Diplomacia das aparências

Conivência brasileira reteve garoto americano

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15 de abril de 2009, 7h44

Há uma vontade política no Brasil que conspira contra os termos da Convenção de Haia. O ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, ao prestar esclarecimentos no Senado federal sobre o caso de um menor norte-americano aqui retido ilicitamente, não deixou margem a qualquer outra interpretação. Eis que, após longos quatro anos — sua obrigação era fazer devolver a criança em apenas seis semanas da informação do fato à Autoridade Central, se dentro de até um ano de sua ocorrência —, vem apregoar, a esta altura dos acontecimentos, que aspira a uma solução "amistosa" entre as partes e que os argumentos de ambas são "consistentes”, atribuindo-se a si mesmo, paradoxalmente, ou às demais autoridades brasileiras, uma competência jurídica que não lhes cabe e que é reservada, pela Convenção de Haia e pela Constituição Federal, à Justiça do local da residência habitual do menor — o Estado requisitante.

Com efeito, os direitos de fundo sobre a guarda e visitação da criança sob disputa deverão ser tratados no foro do lugar em que a criança tinha sua residência habitual imediatamente antes de sua transferência ou retenção indevidas, salvo se já tiver completado a idade de 16 anos.

Quem leu com isenção o texto do Decreto 3.413, de 14/04/2000 — que promulga no Brasil o teor da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, concluída em Haia em 1980 e da qual o país é signatário —, só pode estar perplexo.

Parece melhor que a campanha pública em voga acresça mais tempero a essa causa, porque os sinais não são definitivamente positivos. Sugerir, outrossim, ao governo do presidente Barack Obama, por exemplo, que impetre um Habeas Corpus liberatório junto ao Supremo Tribunal Federal, contra ato omissivo do presidente da República Federativa do Brasil e do ministro de Estado que representa a Autoridade Central para fins de execução da norma convencional internamente — e que já deveriam ter expatriado a criança —, pode funcionar, em última análise.

Outrossim, irreleva que o menor seja ou não duplo-nacional, pois o cerne da norma convencional reside no fato da residência habitual que detinha ao tempo da transferência ou da retenção ilícitas.

Parece claro que meras tratativas diplomáticas não vão funcionar aqui. O Brasil lida muitíssimo bem com os jogos de cena e a ribalta é o que mais conta, afinal.

Na prática, a razão tupiniquim cede espaço ao passionalismo de ocasião, enquanto os protocolos são descerimoniosamente quebrados em função de puros “achismos” sublevados da desinformação, que é uma de nossas mais proeminentes barreiras atitudinais. Sempre foi assim abaixo do equador e não seria diferente agora.

Quando faltam ao interlocutor os mínimos fundamentos lógicos para um proposto debate, simplesmente não pode haver debate, mas monólogo. E monólogo é o que há de mais antinômico em matéria de relações internacionais. O discurso assume seu viés autoritário e a atmosfera dialógica se dissipa. Quando premissas materiais são subvertidas ou criadas arbitrariamente, pode-se afirmar que não há compromisso com a verdade dos fatos nem com a ordem natural das coisas, mas com algum tipo de conveniência ideológica nem sempre identificável.

Cumpre observar que o termo “sequestro”, como tal empregado na norma convencional, tem um sentido largo e isto está bem explicado pelo Grupo de Trabalho, composto de proeminentes juízes federais de ligação, procuradores e outros servidores, que funciona junto à presidência do Supremo Tribunal Federal, justamente para auxiliar no desate desses impressionantes nós hermenêuticos — clique aqui para acessar.

A propósito, o ministro Vannuchi desvela uma preocupação latente que se vinha divisando desde antes: o governo brasileiro não está muito interessado em devolver o menor, em apreço ao seu local de origem nos Estados Unidos da América. Em situações semelhantes, há outras crianças sendo igualmente reivindicadas por Estados estrangeiros atualmente. Por que? Não se pode saber, e seria mesmo leviano especular em torno desse conteúdo. Mas a atitude omissiva do Estado brasileiro quanto a essa responsabilidade — aliás, muito delicada, e, agora, eufêmica —, deixa-o numa posição bastante desconfortável. Quanto ao ministro da referência, tem-se que a Sua Excelência é confiada a melhor parte da guarda da Convenção de Haia em nosso país, razão pela qual lhe é dirigido o comando de que deverá tomar, quer diretamente, quer através de um intermediário, todas as medidas apropriadas que assegurem o retorno imediato da criança objeto de sequestro ou retenção internacional ilícita (Artigo 7º).

Além disso, a Convenção de Haia equipara as atitudes de "sequestrar" e "reter" ilicitamente criança em país diverso daquele em que reside habitualmente.

Juridicamente, portanto, as duas expressões guardam o mesmo peso e as mesmas consequências legais: retorno imediato da criança que ainda não atingira a idade de 16 anos e foi reclamada oficialmente a uma Autoridade Central do Estado requisitado (o mesmo ministro, a propósito) em até um ano do "sequestro" ou da "retenção" indevida.

Deixar que se passem anos quando o dever era devolvê-la em apenas seis semanas é por si mesmo uma atitude temerária do Estado requisitado.

“Cativeiro", outrossim, em termos técnicos, é todo o lugar, bom ou mau — é irrelevante o qualificativo de complemento — no qual a pessoa se encontre contra a sua vontade, mas pela ação de um agente opressor. Ora, um menor decide apenas através da vontade de seus representantes legais, salvo se já contar 16 anos de idade (caso da Convenção de Haia). Portanto, ainda que edulcorado dos mais finos confortos e ambientes lúdicos, condizentes com o espaço a ser ocupado por um infante, um “cativeiro” é sempre um cativeiro quando lá alguém se encontre sem que o espaço represente sua opção legítima de estar, ir e vir.

É por isso que se entende como razoável a impetração de um Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal em favor desse e de outros meninos e meninas que se encontram em situação irregular no Brasil, à luz da Convenção de Haia.

Sobre isso, qualquer pessoa do povo ou instituição poderá fazê-lo, independente da assistência de advogado — que não é processualmente exigível —, que é uma ação constitucional por visar a proteção da liberdade individual. E por que no Supremo? Porque a autoridade coatora, objeto da impetração, no caso, é o próprio presidente da República e o ministro de Estado dos Direitos Humanos, cuja omissão, em termos, bastante significativa, tem permitido a perpetuação dessa situação deveras insuportável do ponto de vista das relações internacionais e também e principalmente das relações humanas propriamente ditas.

A Academia não deve aspirar senão a produção de ideias e este é o sentido deste artigo. No entanto, se a proposta de uma Ação de Habeas Corpus acabar materializada, o ministro Vannuchi e o presidente da República vão ter de se entender com o Supremo Tribunal Federal sobre essa parêmia de "achar feio o que não é espelho".

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