parece, todavia, sem propósito assinalar a ligação que há de haver entre tais direitos e o princípio da dignidade humana (Constituição, art. 1º, III). Com efeito, absurdo seria considerar direito humano fundamental, um direito que, embora importante, não se ligue ao âmago da natureza humana. Caso contrário, a identificação torna-se totalmente arbitrária.

26. A previsão de direitos implícitos está presente no direito constitucional português. Já o estava na Constituição de 1911, artigo 4º, por influência — é Canotilho quem aponta — da Constituição brasileira de 1891.[28] Na Lei Magna em vigor, verdade que vinculada ao direito internacional, é enunciada no artigo 16, 1º: “Os direitos fundamentais consagrados nesta Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”.

Dela, extraem os comentaristas idéias importantes. Assim, Jorge Miranda e Rui Medeiros apontam que esse texto consagra “uma noção material de direitos fundamentais, derivada da própria idéia da dignidade da pessoa humana”. Essa “cláusula aberta” — acrescentam — “trata apenas de … reconhecer alguns (direitos) que, pela sua fundamentalidade, pela conexão com direitos fundamentais formais, pela sua natureza análoga, … ou pela sua decorrência imediata de princípios constitucionais se situem ao nível da Constituição material”. [29]

A seu turno, Canotilho e Vital Moreira sublinham, no mesmo sentido, que “o nº 1 aponta para um conceito material e para uma perspectiva aberta dos direitos fundamentais”.[30]

27. Quanto ao cerne desses direitos implícitos, Canotilho contenta-se com uma referência analógica. Afirma que “a orientação tendencial de princípio é considerar como direitos extraconstitucionais materialmente fundamentais os direitos equiparáveis pelo seu objeto e importância aos diversos tipos de direitos formalmente fundamentais”.[31]

Jorge Miranda, no seu afamado Manual, delineia o cerne material dos direitos fundamentais: seriam “prima facie … direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos da pessoa, como os direitos que constituem a base jurídica da vida humana no seu nível atual de dignidade, como as bases principais da situação jurídica de cada pessoa”. Mas aponta que “eles dependem das filosofias políticas, sociais e econômicas e das circunstâncias de cada época e lugar”. [32]

28. Como se pôde aperceber sempre encontrou a doutrina dificuldade em determinar os critérios de identificação dos direitos implícitos. É o que suplementam hoje os posicionamentos de Alexy, Alston e outros. De fato, os direitos implícitos não podem ser senão direitos que correspondam à natureza e aos caracteres já apontados de um direito fundamental material.

29. Permita-se-me uma digressão

Resulta ainda da idéia de direito fundamental material a importância relativa da referência a tratados sobre direitos humanos, que faz a Constituição brasileira, no art. 5º, § 2º, parte final, ou ao direito internacional, presente na Constituição lusa, no referido art. 16, 1º já citado. De fato, ou o direito é por natureza fundamental e assim prescinde da fundamentação internacionalista, ou não o é, do que decorre não passar de um direito comum, sujeito ao tratamento ordinário dos direitos comuns. Isto significa que os direitos fundamentais materiais eram, e são, integrantes do ordenamento brasileiro, independentemente da sua inclusão num tratado internacional a que o Brasil adira.


30. É neste ponto que se há de inserir a exegese do parágrafo 3º do artigo 5º da Lei Magna brasileira: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”

Este preceito, inserido na Constituição pela Emenda Constitucional 45/2004 permite que direitos apenas formalmente fundamentais, provenientes de um tratado, sejam integrados como direitos constitucionais no ordenamento brasileiro. São direitos comuns que eventualmente sejam inscritos na Constituição, contudo não passarão de direitos fundamentais formais, como outros que, por decisão do constituinte, estão incluídos no rol do artigo 5º da Lei Maior.

Evidentemente, por força do direito intertemporal — o princípio do efeito futuro e não retroativo dos atos jurídicos — os direitos advenientes de tratados adotados pelo direito brasileiro, antes da vigência da Emenda Constitucional 45/2004, não estão incorporados ao nosso direito constitucional.

31. Perguntar-se-á por que aprovar um tratado por esse quorum especial, quando se ele enunciar direitos verdadeiramente fundamentais, estes estarão por sua natureza integrados na ordem constitucional brasileira.

Isto se explica se tiver presente a distinção entre a essência, ou seja, o cerne, o conteúdo essencial de um direito fundamental, do regime jurídico que um texto positivo lhe imprima. Este regime são as condições de seu exercício, pois estas hão de variar segundo o tempo e o lugar.

Tais condições podem ser estabelecidas, seja pela própria Declaração, seja pela Constituição, seja pela lei nos limites desses documentos, seja pelo tratado internacional, incorporado este como lei, e, com mais força, como norma constitucionalizada.

32. Acrescente-se que essas observações servem para a exegese da “inabolibidade” dos direitos fundamentais, prevista no artigo 60, parágrafo 4º, IV da Constituição brasileira.

Dispõe este artigo 60, parágrafo 4º: “ Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: …”. E seu inciso IV menciona: “os direitos e garantias individuais”.

Preste-se atenção para que a proibição é de “abolir”. Ora, “abolir” em português significa “extinguir”, “anular”, “revogar”…, jamais “não mudar”. Assim, o que veda a Constituição é que seja suprimido um direito, não que seja alterado o seu regime.

Justifica-se isto, porque, como ensina Robert Alexy, somente se pode falar em abolição de um instituto, quando é contrariado o seu “conteúdo essencial”.[33]

Em consequência disto decorre, a contrario sensu, que, respeitado o princípio essencial de cada uma das matérias indicadas nos incisos do texto, a sua disciplina pode ser modificada pelo meio adequado.[34]

Este entendimento tem abono em decisão do Supremo Tribunal Federal.[35]

Observações finais.

33. Cabe, ao terminar, uma breve síntese do exposto

A Declaração Universal de 1988 não é um documento cogente, a impor-se a todos os Estados, mesmo aos membros da ONU. Ela tem, entretanto, um caráter simbólico muito importante, na medida em que pretende conduzir ao respeito da dignidade humana.

No plano teórico, o seu ponto fraco está na ausência de uma fundamentação sólida e consagrada a respeito dos direitos que enuncia. Isto se reflete noutros aspectos que motivam controvérsia longa que certamente está longe de chegar a termo.

Uma grave questão afeta a sua própria força moral. Concerne á divergência entre as diferentes culturas coexistentes no orbe acerca da noção de dignidade humana. Esta não é uma e fixa, mas profundamente marcada pela história, pela religião, pela experiência dessas culturas. Assim, a sua universalidade é posta em dúvida, podendo aparecer para muitos como uma imposição estranha a suas crenças, ao seu modo de vida, a seus costumes.


Não ajuda a causa dos direitos fundamentais a multiplicação destes. Isto, por um lado, os trivializa, e, por outro, cria obstáculos à sua desejável consagração universal. Não exclui esse risco a identificação de novos direitos, em novos momentos de conscientização, a exemplo do que já se passou na história. De fato, os direitos fundamentais na origem praticamente identificados às liberdades, enriqueceram-se com o advento dos direitos sociais. Entretanto, é preciso passar as propostas de novos direitos por um crivo de seus caracteres — um “controle de qualidade” — antes de reconhecê-los. Com efeito, a proliferação de direitos comuns travestidos formalmente de universais, desvaloriza os verdadeiros direitos do Homem.

Sem dúvida, mais importante nesta conjuntura histórica é a efetivação dos direitos fundamentais do que sua multiplicação. Tal efetivação, todavia, não depende exclusivamente de instrumentos jurídicos, internos ou internacionais, ainda que sejam estes indispensáveis, reclama, além disto, um trabalho de formação moral, a fim de arraigá-los na cultura de cada povo.


[1] Norberto Bobbio, “Presente e futuro dos direitos do Homem”, em A era dos direitos, trad. port., Campus, Rio de Janeiro, 1992, p. 26.

[2]Quelques arguments contre le droit naturel”, em Le droit naturel, PUF, Paris, 1959, p. 174 e s.

[3] “Sobre o fundamento dos direitos do Homem”, em A era dos direitos, cit., p. 15 e s.

[4] Aqui se repete, parcialmente e com alterações e acréscimos o texto do trabalho, O futuro do Estado e o Estado do futuro, incluído como cap. 1º, no livro Aspectos do direito constitucional contemporâneo (Saraiva, São Paulo, 2ª Ed., 2008).

[5] Manual de direito constitucional, Tomo IV – Direitos Fundamentais, Coimbra Ed., Coimbra, 4ª Ed., 2008., p. 47 e s.

[6] Apud Sami A. Aldeeb Abu-Salieh, "La définition internationale des droits de l´Homme et l´Islam", Revue Générale de Droit International Public, tomo 89, 1985/3, p. 625 e s. O texto citado está na p. 627.

[7] Art. cit., p. 706.

[8] A Trivialização dos Direitos Humanos Fundamentais, em Novos Estudos, CEBRAP, outubro de 1990, p. 99 e s.

[9] Robert Alexy, “Direitos fundamentais no Estado constitucional Democrático”, em Revista de Direito Administrativo, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 217:55-66, jul./set. 1999, p. 58 e s.

[10] Art. cit., p. 59.

[11] Id., p. 60.

[12] Id., ibid.

[13] Id., ibid., p. 61.

[14] A este respeito, ele exemplifica com a inexistência de “um direito do homem ao amor, porque amor não se deixa forçar pelo direito”.

[15] Id., ibid., p. 61.

[16] Id., ibid., p. 61.

[17] V. sobre o assunto meu Direitos humanos fundamentais, Saraiva, São Paulo, 10ª ed., 2008, p. 67 e s.

[18]Conjuring up new human rights. A proposal for quality control”, American Journal of International Law, 1984, v. 78, p. 607 e s.

[19] Id., ibid., p. 615.

[20] Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, cit., p. 9.

[21] Edward S. Corwin, A Constituição norte-americana e seu significado atual, Zahar, Rio de Janeiro,s/ data, p. 283.


[22] Bernard Schwartz, A history of the Supreme Court, Oxford Univ. Press, Nova Iorque, 1993, p. 357.

[23] Id., ibid.

[24] Sua posição é citada por Schwartz (ob. cit., p. 358): “the right (of privacy) is a species of ‘liberty’ (although, as I mentioned yesterday, I think the Ninth Amendment … should be brought into this problem at greater length), but I would identify three groups of fundamental freedoms that ‘liberty’ encompasses: first, freedom from bodily restraint or inspection, freedom to do with one’s body as one likes, and freedom to care for one’s health and person; second, freedom of choice in the basic decisions of life, such as marriage, divorce, procreation, contraception and education and upbringing of children; and (third), autonomous control over the development and expression of one’s intellect and personality”.

[25] É a posição do Justice Scalia. Cf. Schwartz, ob. cit., p. 357.

[26]The truth is that the judge who looks outside the historic Constitution always looks inside himself and nowhere else”. Registre-se que Bork chegou a ser indicado para a Suprema Corte, mas teve o nome rejeitado pelo Senado, em razão de seu extremado conservatismo.

[27] João Barbalho, Constituição Federal Brasileira, Briguiet, Rio de Janeiro, 2ª ed.,1924, p. 469.

[28] J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 2ª ed., 1998, p. 370.

[29] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Ed., Coimbra, 1º vol. 2005, p. 138. Jorge Miranda voltou ao assunto no trabalho A abertura constitucional a novos direitos fundamentais, sem, todavia, aprofundar o tema de sua identificação (Art. Incluído nos Estudos em homenagem ao Professor Doutor Manuel Gomes da Silva, Coimbra Ed., Coimbra, 2001, p. 559 e s.).

[30] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Ed., Coimbra, 3ª Ed., 1993, p. 137.

[31] Canotilho, Direito constitucional…, ob. cit., p. 369.

[32] Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra, Coimbra Ed., 4ª Ed., 2008, p. 11/12.

[33] Teoria de los derechos fundamentales, Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2ª reimpressão, 2001, p. 125, citando Konrad Hesse, Grundzüge der Verfassungsrechts.

[34] Esta posição já está no meu Do processo legislativo (Saraiva, São Paulo, 6ª ed., 2007) p. 293.

[35] “As limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege”. Min. Sepúlveda Pertence. ADIn 2.024-2/DF, medida liminar.

Autores

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    é advogado, professor titular aposentado de Direito Constitucional e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; é Doutor em Direito pela Universidade de Paris e Doutor Honoris Causa da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence e é presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas - Instituto Pimenta Bueno, além de ex-vice-governador do estado de São Paulo

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