Regra ou exceção?

Súmula que restringe algemas põe policial em risco

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23 de abril de 2009, 7h59

Pode a polícia, sob as regras da Constituição, fazer uso de algemas quando prende alguém em flagrante delito ou em cumprimento de uma ordem judicial de prisão? O Supremo Tribunal Federal entende, como regra, que não. Fundamenta-se, basicamente, no direito constitucional à privacidade (ou intimidade), que proíbe a violação da dignidade e da imagem da pessoa humana, o tratamento desumano e degradante do indivíduo e o desrespeito à integridade física e moral do preso. Em nível infraconstitucional, acena com vários dispositivos penais, dentre os quais o que veda o emprego de força e os relativos ao abuso de poder e de autoridade. Este artigo, com a devida vênia, sustenta posição contrária, levando-se em consideração, também, fortes princípios constitucionais estruturantes de uma nação civilizada e democrática: o do direito à preservação da vida (aí inserida a incolumidade física do policial e de terceiros) e o da igualdade, ou da isonomia (em situações iguais todos devem ter legalmente o mesmo tratamento) e, administrativamente, os da eficiência e da responsabilidade do agente (o ato da prisão deve ser praticado pela autoridade de modo a evitar danos previsíveis e irremediáveis a si, ao preso, ou a terceiros).

Disciplinando o uso de algemas pela polícia, recentemente, em 22 de agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante 11, do seguinte teor: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

A excelsa corte, por seu plenário, invocou, como suporte de sua decisão, vários preceitos constitucionais, entre eles o que coloca a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e os que, resguardando os direitos fundamentais, proíbe o tratamento desumano e degradante do indivíduo, a violação da imagem das pessoas e o que assegura ao preso o respeito à sua integridade física e moral — conforme artigo1º, inciso III e artigo 5º, incisos III, X e XLIX da Constituição Federal.

Em nível infraconstitucional, baseou-se, entre outros dispositivos, no artigo 284, do Código de Processo Penal — Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso —; no artigo 350, do Código Penal, que cuida do crime de exercício arbitrário ou abuso de poder — Ordenar ou executar medida privativa de liberdade, sem as formalidades legais ou com abuso de poder —; e na Lei 4.898/65, que trata do abuso de autoridade — Artigo 4º. Constitui também abuso de autoridade: a) – ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder.

Nesse passo, o Supremo Tribunal, ao impor a igualdade negativa — a de que, como regra, ninguém pode ser algemado —, retrocedeu à tradição de nosso vetusto direito, sob a égide da Corte Imperial, que outorgou impositivamente, debaixo dos canhões, a Constituição de 1824 — oferecida e jurada por Sua Majestade —, colocando nas mãos deste, ao lado do Poder Executivo, o Poder Moderador, fonte de privilégios espúrios para os homens ricos do país — o imperador nomeava os senadores para o exercício vitalício do cargo, e nomeava e destituía os juízes de direito — e para o clero, cujos bispos eram também por ele nomeados, sendo que todos os membros da Igreja — o catolicismo era a religião oficial do Estado — recebiam remuneração estatal (padroado), como se fossem funcionários públicos (CF-1824, artigos 101 e 102).

Dentro desse contexto, não é de admirar o acolhimento, na época, pelo menos na lei formal, das denúncias do marquês de Beccaria — o criminalista italiano Cesare Bonesana (1738-1794) —, quanto aos cruéis tratamentos dispensados aos criminosos nos presídios, impondo-se sanção ao funcionário que conduzisse o preso “com ferros, algemas ou cordas”, salvo o caso extremo de segurança, justificado pelo condutor — artigo 28, do Decreto 4.824, de 22 de novembro de 1871, que regulamentou a Lei 2.033, de 20 de setembro do mesmo ano [1]. Já imaginou um barão, um conde, um duque ou um padre sendo algemado? Seria loucura. Além do mais, naquele tempo em que a existência da desigualdade era fato aceito passivamente, a criminalidade e a violência eram mínimas: era normal deixar as portas das casas abertas durante o dia.


O Supremo Tribunal Federal resolveu editar a súmula vinculante em face do vácuo legislativo, isto é, da ausência de norma específica na Constituição de 1988 e de legislação própria sobre o uso de algemas, eis que o comando, expresso no artigo 199, da Lei de Execução Penal — a Lei 7.210/84 — o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal — não foi, até o momento, cumprido pelo Poder Executivo.

Todavia, a meu ver, com todo o respeito, a Excelsa Corte de Justiça não foi feliz nessa sua surpreendente e inovadora iniciativa de normatização, generérica e apriorística, da conduta policial.

Digo surpreendente porque até então, durante toda a vigência do Código de Processo Penal em vigor, que é de 1941, o uso de algemas sempre foi considerado ato discricionário do policial que efetuava a prisão. A discrição, na verdade, era de fato duvidosa. Primeiro, porque o agente geralmente não tinha algema para ser empregada. Seu uso com mais intensidade só está acontecendo nos dias atuais. Depois, porque a algema, como regra, só era aplicada na prisão de pessoa pobre, considerada a priori como elemento perigoso e violento, e raramente — se é que houve algum caso — em gente rica e poderosa, sempre tida como gente de bem, o que sempre causava repulsa e protesto da elite dominante, inclusive pelos veículos de comunicação de sua propriedade, quando alguém de seu meio era tocado pela polícia ou condenado pelo Poder Judiciário.

Coincidência ou não, a Súmula Vinculante 11, de agosto de 2008, foi editada logo após a prisão de um banqueiro e de um ex-prefeito da capital paulista, em que ambos foram algemados. Foram ignorados os surdos clamores de uma sociedade saturada de injustiças no sentido de ser implementado já, de modo sério, para valer para todos, indistintamente, o princípio constitucional da igualdade. Ao contrário, optou-se, nos moldes dos tempos imperiais, por uma igualdade negativa, de difícil senão impossível realização que, por isso mesmo, continua privilegiando os poderosos.

Portanto, até o advento dessa súmula vinculante, a utilização da algema, no ato da prisão, constituía ato discricionário do agente encarregado da missão. Agora, a súmula proibiu o seu emprego, exceto nos restritos casos a que se refere. Logo, presentemente, a vedação da prática do ato de prevenção e contenção constitui a regra. E a excepcionalidade da medida ficou vinculada aos parâmetros autorizados pela citada súmula. Em resumo, a discricionariedade foi extinta de vez, restando o ato vinculado apenas a casos restritíssimos, em que o policial está autorizado a algemar o preso, desde que justifique, por escrito, as razões da tomada da medida extrema.

Entendo, porém, ao contrário, que — numa interpretação realística, que venha ao encontro das sentidas necessidades atuais de igualdade e de segurança da população — perante nossa Constituição Federal, a utilização da algema, quando da prisão em flagrante delito ou por ordem judicial, deve constituir a normalidade, figurando como exceção a sua não utilização. A meu ver, há valores maiores em jogo do que os suscitados pelo Supremo Tribunal Federal. O direito à vida e à segurança e proteção à integridade física do agente e de terceiro são garantidos pela Constituição Federal. O emprego da algema visa, fundamentalmente, preservar esses valores.

Mesmo no caso de comparecimento do preso a juízo — e todas as vezes que o detento estiver fora da cela, em ambiente público — também deve ser algemado. Durante a audiência, o magistrado, se achar conveniente, pode mandar liberá-lo, ouvindo-se, antes, o agente policial sobre a periculosidade do réu.

Acredito que o uso de algema no ato da prisão se impõe porque vivemos tempos modernos, de ostensiva violência pública, em que os marginais, isolados ou em quadrilhas organizadas, como regra, têm demonstrado pouco respeito pela vida alheia, não se podendo esperar deles que atendam, pacífica e mansamente, à voz de prisão e se disponham, sem reação, a ser conduzidos, ordeiramente, à delegacia de polícia. Mesmo os que acatam a ordem devem ser algemados para segurança e proteção sua, do agente e de terceiros.


Assim, o emprego da algema, no ato da prisão, data venia, se torna imprescindível por várias razões, evidentes por si, a saber: a) para proteção e segurança da integridade física do policial encarregado da diligência contra possíveis e inesperados atos de agressão do preso; b) para resguardar a incolumidade física de terceiros, ante atos de rebeldia do prisioneiro; c) para evitar a fuga do preso; d) para evitar a destruição de provas; e, finalmente, e) para proteção do próprio preso, que pode, inclusive, em desespero, atentar contra sua própria vida (suicídio).

Aliás, se o preso não for algemado e acontecer danos a terceiros, o policial responderá civil e criminalmente por negligência e o Estado por danos materiais.

Por isso mesmo, não se compreende porque, em se tratando a prisão de um ato tão perigoso, o uso de algema seja negativamente disciplinado, a priori, por quem não corre qualquer risco de vida ou de ferimento. Ocorre-me a figura do almirante que, em terra firme, quer dispor, por meio de regulamento, sobre a conveniência de o capitão de um navio — que se encontra em alto mar, em vias de naufragar, ao enfrentar uma violenta borrasca — atirar a carga ao mar ou arriar as velas.

Não se está dizendo que os eventuais excessos no uso da algema (por exemplo, a duração por tempo maior do que o necessário ou depois que o detido já estiver dentro da cela) não possam ser declarados inconstitucionais, mas isso numa análise do caso concreto, posteriormente à ocorrência do fato. Quanto à exposição do preso pela mídia, a televisão, a meu ver, pode mostrar o ato da prisão e a condução do preso algemado, desde que as tomadas sejam feitas na via pública, sendo proibidas dentro do distrito policial. Inconstitucional, também, se me afigura a permissão de entrevista do preso no recinto da delegacia, mormente sem a presença do advogado de defesa.

É obvio que o emprego da algema constitui uma intrusão menor na privacidade do indivíduo do que o próprio ato da prisão. Este, sim, atenta contra sua liberdade, sua dignidade, sua integridade moral e sua imagem pública. Decorre daí que, se o ato da prisão for legal, seja em flagrante delito ou por ordem judicial, o uso da algema é constitucionalmente permitido, eis que, além de se tratar do uso moderado de força contra o preso, autorizada por lei, visando proteger interesses maiores, como o direito à vida e à integridade física do agente policial e de terceiros, causa muitíssimo menos constrangimento do que a própria prisão.

O interesse do Estado — agindo publicae utilitatis causa — de evitar risco de vida, ou de danos pessoais, de seus agentes policiais ou de terceiros — que autoriza o uso de algema — sobrepuja, de muito, o individual (jus libertatis), e mais ainda relativamente à pretensa ofensa — pelo só fato do emprego da algema — à dignidade e imagem daquele que é preso.

Há de se reconhecer que, inerente ao ato da prisão, encontra-se a autorização legal do emprego de força coercitiva necessária à sua realização — quem pode refutar isso? — por parte do agente que o executa. Logo, o ato de algemar se insere, naturalmente, como meio moderado e imprescindível à implementação da medida, para que ela ocorra, eficazmente, sem risco de vida ou de ferimentos para o policial, para terceiros e para o próprio preso.

Evidentemente, o risco de vida que corre o policial que executa a diligência merece maior proteção constitucional do que uma pretensa agressão, reflexa e indireta, ao direito de privacidade (ou intimidade) do preso pelo uso da algema, quando, na realidade, o constrangimento que sofre decorre, precisamente, do ato ostensivo da prisão, em princípio legal e legítima. É o preço que o indivíduo paga para o resguardo, a proteção e o bem da sociedade. Como é a prisão que causa o constrangimento, se esta for, no futuro, tida como ilegal, o indivíduo tem direito a receber do Estado a indenização pelos danos morais que sofreu em decorrência dela. Mas não pelo fato, por si só, da utilização da algema. Todavia, se a prisão for legal, não haverá constrangimento pessoal juridicamente protegido, eis que ela decorrerá não da prisão, mas do delito praticado, do qual há fortes indícios de que o detido foi o seu autor.


Portanto, a meu ver, o uso da algemas (atividade meio), longe de ser uma agressão contra a dignidade do indivíduo, ou degradar a sua imagem — eis que ele vai legalmente, a final, ser aprisionado, isto é, ficar trancafiado atrás das grades (objeto-fim) — constitui um dever para o agente policial, que deve empregar, indistintamente, o instrumento de prevenção e de contenção em todas as pessoas, sempre que ocorrer a prisão, a fim de se dar cumprimento ao princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza conforme artigo 5º, caput, da Constituição Federal.

Nos Estados Unidos, a U. S. Supreme Court, ao julgar o caso Muehler v. Mena (2005)[2] considerou constitucional o uso de algemas numa simples busca e apreensão domiciliar determinada pela Justiça, sem especificação dos nomes dos eventuais ocupantes de uma casa, que foi indicada com precisão apenas pelo endereço.

Iris Mena foi algemada numa garagem por duas a três horas, durante o curso da diligência, enquanto dois policiais, autorizados por um search warrant judicial, faziam a busca de armas letais e procuravam por evidências de formação de quadrilha (gang membership) na residência ocupada por ela e mais quatro elementos, todos não identificados previamente.

Falando por uma Corte unânime — os julgamentos, lá, são sempre feitos pelo plenário, de modo a tornar única e indiscutível, sem divergências de turmas, a decisão do tribunal e anunciadas como “Acórdãos da Corte”, ou seja, a posição final da Corte, e não como voto de determinado ministro, fato que valoriza muito, politicamente, o Poder Judiciário —, o Chief Justice Rehnquist enfatizou que “A jurisprudência firmada sob a Quarta Emenda[3]a que autoriza a busca domiciliar ou pessoal, semelhante à prevista nos artigos 242 a 250 do Código de Processo Penal brasileiro, também condicionada à existência de fundadas razões que a autorizem —, há muito reconhece que o direito de se fazer uma prisão ou uma parada investigatória carrega consigo o direito do uso de algum grau de coerção física ou a ameaça de efetivá-la.” (Fourth Amendment jurisprudence has long recognized that the right to make an arrest or investigatory stop necessarily carries with it the right to use some degree of physical coercion or threat thereof to effect it) e que “não obstante o risco de perigo inerente à execução de um mandado de busca por arma, ter sido suficiente para justificar o uso de algemas, a necessidade de deter múltiplos ocupantes tornaram o uso de algemas muito mais razoável.” (Though this safety risk inherent in executing a search warrant for weapons was sufficient to justify the use of handcuffs, the need to detain multiple occupants made the use of handcuffs all the more reasonable.)

Salientou, ainda, em sua Opinion, que “o uso de força pelos policiais, em forma de algemas, para efetuar a detenção de Mena na garagem, como a detenção de outros três ocupantes da casa, foi razoável porque os interesses governamentais superam a intrusão marginal (no direito de privacidade do preso)” (The officers’ use of force in the form of handcuffs to effectuate Mena’s detention in the garage, as well as the detention of the three other occupants, was reasonable because the governmental interests outweigh the marginal intrusion.) Finalmente, esclareceu que “os interesses governamentais não só de deter pessoas, mas o de usar algemas, alcançam o seu zênite quando, como aqui, um mandado judicial autoriza a busca de armas e quando um procurado membro da quadrilha reside no local. Nessa situação inerentemente perigosa, o uso de algemas minimiza o risco de danos tanto para os agentes como para os ocupantes.” (The governmental interests in not only detaining, but using handcuffs, are at their maximum when, as here, a warrant authorizes a search for weapons and a wanted gang member resides on the premises. In such inherently dangerous situations, the use of handcuffs minimizes the risk of harm to both officers and occupants.)

O leitor menos avisado poderia alegar que o Direito Constitucional americano nada tem a ver com o brasileiro e que, lá, eles seguem a common law, como costumeiramente se ouve falar. Esse argumento é totalmente inconsistente, porque a Constituição americana de 1787, além de ser escrita, é a mais rígida de que já se ouviu falar: está em vigor há mais de 220 anos e sofreu apenas 27 emendas. Lá, para uma emenda entrar em vigor não basta o congresso simplesmente editá-la. É preciso, em respeito ao princípio federalista (a Constituição é resultado do pacto indissolúvel celebrado entre a União e os diversos Estados-Membros, não podendo, assim, ser alterada unilateralmente por uma das partes) que três quartos das assembleias estaduais a ratifiquem. Com a Constituição, as leis escritas (statutes) do país devem guardar fina sintonia, sob pena de inconstitucionalidade, ou seja, de serem declaradas nulas, de valor nenhum. A common law constitui uma exceção, sendo utilizada, principalmente, nas ações de indenização por danos (tort actions).


Depois, porque a Constituição brasileira, desde a primeira republicana de 1891, é, em sua estrutura de divisão de poderes e de proteção aos direitos civis, uma cópia da americana. Foi uma sábia opção feita por Rui Barbosa que, abandonando o modelo francês, em que o Judiciário não é poder político (o juiz é escravo da lei) , e o inglês, em que o Judiciário não é independente, pois está subordinado ao Parlamento (a Câmara dos Lords é sua última instância), resolveu libertar o fraco Judiciário brasileiro, que vinha despojado de autonomia — eis que ao tempo do Império, o juiz era nomeado e demitido pelo imperador, ao seu livre alvedrio — e dotá-lo, como ramo governamental não eleito, do poder político de anular leis feitas pelos poderes eleitos (Congresso Nacional e Executivo).

Costumam dizer, contrariamente ao uso de algema, que nos países civilizados, a exemplo da Inglaterra — como se os Estados Unidos não o fossem — tal não acontece. Esse argumento não merece, data venia, consideração.

Observe-se que a Augusta Corte brasileira extraiu a vedação do uso de algemas de um contexto envolvendo diversos preceitos constitucionais, ignorando o costume, já quase centenário, do uso do poder discricionário da polícia na matéria. Logo, não é pertinente a comparação da medida com o costume de outra Nação. Na Inglaterra é costume o policial não portar arma de fogo, diversamente do nosso costume e das leis brasileiras.

Por outro lado, se se pretende dar execução real, de forma positiva, ao princípio da igualdade — um dos sustentáculos de nossa Constituição — a Inglaterra também não serve de base, eis que, lá, o princípio da igualdade não é aplicado em sua plenitude, havendo evidentes atenuações. Tratando-se de uma monarquia, nela há, presentemente, rei, rainha, príncipes, duques e lords. Eles desfrutam, em razão do costume, de diversos privilégios. Por exemplo, só pode ser membro da Câmara dos Lords quem for de estirpe nobre, em razão do nascimento. Assim, lá, afora a educação e a cultura do povo, não existe interesse, nos tempos modernos, em algemar, igualmente, todas as pessoas que forem presas cometendo delitos. Essa situação lembra a mesma existente aqui no Brasil no tempo do Império.

Atento à diferença de costumes, a comparação, para ser válida, há de ser feita com base em fundamentos constitucionais. É de nossa Constituição, que expressa, normativamente, nossa cultura, costumes e tradições, que o STF extraiu reflexamente, de uma zona de penumbra, a proibição do uso de algemas, já que não há dispositivo claramente dispondo nesse sentido. Fora do âmbito da Constituição, os costumes e tradições de outros povos servem, apenas, para efeito de outras comparações, como a sociológica por exemplo.

Diferentemente do Brasil, onde a lei rege, aprioristicamente, a conduta das pessoas — ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, conforme artigo 5º, inciso II, da CF —, é de se ver que os anglo-saxões não dispõem de Constituição escrita, regendo-se por alguns éditos com força constitucional — a Magna Carta, de 1215, The Petition of Rights, de 1628, o Habeas-Corpus Act, de 1679, o Bill of Rights de 1689 etc. Lá no Reino Unido, sim, predomina o direito consuetudinário (common law) pelo qual o costume é que gera o direito, o qual é declarado, caso a caso, inicialmente pelo Judiciário, formando o precedente (stare decise). A lei, se vier (não há necessidade de vir) acatará obrigatoriamente o precedente, podendo ampliar direitos.

Penso, pois, que a comparação constitucional mais própria, adequada e pertinente é a que é feita entre a Constituição brasileira e a americana que é, e continua sendo, o seu mais forte, evidente e exponencial paradigma.

De todo modo, o objetivo dessas considerações, ao analisar a matéria, não é o de exaltar o direito alienígena. Procurou-se resolver a questão, efetivamente, com base na coerente e perfeita interpretação dos princípios constitucionais inseridos em nossa Carta Política, tendo-se em mente a nossa atual realidade — repleta de crimes, violências e corrupções — e as legítimas aspirações do povo brasileiro de se alcançar, de imediato, a igualdade de fato e de direito.


Por isso que, agora, resta saber como tornar sem efeito essa súmula vinculante do Supremo Tribunal, vez que ela sintetiza a interpretação constitucional da matéria feita pela Excelsa Corte e, que, por isso mesmo, não pode, nem deve, no momento, ser descumprida. O respeito à Instituição é mais importante do que opiniões pessoais. Afinal, queremos viver num governo de leis e não de homens.

Assim, vê-se que o governo não pode mais, a título de regulamentar o artigo 199 da Lei de Execuções Penais, dispor por decreto, de forma diferente. Tampouco, ao Congresso Nacional é permitido alterá-la diversamente por meio de lei. Ambos terão que se ater, compulsoriamente, às diretrizes traçadas pela Súmula Vinculante 11. A situação presente, em termos legislativos, é bem pior do que a anterior, antes da edição da referida súmula.

Entendo haver, portanto, só duas soluções para tornar essa súmula sem efeito, se esse for o objetivo dos que discordam de sua aplicação: l. o Congresso Nacional deve fazer uma emenda constitucional pela qual superará o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal. Para esse fim, ele está constitucionalmente autorizado. Em virtude de nossa forma republicana de governo, o Poder Legislativo é, também, ao lado dos outros dois ramos governamentais — todos harmônicos e independentes entre si —, legítimo intérprete do texto constitucional; 2. os doutrinadores devem emitir comentários contra o teor da súmula, de modo a sensibilizar o Supremo Tribunal Federal a revogá-la.

Referências

1. Abraham, Henry J. and Perry, Barbara A. Freedom & The Court. 6.ed.New York: Oxford University Press, 1994.

2. Garvey, John H. and Aleinikoff, T. Alexander. Modern Constitutional Theory: A Reader. St.Paul, Minn.: West Publishing Co., 1991.

3. Silveira, Paulo Fernando. Devido Processo Legal. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey,2001.

4. The Fourth Amendment to the United States Constitution of 1787.

5. Tribe, Laurence H. American Constitutional Law. 2.ed.Mineola,New York: The Foundation Press, Inc., 1988.

6. Mirabete, Julio Fabbrini. Execução Penal. 5.ed.São Paulo: Atlas, 1993.

7. Rehnquist, William H. U.S. Supreme Court: Muehler v. Mena 544 U.S. (2005).


[1]

Mirabete, Julio Fabbrini.

Execução Penal.

5.ed.São Paulo: Atlas, 1993, pg.462.

[2] Muehler v. Mena 544 U.S. (2005).

[3] The Fourth Amendment to the United States Constitution provides: "The right of the people to be secure in their persons, houses, papers, and effects, against unreasonable searches and seizures, shall not be violated, and no Warrants shall issue, but upon probable cause, supported by Oath or affirmation, and particularly describing the place to be searched, and the persons or things to be seized."

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