Autonomia indígena

Decisão sobre Raposa Serra do Sol provocará divisão

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7 de abril de 2009, 11h00

A soberania nacional, tanto quanto o Estado-nação, tem seus dias contados. Basta ver a mutação sofrida pela ideia de Estado com o aprofundamento da nova onda globalizadora. É bom que seja assim. O projeto de paz perpétua formulado por Kant deve ter a nossa adesão. Cada vez mais as sociedades se unem, até mesmo simbolicamente, como no recente apagar de luzes contra o aquecimento global.Entretanto, é preciso ir com cautela.

Em meio a onda globalizadora do Direito, especialmente dos Direitos Humanos, aí incluídos o catálogo dos direitos fundamentais, a teoria multiculturalista ou cosmopolita, como preferem alguns, que tem no canadense Will Kymlicka seu maior expoente, coloca a tolerância a diversidade cultural como sua palavra-chave. Como diria o juiz federal George Marlmstein, tomando de empréstimo uma irônica expressão, a tolerância é uma espécie de Katchanga para o multiculturalismo.

Ocorre que falar em tolerância num mundo onde diferentes manifestações culturais afirmam-se não raro de forma intolerante coloca em xeque a autoridade do Estado Democrático de Direito, autoridade esta que se propõe engrandecer a dignidade humana.

Em nome desse multiculturalismo – que tem lá seus méritos, devemos reconhecer, ao menos como ferramenta crítica a estimular um avanço na igualdade meramente formal – uma série de políticas no âmbito internacional, através da celebração de tratados, que tem sido adotadas para forçar os Estados nacionais a resgatarem a dívida histórica com as minorias –algumas vezes em maioria numérica — oprimidas culturalmente.

A declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, adotada pela Resolução 61/295, de outubro de 2007, segue a linha multiculturalista.

Os povos indígenas devem ter direito ao autogoverno. Ao aderir a referida Resolução o Brasil assumiu a condição de Estado multinacional, conceituado como aquele em que “co-existem mais de uma nação devido a um processo de convivência involuntária (invasão, conquista ou cessão) ou voluntária (formação de uma federação) de diferentes povos”[1].

A demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol de forma contínua, sem assegurar o direito de acesso a terra aos não índios, concretiza a política internacional da ONU, talvez muito bem intencionada. Afastemos as teorias conspiratórias. Acredito mesmo que os iluminados que redigiram a referida Resolução estivessem nas melhores intenções.

Ocorre que classificar alguém como índio ou não índio, assim como classificar alguém como afro-descendente – esse branquelo que ora escreve é trisneto de uma negra nascida sob a lei do ventre livre – além de perigoso é uma árdua tarefa.

Na edição 252, de setembro de 2008, da Revista Ciência Hoje, encontramos um artigo do antropólogo Oscar Calavia Sáez, no qual explica que a tribo dos iaminauás, do Acre, prefere viver no universo urbano, em constante interação e aprendizado, seja com outras tribos, seja com o homem branco. A turma da Funai, inconformada com o comportamento desse grupo indígena, preferiu sustentar que eles haviam perdido a cultura. Vejam a contaminação ideológica desses pesquisadores!

Felizmente o Dr. Saéz teve a coragem de mostrar que o isolamento cultural nem sempre é perseguido pelos índios. O pólo nativo, em contraste com a sociedade global, diz ele, “pode ser mais descentrado e transformacional que o dos brancos”.

O Supremo Tribunal Federal, majoritariamente, referendou a postura multicultural na questão Raposa Serra do Sol. Mas, o ministro Marco Aurélio, apesar da fama de voto vencido – e voto vencido sagrou-se também nesse caso – apontou com clareza o equívoco histórico e filosófico do problema a ponto de desagradar o relator, Ayres Brito. Disse sua excelência o ministro Marco Aurélio que mostrava-se “imprópria a prevalência, a ferro e fogo, da óptica do resgate de dívida histórica, simplesmente histórica — e

romântica, portanto, considerado o fato de o Brasil, em algum momento, haver sido habitado exclusivamente por índios”. O relator, que é poeta – e dos bons, diga-se –, não gostou do adjetivo romântico. Ora, mas que outro nome pode ser dado a quem pretende resgatar uma tal dívida – se é que dívida há – entregando a meia dúzia de índios um território muitas vezes maior do que inúmeros países da Europa?

A verdade é que o purismo da tradição e a própria concepção do que é ser índio são coisas de branco.

O multiculturalismo – que é invenção de brancos e bandeira da Funai – é incapaz de responder a diversidade. E como afirma Sáez, a sociedade global paradoxalmente só sabe lidar com a diversidade “por meio da exceção”.

Faz parte da cultura indígena assimilar elementos de outras culturas, incluindo a dos brancos – a safadeza de branco, idem, tanto que existem índios traficando drogas.

Antes da chegada dos europeus os diversos grupos indígenas, hoje alçados à condição de povos com direito a autonomia governamental conforme a Resolução 61/295, foram submetidos a diversas mestiçagens e dominações de uns sobre outros.

O purismo do multiculturalismo conspira contra sua palavra-chave que é a tolerância. É praticamente impossível construir uma sociedade mundial pluralista e democrática sem uma base mínima de universalismo.

Se o que pretende a ideologia multiculturalista – aliada a ideologia do pensamento único – é que cada tribo fique isolada no seu mundinho, exceto na hora de receber dinheiro, medicamentos e ajuda governamental, está preparado o terreno fértil da desagregação do Estado-nação sem que se construa uma alternativa melhor, que seria a de um Estado mundial, capaz de concretizar o ideal kantiano da paz perpétua.

Muitos crimes já foram cometidos em nome do deus mortal Estado-nação, sob o tsunami emotivo do patriotismo exacerbado. A iconoclastia que se difunde contra o patriotismo, entretanto, tem na teoria dos direitos fundamentais, cuja efetividade se quer supra-nacional e globalizada, uma âncora não muito segura.

E por que insegura? Primeiro porque os direitos não nascem em árvore; segundo, porque sem instituições sólidas não é possível implantar o respeito à dignidade individual, nem o respeito a determinadas coletividades aborígenes, sobretudo quando os burocratas de plantão decidem enclausurá-las num estereótipo e agora num território também.

O propalado resgate da dívida histórica para com grupos e etnias secularmente excluídos ou explorados tem servido de fundamento para uma perigosa política: em vez da tolerância, a segregação; em vez do fortalecimento da identidade nacional, da brasilidade, o encorajamento de identidades étnicas e raciais; e, em nome de combate ao preconceito racial uma enxurrada de propagandas institucionais do tipo “onde você guarda seu preconceito?”.

A política indigenista, tanto quanto a política em relação aos negros, sempre foi no sentido da integração. Em contraposição ao multiculturalismo, um diálogo autêntico de culturas, na perspectiva interculturalista como bem explica a professora Ana D`Ávila Lopes na Revista Nomos , com maior probabilidade representa o caminho para o progresso e a paz.

Fico com o voto vencido em relação a Reserva Raposa Serra do Sol. A história dirá quem tem razão.

Em tempo: as condições impostas pelo STF, assegurando livre trânsito das Forças Armadas logo serão questionadas. A autonomia indígena há de prevalecer, disso não duvido.


 

[1] LOPES, Ana Maria D`Ávila. DESAFIOS E PERSPECTIVAS DOS DIREITOS DAS MINORIAS NO SÉCULO XXI. Nomos, 2008/2. Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC, p. 164. 161-169.

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