Dívida jurídica

PEC dos precatórios cria distorções econômicas

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6 de abril de 2009, 18h00

O Senado Federal aprovou, na semana passada, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 12/06, com o alegado objetivo de solucionar um problema antigo e sério: equacionar o “enorme volume de precatórios não pagos por parte dos estados e municípios”. Essa é a justificativa constante de sua exposição de motivos, reiterada enfaticamente no relatório final da senadora Kátia Abreu, relatora da proposta. Sua redação final, entretanto, não respeitou o motivo dessa proposta e acabou por inserir dispositivos que beneficiam a União Federal, e não apenas os estados e municípios, em prejuízo de seus credores.

Alterar a Constituição Federal é algo da maior seriedade e que deve ser tratado com o mesmo nível de importância e cuidado que as suas repercussões causarão perante o país e o mundo.

As alterações a que faremos referência neste texto, acaso permaneçam no texto final a ser incorporado à Constituição Federal, representarão uma agressão aos direitos dos credores e, mais do que isso, um retrocesso para o Brasil, mediante a inclusão sorrateira de dispositivos economicamente irracionais, juridicamente viciados — por desvio de finalidade —, e eticamente injustos, com efeitos graves para a comunidade nacional e internacional.

Por esta razão, e tendo em vista que a PEC 12/06 ainda deverá ser aprovada pela Câmara dos Deputados, teceremos breves considerações, que esperamos possam provocar o debate sobre alguns aspectos da proposta que passaram em branco até o momento, e contribuir para que ao menos alguns de seus dispositivos sejam vetados ou alterados.

O meio debatido e proposto para a solução do problema das dívidas dos estados e municípios consistia, essencialmente, na criação de um sistema especial de quitação de débitos pelo qual os credores de precatórios que aceitassem o maior deságio teriam preferência no recebimento de seu crédito. O sistema especial está previsto no novo artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), proposto pela nova redação. Inicialmente a sua redação contemplou que todos os entes da Federação — União Federal inclusive — disporiam do sistema especial, mas como isso seria evidentemente contrário à motivação original da PEC, que se limitava ao problema dos estados, Distrito Federal e municípios, a redação atual, em resposta às críticas feitas, ao menos quanto a esse ponto, retirou a União Federal da redação proposta.

O sistema do artigo 97 mereceria diversas críticas que, entretanto, já vêm sendo realizadas por diversas entidades, inclusive pela Ordem dos Advogados do Brasil e, em especial, por sua Comissão Especial dos Credores Públicos (Precatórios), de forma que o presente texto se limitará a apontar as alterações incorporadas na redação final da PEC 12/06, e que se mostram inteiramente desconectadas do seu propósito original. As alterações são aquelas incorporadas ao artigo 100 da Constituição Federal, que não excepciona sua aplicação aos estados, DF e municípios, aplicando-se, portanto, também à União Federal. Ocorre que a União Federal não apresenta qualquer problema para a quitação de suas obrigações judiciais e não precisaria ser beneficiada por qualquer nova regra, tanto que as vem cumprindo com rigor e tem acumulado, ao menos até a presente data, grande credibilidade por este fato.

A primeira mudança trata da inclusão do parágrafo 11 ao artigo 100 da CF, que prevê a alteração do critério de correção dos precatórios em geral, reduzindo drasticamente o valor dos precatórios em geral, inclusive os já expedidos e os a expedir.

A segunda trata da inclusão do parágrafo 9º ao mesmo artigo 100, que prevê a compensação dos valores devidos a título de pagamento de precatórios com débitos a que estariam sujeitos seus titulares. Tal previsão, contudo, veio sob o manto de redação obscura e geradora de incertezas quanto aos limites do que poderá efetivamente ser objeto de compensação, minando seriamente a segurança jurídica de seus detentores e, por esta mesma razão, comprometendo sua capacidade constitucionalmente garantida de comercializá-los, conforme ressaltado no relatório elaborado pela senadora Kátia Abreu.


O presente texto abordará esses dois pontos da PEC aprovada pelo Senado federal, a começar pelo primeiro deles, por implicar evidente agressão aos mais basilares conceitos de justiça, legalidade e credibilidade do país perante os seus e a comunidade internacional, além de faltar com racionalidade econômica que sustente a redação proposta.

A alteração do critério de correção monetária dos precatórios federais

A redação proposta para o parágrafo 11 do artigo 100 da CF prevê que: "A correção de valores de precatórios pendentes de pagamento, independentemente de sua natureza, será feita pelo índice oficial de correção e percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança, ficando excluída a incidência de juros compensatórios".

A adoção desse novo critério de correção, diga-se de pronto, implicaria redução substancial do valor a que têm direito os credores de precatórios em geral, tanto maior quanto maior for o prazo de seu pagamento (como no caso daqueles parcelados em dez anos). E como se vê, referido parágrafo, além de afetar não apenas os precatórios de estados, Distrito Federal e municípios, como também os devidos pela União Federal, conforme seja interpretado, poderia também afetar: (a) os precatórios parcelados na forma do artigo 78 do ADCT e (b) até mesmo os precatórios já expedidos. Há pelos menos cinco razões pelas quais o dispositivo merece ser vetado ou, quando menos, ter sua redação alterada:

(i) O índice oficial de correção incidente sobre a caderneta de poupança é, atualmente, a Taxa Referencial (TR) e sua aplicação implicaria redução abrupta — podendo chegar a 30% — em relação ao critério atual (IPCA-E). A diferença entre uma e outra poderá ser ainda maior, se de fato as indicações do governo de redução da taxa da poupança se efetivarem. Ocorre que, enquanto a redução da taxa da poupança leva em conta o fato de serem seus beneficiários isentos do imposto de renda, os detentores de precatórios sofrerão a regular incidência dos tributos, uma vez recebido seu crédito. Portanto, aplicar a mesma taxa para ambas as situações é economicamente irracional e injusto qualquer que seja o índice aplicável a caderneta de poupança;

(ii) A alteração de critério de correção dos precatórios em benefício da União Federal e prejuízo de seus credores não se justifica. A União Federal não necessita de tal auxílio, vem cumprindo rigorosamente o pagamento dos precatórios com base nos critérios (adequados) atuais e, por essa mesma razão, o objetivo e motivação da PEC 12/06 está limitado às dívidas dos estados, Distrito Federal e municípios;

(iii) A TR é atualmente o critério aplicável à correção da caderneta de poupança. Ocorre que a TR não é índice de correção monetária e não reflete a corrosão da moeda. Por essa razão o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal já se manifestaram no sentido de que o IPC é o índice adequado para essa finalidade;

(iv) Em qualquer hipótese, a alteração de critério não pode atingir os precatórios parcelados na forma do artigo 78 do ADCT, que devem ser liquidados “pelo seu valor real”. A TR não reflete a “real” corrosão da moeda. A redação do parágrafo 11, se não for vetada, deve ser alterada para esclarecimento desse ponto;

(v) Também nessa hipótese, deve-se excepcionar de forma clara que a alteração do critério não afetará os precatórios já expedidos — e que já vêm sendo pagos, no caso da união Federal —, pois do contrário haveria evidente mudança de regra no meio do jogo, com sérias e graves consequências para a imagem do país.

Vejamos com maior detalhe cada um desses pontos:

Índice oficial de correção da poupança não serve para correção de precatórios


O índice oficial de correção monetária incidente sobre a caderneta de poupança não pode ser utilizado como critério de correção monetária dos precatórios. A remuneração paga ao investidor pelas aplicações em poupança é isenta de impostos, enquanto a remuneração paga pelo precatório é tributada. Logo, o resultado líquido da remuneração paga pelo precatório será sempre inferior ao rendimento que seria pago pela poupança, não se justificando, economicamente, a aplicação da mesma taxa de correção para ambos os casos.

A diferenciação entre a correção da poupança e de outros ativos geradores de renda em função do fator fiscal vem sendo admitida pelo próprio governo, que manifestou recentemente a intenção de definir a correção da poupança em percentual incidente sobre a taxa Selic, justamente sob a justificativa de que: “ao contrário dos fundos e outras aplicações, a poupança é totalmente garantida pelo governo, tem liquidez imediata, é isenta de Imposto de Renda e, além disso, os poupadores não pagam taxa de administração aos bancos” (cf. Agência Estado, 17.03.2009).

Além disso, o atual índice de correção incidente sobre a caderneta de poupança, a Taxa Referencial, é muito inferior ao Índice de Preços ao Consumidor, que até hoje vem sendo utilizado para a correção dos precatórios federais. Portanto, tal alteração, além de inadequada, conforme se verá adiante, acarretará brutal redução do valor do crédito. Adotando-se os percentuais disponíveis nos últimos anos, a diferença entre os índices seria de mais de 4% ao ano, podendo chegar a 30% de redução ao final do prazo decenal de pagamento em relação aos precatórios parcelados sob o regime do artigo 78 do ADCT. Ou seja, além de se submeterem a um regime moratório, tais credores seriam tolhidos em parte significativa de seu crédito.

Por tais motivos, não se justificaria, primeiramente, por uma perspectiva de racionalidade econômica e de justiça, a aplicação do índice de correção da caderneta de poupança aos precatórios em geral.

Alteração de critério em beneficio da União Federal não se justifica e viola o motivo e finalidade da PEC 12/06

O princípio da legalidade previsto no artigo 5º da Constituição Federal converteu-se atualmente no “princípio da reserva legal proporcional” (proporcionalidade), exigindo cumulativamente: (a) constatação da necessidade de utilização da alteração normativa; (b) adequação dos meios utilizados e os fins perseguidos e (c) razoabilidade (proporcionalidade em sentido estrito), que significa a “proibição de excesso”, limitando a produção de normas e a execução de atos eminentemente arbitrários, injustos ou irrazoáveis do poder público.

É evidente a ausência de necessidade da alteração do critério de correção dos precatórios federais em beneficio da união Federal, que jamais atrasou o pagamento de qualquer precatório, independentemente da sua natureza. Portanto, há clara inadequação entre o meio utilizado — alteração do artigo 100 da CF em beneficio de todos os entes federativos, inclusive União Federal — e a finalidade eleita na exposição de motivos — equacionar o “enorme volume de precatórios não pagos por parte dos Estados e Municípios”. Quaisquer alterações que tenham o objetivo de aliviar as dívidas judiciais dos entes da Federação deveriam se limitar a procurar solucionar a questão das dívidas acumuladas pelos estados e municípios.

A evidente incompatibilidade entre o motivo (finalidade) da PEC no 12/06 e seu parágrafo 11º, que beneficia a União Federal em prejuízo de seus credores, reforça a necessidade de seu veto.

A TR não é índice de correção monetária

Atualmente a TR é o critério aplicável à correção da caderneta de poupança. O objetivo da correção monetária é recompor a corrosão do poder aquisitivo da moeda pela inflação. Não se trata de um plus, mas uma decorrência natural do direito de propriedade garantido no artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal, na linha dos precedentes proferidos pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça[1]. Trata-se de garantia constitucional (“cláusula pétrea”), impassível de ser suprimida por meio de proposta de emenda à Constituição Federal (conforme artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da CF).


O Supremo Tribunal Federal possui entendimento no sentido de que: “A taxa referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda” (ADI 493/DF; Relator Min. Moreira Alves; Julgamento: 25/06/1992; Pleno).

A TR é um coeficiente da remuneração mensal média líquida de impostos, de títulos privados ou títulos públicos federais, estaduais e municipais (conforme artigo 1º da Lei 8.177/91). Primeiramente, apura-se o montante em dinheiro dos certificados e recibos de depósitos bancários emitidos a taxas pré-fixadas. A seguir, são determinadas, por meio de fórmula específica, as taxas média e efetiva mensais dos referidos índices certificados e recibos. Finalmente, a TR é obtida a partir da taxa média ponderada das trinta instituições relacionadas pelo Banco Central, deduzida de um redutor decorrente da tributação e da taxa real histórica de juros na economia. Assim, a TR pode ser um critério utilizado para a correção da caderneta de poupança, mas não um critério de correção monetária, já que o seu cálculo reflete a captação de recursos junto ao público e não a corrosão do poder aquisitivo da moeda.

Índice de correção monetária é um percentual que traduz, o mais aproximadamente possível, a perda do valor de troca da moeda, mediante a comparação, entre os extremos de determinado período, da variação do preço de certos bens, mercadorias, serviços, salários, dentre outros, para a revisão do pagamento das obrigações que deverá ser feito na medida dessa variação. Essa é a única forma de se apurar o “valor real” da moeda. Por esses motivos o STF e o STJ têm historicamente definido que o índice que melhor reflete a corrosão do poder aquisitivo da moeda pela inflação é o Índice de Preços ao Consumidor – IPC[2]. Nesse sentido há inúmeros acórdãos proferidos pelo STJ e STF em relação aos chamados expurgos inflacionários.

Também por essa razão a aplicação do índice de correção da caderneta de poupança (atualmente, a TR) não serve de parâmetro aos precatórios, por não constituir índice de correção monetária, devendo ser mantido, como critério de correção destes, o IPCA-E ou outro índice que reflita efetivamente a corrosão do poder aquisitivo da moeda.

O parágrafo 11 não se aplica ao artigo 78 do ADCT – caso não seja vetado, sua redação deve ser alterada para esse esclarecimento

A alteração do critério de correção dos precatórios, tal como constante da redação proposta do parágrafo 11 do artigo 100 da CF, não se coaduna com o disposto no caput do artigo 78 do ADCT, segundo o qual “os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real”. Ora, como visto, a TR não se enquadra no conceito de "valor real" referido por este dispositivo. Portanto, a interpretação sistemática dos dispositivos leva à conclusão de que os precatórios parcelados na forma do artigo 78 do ADCT permanecem com o critério de correção atual (IPCA-E + 6% a.a.). No entanto, a atual redação do parágrafo 11 do artigo 100 pode levar a uma interpretação dúbia e errada, qual seja, submeter também estes precatórios ao novo critério de correção. Assim, acaso não vetado, o parágrafo 11 do artigo 100 deve ser alterado para que sua redação seja clara ao excepcionar sua aplicação ao artigo 78 do ADCT, que deve continuar sofrendo a correção pelo IPCA-E, acrescido de juros legais, pois apenas assim terá sua liquidação pelo seu valor real.

A adoção de um critério distinto em relação a esses casos decorreria do próprio princípio da igualdade previsto no caput artigo 5º da CF, cujo mote consiste em tratar desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades. A sua aplicação ao caso concreto justificaria a adoção de um critério diferenciado em relação aos credores já submetidos à desvantajosa moratória promovida pela EC 30/00, cuja constitucionalidade até hoje é objeto de julgamento no Supremo Tribunal Federal. Observe-se que não se trata de garantia de direito adquirido a regime jurídico (no caso, regime de correção monetária), mas de garantia da eficácia da norma constitucional prevista no artigo 78 do ADCT e aplicação do princípio da isonomia.


Nesse cenário, caso não seja vetado, deveriam ser expressamente excepcionados da nova regra do parágrafo 11º os precatórios submetidos ao regime de parcelamento instituído pelo artigo 78 do ADCT, mantendo-se para estes o critério atual (IPCA-E), ou outro que reflita adequadamente a inflação do período, acrescido de juros legais.

Mudança das regras — aplicação aos precatórios já expedidos (e pagantes, no caso da união Federal) — a credibilidade do Brasil em jogo

A alteração das regras no meio do jogo é sabidamente algo que prejudica a imagem de quem o faz. Alterar o critério de correção dos precatórios mediante inserção “de carona” numa medida proposta com outros objetivos, e que ainda atinja aqueles em andamento, é medida que denigre a imagem do país perante os seus e os estrangeiros que serão atingidos. É medida que vai na contramão de uma série de tantas outras promovidas nos últimos anos, no sentido de aumentar a credibilidade do país, com demonstrações de seriedade, compromisso com a estabilidade das regras e respeito às instituições e separação dos Poderes. Esta é a dimensão do que está em jogo.

Imaginar que a redação proposta comporta interpretação que abarcaria os precatórios já expedidos seria uma agressão simplesmente intolerável perante os seus detentores.

Esses detentores vão desde credores originais — a população em geral — até investidores nacionais e estrangeiros que confiaram na estabilidade das regras do país. No cenário internacional, a credibilidade construída nos últimos anos foi fundamental ao crescimento dos investimentos efetuados por estrangeiros no mercado financeiro e por capitais brasileiros. Um volume considerável desses investimentos foi feito através de Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDCs), lastreados em precatórios. Estima-se que há alguns bilhões de reais investidos nesses FIDCs, o que evidencia o sucesso do legislador constitucional à época da edição da emenda 30/00 que, ao prever o parcelamento dos precatórios, quis garantir sua livre e desembaraçada comercialização — como reconheceu a própria senadora Kátia Abreu no relatório da proposta aprovada.

A confiança do investidor é elemento decisivo na alocação do investimento. Os seus principais pilares são a certeza e a segurança. Os investimentos nesses fundos foram efetuados sob a premissa de gerarem uma rentabilidade esperada atrelada ao IPCA-E a título de correção monetária e juros de 0,5% ao mês. Atrelar a correção dos precatórios ao índice de correção da caderneta de poupança implicará evidente instabilidade das normas. Pior, se esta norma atingir precatórios já expedidos (pendentes de pagamento), os danos à imagem do país serão inquestionáveis, na medida em que todos os atuais detentores, inclusive instituições financeiras nacionais e estrangeiras, fundos de hedge e outros, deverão reprecificar seus ativos em função da nova forma de correção, ajustando-os nos níveis acima referidos. Será um irreparável abalo à imagem do país, a um custo alto demais. Essa conta fica muito mais cara em cenários de crise, em que a confiança — e aversão ao risco — assumem papel ainda mais relevante no processo decisório de alocação de investimentos. Medidas como essa deverão respingar como uma pedra no centro do lago, tomando graves proporções no fluxo de investimentos fundamental ao desenvolvimento econômico do país. Configuraria uma conduta ultrapassada, semelhante àquelas praticadas pelo governo nas décadas de 1980 e 1990, e que geraram “esqueletos” cujos efeitos nocivos são sentidos até hoje.

Em resumo, simplesmente não vale a pena.

A compensação dos valores devidos a título de pagamento de precatórios com débitos a que estariam sujeitos seus titulares

A redação proposta para o parágrafo 9º do artigo 100 da CF prevê que: “No momento do pagamento efetivo dos créditos em precatórios independentemente de regulamentação dele deverá ser abatido, a título de compensação, valor correspondente aos débitos líquidos e certos, inscritos em dívida ativa e constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora, ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação administrativa ou judicial” (grifo nosso).


Embora a justificativa do dispositivo tenha sido tornar “mais clara a regra de compensação financeira nas hipóteses em que a fazenda pública for, ao mesmo tempo, devedora e credora do titular do precatório”, a sua redação atual conduz a interpretação diversa. Da forma como se encontra redigido o dispositivo, não somente os débitos do atual credor do precatório poderiam ser objeto de compensação, mas também os débitos que o antigo credor possuísse em aberto. Assumamos a hipótese de que um detentor “A” ceda, em 2009, um precatório com dez parcelas vincendas ao cessionário “B”. À época da transação, “A” não tem quaisquer débitos em aberto — até porque, no momento da transação, o cessionário deverá verificar, como de regra verifica, se o cedente não incorreu em fraude a credores ou à execução ao alienar o seu recebível. Imaginemos, porém, que, em 2012, “B” esteja para receber o pagamento da terceira parcela do precatório que adquiriu. Ainda que “B” não possua quaisquer débitos em aberto neste momento, se “A” tiver contraído débitos que já estejam inscritos em dívida ativa, “B” poderá ser surpreendido e ter o valor de sua parcela reduzida na proporção de tal débito, então contraído por “A”. Seria um evidente absurdo. Mas é o que se pode ler da norma.

A previsão de compensação, tal como redigida atualmente, acarreta enorme insegurança, que comprometerá sobremaneira — caso não inviabilize por completo — a capacidade de os detentores de precatórios comercializarem seus títulos, como quis o legislador constitucional. Como bem ressaltou a senadora Kátia Abreu ao negar aprovação à emenda 2, não seria legítima a quebra da “possibilidade já constitucionalizada anteriormente, qual seja a de parcelamento e comercialização de precatórios, uma das formas que o Parlamento Nacional encontrou para tentar permitir ao credor de precatórios a recuperação, pelo menos parcial, de seus créditos judicialmente reconhecidos contra as Fazendas Públicas”. Pois é justamente o que ocorrerá se a redação do referido parágrafo 9º não for alterada.

Melhor que fosse vetado o parágrafo, dado que pretende implementar sistema de compensação já vetado anteriormente pelo Supremo Tribunal Federal — ainda que por razões de ordem técnica —, ou, quando menos, que seja substituído o termo “credor original” pelo termo “detentor do precatório”, o que permitiria cumprir, de forma adequada, a “compensação financeira nas hipóteses em que a fazenda pública for, ao mesmo tempo, devedora e credora do titular do precatório”, afastando a indesejada segurança que a redação atual oferece. Até porque, como redigida, permite compensação entre devedor e “antigo” credor, o que sequer é razoável.

Em conclusão, como se vê, as alterações propostas para o artigo 100 da Constituição merecem grande reflexão. A questão da mudança de critério prevista no seu parágrafo 11 é a mais séria delas. Implica alteração economicamente injusta e tecnicamente inadequada. Não deveria ser instituída para nenhum dos entes. Caso o fosse, apenas se justificaria sob a perspectiva de reduzir por mais essa via a dívida dos entes da federação, o que já se propõe esteja sendo cuidado — ainda que de forma também inadequada — pelo artigo 97 do ADCT e, assim, também não passa. Em qualquer hipótese, qualquer medida neste sentido deveria ter sua aplicação limitada aos precatórios estaduais, do DF e municipais, e excepcionar expressamente sua aplicação aos precatórios parcelados na forma do artigo 78 do ADCT, bem como, e em especial, no que diz respeito aos precatórios já expedidos.

Nossa Câmara de Deputados tem em suas mãos o poder de ratificar a idéia de que o país mudou e hoje pode contar com a confiança dos seus e da comunidade internacional. Ou, simplesmente, adotar o caminho mais fácil e aprovar a PEC 12/06 na redação encaminhada pelo Senado. Vivemos hoje épocas muito difíceis. São momentos em que os atos repercutem de forma ampla nos nossos caminhos. O caminho mais fácil raramente é o melhor. Especialmente agora, não o parece ser. Cabe esperar que nossos representantes pensem da mesma forma.


[1] No entendimento do STJ, o direito à correção monetária “constitui mero princípio jurídico aplicável a relações jurídicas de todas as espécies e de todos os ramos do direito. É ressabido que o reajuste monetário visa exclusivamente a manter no tempo o valor real da dívida, mediante a alteração de sua expressão nominal. Não gera acréscimo ao valor nem traduz sanção punitiva. Decorre do simples transcurso temporal, sob regime de desvalorização da moeda. A correção monetária consulta o interesse do próprio Estado-Juiz, a fim de que suas sentenças produzam – tanto quanto possível – o maior grau de satisfação do direito cuja tutela se lhe requer” (Resp nº 20.924-2, julgado em 20.05.92, DJU de 15.06.92).

[2] O STJ consolidou o entendimento de que “deve ser seguido, em qualquer situação, o índice que melhor reflita a realidade inflacionária do período, independentemente das determinações oficiais. Assegura-se, contudo, seguir o percentual apurado por entidade de absoluta credibilidade e que, para tanto, merecia credenciamento do Poder Público, como é o caso da Fundação IBGE. É firme a jurisprudência desta Corte que, para tal propósito, há de se aplicar o IPC, por melhor refletir a inflação à sua época” (Resp nº 505.803). E, ainda: “se na vigência de sucessivos planos econômicos implantados pelo Governo continuou a existir inflação, deve ser aplicado o verdadeiro índice que reflita a real inflação do respectivo período e este resultado só será alcançado se a indexação for feita pelo IPC” (Resp 47.852-9/SP e Resp 43.046/SP).

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