Questão controversa

Juros simples e juros compostos quanto ao regime de capitalização

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11 de abril de 2009, 17h35

O poeta romano Pietro Metastasio, atento aos ciclos temporais e prazos que subordinam a condição humana, no Ato II da ópera Demofontes proclamou que “il tempo è infedele a chi ne abusa”. Todo contrato, o de mútuo bancário incluído, tem um prazo de vigência, seja ele determinado ou não. Trata-se do interregno em que a avença irradia efeitos entre as partes que, pela pactuação, assumiram obrigações e adquiriram direitos recíprocos. Em outras palavras, trata-se do tempo que medeia entre a contratação e a regular extinção do liame obrigacional estabelecido.

Palmilhando as lições de Wilson Cançado e Orlei Claro, o conceito de período não se confunde com o de período de vigência. Aliás, a rigor, o período decorre da fragmentação do prazo de vigência em compartimentos idênticos, ou seja, da periodicização do prazo de vigência.

A distinção entre os conceitos de ‘prazo’ e de ‘período’ é indispensável nos mútuos financeiros, porque usualmente estes são celebrados por prazo determinado, sendo que o ‘decurso do período’ é o que gera o direito a juros em favor do mutuante, na proporção especificada pela taxa de juros. Assim, o conceito de juros também se associa ao de período, permitindo-nos agregar a ele o da periodicidade de sua incidência.

Nos contratos de mútuo bancário, os juros, tomados na sua acepção de frutos do dinheiro emprestado, podem ser colhidos periodicamente, em frações de tempo iguais que compõem o prazo de vigência integral da avença.

Neste sentido, vale ressaltar que a diferenciação que se estabelece entre juros simples e juros compostos refere-se à forma de sua contabilização. Nas avenças em que os juros fluem periodicamente, finda cada fase de frutificação tem-se juros remuneratórios. Encerrado cada ciclo, abrem-se duas possibilidades: ou o mutuário paga os juros vencidos, ou o valor relativo aos juros vencidos que se referem ao período de frutificação encerrado é capitalizado, ou seja, incorporado no principal – quantia tomada originalmente – surgindo daí o conceito de montante, resultado da soma do principal aos juros vencidos. São dessas duas possibilidades que se extraem os conceitos de juros simples e juros compostos (vide NEWNAN, Donald. Compound Interest Tables. Oxford University Press, 1997).

No primeiro caso, como a cada período de frutificação o mutuante percebe os frutos colhidos, temos que a contabilização dos juros relativa ao período subsequente há de se dar mediante utilização da forma denominada “juros simples” ou “lineares”. Imaginemos, v.g., o caso do mutuário que tomou R$100 com a promessa de restituir o valor um ano após a contratação, tendo ficado acordado que fluirão juros contabilizados periodicamente, a cada mês, a uma taxa de 10%. Passado um mês da contratação, o mutuário entrega ao mutuante os R$10 relativos aos juros vencidos. Obviamente, no segundo mês da celebração da avença, e assim sucessivamente, a taxa de 10% incidirá novamente, e tão somente, sobre o principal, ou seja, sobre os R$ 100 tomados.

Na segunda hipótese aventada, como a cada ciclo de frutificação, embora, do ponto de vista jurídico, o mutuante seja credor dos juros periódicos vencidos, ele não adquire, em termos práticos, a disponibilidade do fruto colhido, que remanesce em mãos do mutuário, a forma de contabilização a ser adotada é a dos “juros compostos”, também chamada de “juros sobre juros” ou de “juros exponenciais”, cuja prática foi denominada “anatocismo”, expressão sinonímia de cobrança de juros produzidos pelos próprios juros. Lançando mão de exemplo similar ao elucidado para a outra hipótese, suponhamos que o mutuário que tomou R$100, dos quais fluem juros contabilizados periodicamente a uma taxa de 10% ao mês, não entregou ao mutuário, findo o primeiro mês de vigência da avença — ou seja, terminado o primeiro ciclo de frutificação — o numerário (R$10) equivalente aos juros vencidos, pois assim ficara avençado entre as partes quando da celebração do contrato.


Ora, à evidência, os juros vencidos deverão ser incorporados ao principal emprestado — capitalizados — e, após o término do segundo mês de vigência da avença, os juros contratados incidirão sobre o montante apurado, consubstanciado no principal acrescido dos juros vencidos. Em verdade, nada mais lógico, afinal, a cada ciclo de frutificação que termina, o mutuante deve ser remunerado pela disponibilidade da totalidade do capital próprio que se encontra, por força de contrato, em mãos do mutuário. Assim sendo, findo o segundo período de frutificação, após o decurso do segundo mês da contratação, a taxa pactuada (10%) deverá incidir sobre o montante (R$110) que, embora seja de propriedade do mutuante, permanece à disposição do mutuário.

A rigor, todavia, vale ressaltar que, muito embora a cobrança de juros compostos seja, amiúde, tratada como sinonímia da cobrança de juros sobre juros e da prática de anatocismo, essa equiparação vocabular constitui impropriedade terminológica. A capitalização de juros verificada na aplicação do conceito de juros compostos pressupõe a existência de juros vencidos, ou seja, no marco final do período de geração dos juros periódicos convencionados, quando os juros pactuados efetivamente converteram-se em capital. A cobrança de juros sobre juros, prática conhecida como anatocismo (double interest), tem pressuposto e substrato fático distintos, tendo-se em vista que permite a incidência da taxa contratada sobre juros ainda não vencidos.

Não olvidemos que, quer do ponto de vista tributário, quer sob o prisma contábil, a capitalização dos juros é medida absolutamente legítima e justificável. Afinal, o Regulamento do Imposto de Renda estabelece, de forma inequívoca, que juros ganhos ou incorridos pelo contribuinte da exação são apropriáveis como receita ou dedutíveis como receita operacional, dependendo tratar-se do ponto de contribuinte mutuante ou de contribuinte mutuário. Ademais, do regime da competência, que rege as demonstrações contábeis das instituições financeiras, decorre o imperativo de contar-se os juros como percebidos antes mesmo do efetivo pagamento pelo mutuário.

Superada a imagem deturpada que se criou da capitalização dos juros em si, questão de monta que envolve a prática de juros compostos é a da periodicidade da sua capitalização, ou, noutras palavras, do prazo de gestação dos frutos do capital, cujo decurso importa na transmutação dos juros vincendos em juros vencidos, acarretando a incorporação do valor colhido ao valor emprestado.

A gênese da polêmica remonta aos idos da Era Vargas, quando entrou em vigor o Decreto 22.626, de 07 de abril de 1933, conhecido como "Lei de Usura", que na norma do seu artigo 4º. desautorizou a capitalização dos juros vencidos com periodicidade inferior à anual.

Antes da promulgação da Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964, que recebeu a alcunha de "Lei de Reforma Bancária", o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 121, de 13 de dezembro de 1963, através da qual, numa subversão ao princípio da liberdade de contratar que sempre regeu nossa sistemática, explicitou entendimento de que a capitalização de juros, ainda que estipulada de comum acordo pelas partes, estava proibida.

A instituição e ordenação do Sistema Financeiro Nacional pela "Lei de Reforma Bancária", que, como o próprio designativo prenuncia, importou na introdução na ordem jurídica pátria de um novo regramento incidente sobre as instituições integrantes da seara objeto de regulação, deu ensejo a uma revisão dos pontos de vista firmados acerca da questão atinente à legislação aplicável nas contratações de mútuo sobre as quais incidem juros compostos. Com efeito, tendo-se em vista a especificidade da matéria sobre a qual versa a Lei 4.595, não resta dúvida de que as instituições financeiras foram alijadas da submissão à disciplina da “Lei de Usura”, de tal sorte que os contratos de mútuo feneratício que tinham como parte instituição integrante do Sistema Financeiro Nacional ficaram, em verdade, sob a égide da “Lei de Reforma Bancária” e, por via reflexa, das normas editadas pelo Conselho Monetário Nacional, autoridade maior do sistema criado pelo diploma legislativo em questão que, ademais, outorgou-lhe poderes normativos para proceder à regulação do sistema (vide CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 2ª. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996).


Com o passar dos anos, a exegese acerca da órbita de irradiação de efeitos absolutamente diversa da “Lei de Usura” e da “Lei de Reforma Bancária” foi sedimentando-se, tanto em sede doutrinária como jurisprudencial, tendo como corolário a edição da Súmula nº. 596 do STF, segundo a qual: “(…) As disposições do Decreto nº. 22.626 de 1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o sistema financeiro nacional”.

Após o advento da “Lei de Reforma Bancária” e, ainda, mais recentemente, à luz do entendimento consignado na Súmula nº. 596, valendo-nos do método dialógico do filósofo russo Mikhail Bakhtin parece inequívoco que a vedação à capitalização de juros estampada na Súmula nº. 121, editada sob a égide de uma legislação muito mais restritiva – a “Lei de Usura” — aplica-se estritamente às contratações havidas entre partes não integrantes do Sistema Financeiro Nacional.

Os contratos de mútuo feneratício que tenham como parte instituição financeira, a seu turno, estão sujeitos aos ditames da Lei 4.595, e não ao regime do Decreto. 22.626, razão pela qual está autorizada a estipulação contratual acerca da capitalização periódica de juros.

A dúvida que remanesceu por algum tempo foi, não mais a da possibilidade da capitalização dos juros incidentes sobre os contratos de mútuo firmados por instituição financeira, mas, antes, a da periodicidade mínima passível de adoção para fins de capitalização dos frutos do capital. A lacuna foi suprida pela Medida Provisória nº. 1.963, objeto de inúmeras reedições, hoje em vigor sob o nº. 2.170-36, de 23 de agosto de 2001, que assim dispõe sobre a matéria em seu artigo 5º: “Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano”.

A Medida Provisória 2.170-36, não tendo sido objeto de revogação por Medida Provisória posterior ou objeto de apreciação para fins de rejeitá-la ou convertê-la em lei, segue produzindo efeitos, por força da regra do art. 2º. da Emenda Constitucional nº. 32, de 12 de setembro de 2001.

O ex-presidente do Banco Central do Brasil, Gustavo Loyola (A pior maneira de reduzir os juros. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, SP: RT, v. 3, nº. 8, p. 243-244, p. 243), ao tratar da controvérsia sobre a capitalização dos juros em artigo referente à Medida Provisória 1.963, sustentou a razoabilidade dos juros exponenciais, afirmando que há “(…) uma boa dose de cinismo nas teses anti-anatocismo. Num país em que os ativos financeiros, como regra geral, têm prazos inferiores a um ano, todos aceitam ser remunerados pelos bancos, com períodos de juros inferiores a 12 meses. Ninguém reclama porque os bancos creditam mensalmente juros nas cadernetas de poupança. Mas a história é bem diferente quando se trata das operações de crédito” (neste sentido, vide RAZ, Joseph. Practical Reason and Norms. New York: Oxford, 2002).

A jurisprudência do STJ, que não cogita pronunciar-se incidenter tantum acerca do tema (controle difuso de constitucionalidade), está consolidada favoravelmente à possibilidade de capitalização mensal dos juros, considerando hígida a Medida Provisória 2.170 enquanto não declarada inconstitucional pelo STF, uma vez que sua competência está adstrita às normas infra-constitucionais (AgRg Resp 88.787-6).

No entanto, pela profusão do verso e reverso de idéias e pelo mosaico de teses levadas ao STF, a despeito de tudo e de todos a questão ainda permanece controversa, trazendo-nos à lembrança as ordens desconexas que, na obra narrativa “O Processo” do romancista austro-húngaro Franz Kafka, enredam o intérprete numa situação ilógica que o expõe a toda espécie de confusão. Quid Iuris — Juros simples ou compostos?

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