Judiciário Desafiado

PEC dos precatórios subjuga Judiciário

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6 de abril de 2009, 15h20

A concepção republicana do Brasil, como ocorre na grande maioria dos países ocidentais, está fundamentada no princípio da divisão dos poderes de Estado entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. A teoria de Montesquieu passou por evoluções e aperfeiçoamentos, e está sintetizada no artigo 2º da Constituição brasileira, segundo o qual “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Na estruturação constitucional da relação harmônica e respeitosa entre os poderes, cada esfera de poder tem direitos e obrigações em relação às outras. Da mesma forma que o Poder Judiciário e seus integrantes estão obrigados a cumprir as leis editadas pelo Congresso e a obedecer aos atos de administração do Poder Executivo que os vinculem como instituição e como pessoas, o Poder Executivo e o Poder Legislativo da União, dos estados e dos municípios estão, em tese, constitucionalmente obrigados a cumprir as decisões judiciais, proferidas por juízes competentes.

Mesmo não sendo o objeto deste texto, não deve passar sem reparo o fato de que o Estado, quando parte em processo judicial, seja como autor, seja como réu, já goza de inúmeras vantagens e privilégios, em total desequilíbrio com os direitos e deveres das partes privadas com quem contenda. Nos prazos, nas garantias processuais, na forma de execução e na remediação da inadimplência, na sistemática das presunções e dos recursos, a legislação processual trata o Estado com prerrogativas oriundas dos regimes monárquicos, as quais não guardam qualquer afinidade com as relações republicanas de poder, governo e cidadania.

Mas o que há muito tempo se verifica no Brasil, e agora se constata em intensidade verdadeiramente alarmante, é o conluio entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo para dar forma de aparente legalidade a uma rebelião incivil contra o Poder Judiciário. Executivo — especialmente pelo lobby de prefeitos e governadores — e Legislativo se unem para, pura e simplesmente, informar ao Poder Judiciário que não mais cumprirão as suas decisões de caráter financeiro.

É fato conhecido que as dívidas do Poder Executivo, quando objeto de decisões judiciais, estão sujeitas ao regime do precatório. Por esse regime, toda vez que se constituía um título judicial de dívida do Estado, através de sentença final e ao termino de processos que não raramente duram mais de dez anos, o Poder Judiciário determinava ao Poder Executivo devedor que incluísse no orçamento do ano seguinte a previsão dos recursos necessários para cumprir a decisão judicial. E assim era normalmente feito, com raras exceções.

A patologia desse relacionamento começou em 1988, quando chegava ao final, depois de quase trinta anos de disputas judiciais, o processo pelo qual os antigos acionistas da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, desapropriada em 1961 no governo Carvalho Pinto, deveriam receber as indenizações que a Constituição da República determina que deveria ser “justa e prévia” (artigo 5º, inciso XXIV ). Em 1988, aproveitando-se da Assembléia Constituinte então instalada, o Poder Executivo do estado de São Paulo, no governo de Orestes Quércia, conseguiu fazer inserir nas disposições transitórias da Constituição brasileira de 1988 um dispositivo totalmente surpreendente e incompatível com várias das garantias constitucionais asseguradas no texto principal. Concedeu-se ao Poder Executivo de municípios, de estados e da União a prerrogativa de um prazo de oito anos para cumprir as decisões judiciais de caráter financeiro que contra tais entes públicos fossem proferidas (artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).

Estimulados pelo precedente e não satisfeitos com o caráter transitório daquelas disposições constitucionais, os prefeitos e governadores manobraram, algum tempo depois, para a edição de Emenda Constitucional 30, de 13 de setembro de 2000, que assegurou dez anos de prazo para que se cumprissem as decisões judiciais condenatórias de pagamento (artigo 78 do ADCT).

O que está ocorrendo agora no Congresso — e em vias de se oficializar — é de uma gravidade sem precedentes. Pelo projeto de Emenda Constitucional 12, de autoria do senador Renan Calheiros e de relatoria da senadora Kátia Abreu, o Congresso brasileiro está decidindo que prefeitos, governadores e o presidente da República só cumprirão parcialmente, e dentro de determinados limites, no prazo mínimo de 15 anos, as decisões judiciais condenatórias de pagamento.

Diz essa PEC que, como estados e municípios devem muito, em razão de terem descumprido decisões judiciais anteriores e de carregarem precatórios antigos — aos quais não deram nenhuma relevância, permitindo que se acumulassem —, daqui para a frente só vão cumprir as decisões judiciais que couberem em um percentual entre 0,6% e 2% de suas respectivas arrecadações. Ou seja, um estado como São Paulo, que deve aproximadamente R$ 20 bilhões em precatórios e arrecada aproximadamente R$ 72 bilhões em receitas correntes líquidas, só vai pagar aproximadamente R$ 1,2 bilhões por ano dessas dívidas. O que significa que, se não perder mais nenhuma ação judicial, levará no mínimo 23 anos só para cumprir as sentenças que já lhe foram adversas.

Pelos mesmos critérios, a prefeitura de São Paulo levará 28 anos só para pagar os precatórios atrasados, sem contar os que planeja acumular nos próximos anos. A mesma equação matemática demonstra que o estado do Espírito Santo, com um total de aproximadamente R$ 7,8 bilhões em precatórios descumpridos e uma receita corrente líquida anual de R$ 6,9 bilhões, levará aproximadamente 120 anos só para pagar o que deve até hoje.

Ciente da perpetuação da inadimplência, decide o Congresso que, possivelmente, municípios, estados e a União farão os pagamentos em 15 anos, se não precisarem de maior prazo. Deixa ressalvado que, caso precisem fazer outros gastos prioritários, municípios, estados e União poderão alterar esse regime de pagamento, alongando o perfil da dívida, através de lei complementar (conforme o parágrafo 12 do artigo 100).

Ainda segundo a mesma PEC, não haverá ordem cronológica no pagamento dos precatórios. Terão prioridade para recebimento os credores que derem os maiores descontos percentuais nos respectivos créditos, por um sistema de leilões. Não haverá proteção dos créditos contra a inflação efetiva nem remuneração de juros adequados. A única atualização da dívida será proporcional aos rendimentos das cadernetas de poupança, que historicamente têm ficado abaixo da inflação.

O acintoso, a falta total de pudor, é que nada há na lei que limite a geração de novas inadimplências. Os governantes podem contrair novas dívidas, sem qualquer relação ou contenção determinada pelas dívidas passadas que ainda não foram pagas. O estado de São Paulo, por exemplo, antes mesmo de a PEC ser aprovada na Câmara federal, já anunciou centenas de novas desapropriações para a expansão do Metrô. E a prefeitura de São Paulo, por sua vez, anunciou a desapropriação de todo o bairro da Luz.

Essa inominável Emenda Constitucional comete vários atentados contra o Direito. Fere os princípios constitucionais de direito adquirido, impondo normas completamente diversas das que existiam quando o débito foi contraído. Despreza a garantia constitucional da coisa julgada de processos que tiveram longa e penosa tramitação. Também agride o princípio da isonomia, tratando de forma desigual os credores judiciais, preteridos em benefício de todos os outros credores. Assim, se o prefeito de um pequeno município quiser construir uma fonte luminosa na praça da cidade, poderá fazê-lo e pagar o empreiteiro no dia da entrega da obra. Mas se o Supremo Tribunal Federal determinar que ele pague o justo valor da indenização pelo terreno que seus antecessores desapropriaram dez anos antes para construir a praça, esse prefeito poderá responder que a prefeitura pretende cumprir a ordem do Supremo Tribunal Federal nos próximos 15 anos, quando ele não for mais prefeito.

A indigitada Emenda perverte o princípio da identidade e continuidade das pessoas jurídicas de direito público. As obrigações de cada município ou estado não serão reconhecidas e assumidas pelos mandatários que se sucederem. Cada prefeito ou governador só pagará as dívidas que contrair, e que quiser pagar. As dívidas de gestões anteriores serão acumuladas para serem amortizadas em percentuais anuais que sequer cobrirão a verdadeira correção monetária e os juros. O Estado cobrará os seus créditos com multa e taxa Selic, que incluirá correção monetária real e juros de mercado, mas pagará seus débitos quando quiser, e por critérios de atualização inteiramente arbitrários e danosos ao credor.

O mais grave é que, ao estabelecer que decisões judiciais contra o Estado são atos totalmente ineficazes, essa Emenda Constitucional desmoraliza completamente o Poder Judiciário. Em se tratando da relação entre o cidadão e o Estado, torna o Poder Judiciário impotente para dar a cada um o que é seu. No plano do processo, permite que prevaleça a lei do mais forte, sem que o Poder Judiciário possa fazer qualquer coisa, a não ser assistir suas ordens de pagamento irem para o arquivo.

Se é assim no plano do processo, não precisa ser assim no plano político. Está na hora de a magistratura, a advocacia e o Ministério Público se unirem, despertarem a consciência dos que ainda acreditam em Justiça e Direito e organizarem a reação. É preciso identificar e parar de eleger executivos e legisladores que desprezam solenemente o Poder Judiciário. É preciso alertar os congressistas de bem, para que resistam ao calote contra os credores do Estado, confabulado nos bastidores por pseudo-líderes sem ética e sem decoro, que comprometem a segurança jurídica e o equilíbrio dos poderes da República.

Celso Cintra Mori

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