Pena acumulada

Poder de aplicar punição não é absoluto e irrestrito

Autor

2 de abril de 2009, 5h31

O presente artigo visa expor, de forma reduzida, como vem se portando doutrina e jurisprudência quanto às sansões penalizatórias aplicadas diante de condutas indevidas nos processos judiciais.

Vale ressaltar que essa pequena exposição não pretende de sobremaneira esgotar a matéria aqui debatida, mas trazer a lume algumas peculiaridades, distorções e exageros na aplicação das citadas penalidades em nosso ordenamento jurídico.

Ao se formar a relação processual, seja angular (autor — juiz), seja triangular, (autor — juiz — réu), e ao adquirir a categoria de parte[1], que se entende por sujeitos contrapostos na dialética do processo perante o juiz, os sujeitos do processo passam a ter obrigações na demanda.

Os deveres das partes no processo estão inseridos no artigo 14 do Código de Processo Civil. Algumas dessas obrigações se denominam lealdade e boa-fé processuais, descritas no inciso II, do artigo citados, que serão objeto de nosso estudo.

O princípio da lealdade processual que, em suma, explicita o conteúdo ético do processo, inspirou a formação de um conjunto de regras que busca punir a conduta contrária ao direito ou prejudicial à entrega da prestação jurisdicional.

Dessa forma, infere-se que quando a parte atua de forma desleal, seja omitindo fatos, seja praticando atos processuais com intuito procrastinatório, seja sendo omisso na prática de atos que são de sua obrigação, merece uma punição processual.

Assim diante da preocupação com a conduta dos sujeitos do processo, o legislador entendeu na criação do nosso digesto processual, que a parte que incorrer nesses procedimentos deve sofrer penalidades por sua desídia. E tal penalidade é aplicada através de sansões, que podem ter natureza coercitiva/punitiva ou reparatória.

São exemplos de sansões punitivas as multas previstas: nos artigos 14, parágrafo único (litigância de má-fé); 161 (lançamento de cotas marginais ou interlineares no autos); 196 (retenção indevida de autos); 233 (citação por edital por alegação mentirosa); 538, parágrafo único (embargos de declaração protelatórios); 557, parágrafo 2º ( recurso de agravo protelatório); 601 (ato atentatório à execução); 740, parágrafo único (embargos à execução protelatórios) e 746, parágrafo 3º (embargos à adjudicação, à arrematação ou à alienação protelatórios) do Código de Processo Civil.

Já a sanção reparatória pode ser encontrada no artigo 18 (segunda parte) do Código de processo Civil, por exemplo.

Após esse preâmbulo, verifica-se que o artigo 14, parágrafo único, do Código de Processo Civil, expressamente, ressalva a possibilidade da cominação de sanções previstas na norma, “sem prejuízo das sanções, criminais, civis e processuais cabíveis.”.

Ou seja, a multa prevista no artigo 14, como já demonstrado, tem a natureza de sanção coercitiva (efeito psicológico), portanto, se cumulada com a sanção de natureza indenizatória, é devida, não se dando bis in idem.

Buscou o legislador, com a redação do artigo 14 do CPC, em sintonia com o processo moderno, tutelar o respeito à corte, suas decisões e seus juízes, protegendo, em última análise, a própria jurisdição.

Com as sanções processuais referidas, ora se tutela a efetividade do provimento judicial (astreintes), ora impõe-se à parte sanção por atitude desleal (litigância de má-fé), de acordo com o princípio ético do processo.

Ocorre que o poder de aplicação das punições não pode ser absoluto e irrestrito. Dessa forma, doutrina e jurisprudência assentes, vedam a cumulação das sanções aplicadas quando possuírem a mesma natureza jurídica.

Nesse sentido discorre brilhantemente o célebre jurista Theotonio Negrão[2], que afirma ser defeso à cumulação de multas de natureza diversa, in verbis:

Art. 18: 9. “A multa prevista neste artigo é uma sanção punitiva. Para que ela possa ser aplicada conjuntamente com outras sanções é necessário que elas exerçam funções distintas (p. ex. coercitiva ou reparatória). Um mesmo comportamento não pode ser sancionado mais de uma vez com a mesma finalidade. São também punitivas as sanções previstas nos art. 14 § um. 161, 196, 233, 538, § un, 557 § 2º, 601 – caput, 740 § um. e 746 § 3º, logo não podem ser impostas cumulativamente. Em cada caso concreto, deve ser aplicada a multa mais específica (…).”

************************************************************

Art. 538: 11b “A multa prevista nesse artigo te finalidade punitiva, o que impede sua cumulação com outras sanções igualmente punitivas, caso das multas previstas nos arts. 14, §, ún., 18 —“caput” e 601— “caput” (…)”

Assim, quando se tratar de multas coercitivas, as mesmas não podem ser impostas cumulativamente. Ou seja, em cada caso concreto, deve ser aplicada a multa mais específica para a questão com base no princípio da especialidade.

Exemplo disso se dá, diante da aplicação da multa dos artigos 538, parágrafo único c/c artigo 557, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil, após a oposição de embargos de declaração, contra acórdão que julgou e não aplicou qualquer multa (artigo 557, parágrafo 2º) em agravo de instrumento[3].

No caso concreto é evidente que a multa não deve subsistir, nesse momento processual (julgamento dos embargos de declaração), com base no princípio da especialidade. Ou seja, a sanção deve ser dirigida ao ato praticado no momento de sua imposição.

Nesse sentido já decidiu a corte especial no julgamento do EREsp 511.378/DF, Ministro José Arnaldo da Fonseca, julgado em 17.11.04 e publicado no DJ 21/02/2005 p. 99:

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DECLARATÓRIOS E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. IMPOSIÇÃO DE DUAS MULTAS (ART. 18 E ART. 538 DO CPC).  CARÁTER PROCRASTINATÓRIO DOS EMBARGOS. DIVERGÊNCIA NÃO CONFIGURADA. CUMULAÇÃO DAS DUAS MULTAS. INVIABILIDADE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. VENCIDA A FAZENDA PÚBLICA. CONDENAÇÃO INFERIOR AOS 10%. ART. 20, §§ 3º E 4º DO CPC. POSSIBILIDADE.

(…)

Não deve prevalecer a imposição cumulativa das multas do art. 18 e do art. 538 do CPC em razão do mesmo fato (oposição de embargos declaratórios com efeito procrastinatório), devendo subsistir, na hipótese, esta última.

Não conhecimento quanto à fixação da verba honorária em percentual inferior ao limite mínimo de 10%, porquanto o dissenso é entre Turmas da mesma Seção, remetendo-se-lhe os autos para deliberar sobre esse ponto.

Embargos conhecidos parcialmente e, nesta extensão, providos”.

Outro não foi o entendimento da 1ª Seção do STJ, no julgamento do EREsp 641.522/SP, que teve como relator o Ministro Francisco Peçanha Martins, julgado em 14.09.05, publicado no DJ 24/10/2005 p. 162:

PROCESSUAL CIVIL – EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA – AGRAVO REGIMENTAL PROTELATÓRIO – IMPOSIÇÃO DAS MULTAS PREVISTAS NOS ARTIGOS 18 E 557, § 2º, DO CPCCUMULAÇÃO – IMPOSSIBILIDADEPRECEDENTES.

– Caracteriza inegável “bis in idem” a imposição cumulativa das multas previstas nos artigos 18 e 557, § 2º, do CPC, pela interposição de um único recurso.

– Em face do princípio da especialidade, a oposição de agravo protelatório só enseja a oposição da multa prevista no § 2º único do artigo 557 do CPC.

– Embargos de divergência providos para afastar a multa do artigo 18 do CPC.

Verifica-se que doutrina e jurisprudências são uníssonas em expurgar a imposição de cumulação de multas por um mesmo comportamento, pois para que elas possam ser aplicadas conjuntamente (artigos 538, § único c/c artigo 557, § 2º, do CPC), é necessário que elas exerçam funções distintas.

Por fim, é bom lembrar cada multa possui percentual e valor distinto. E para visualizar a questão pode-se novamente utilizar o exemplo proposto, onde a multa do artigo 538, parágrafo único do Código de Processo Civil, pode ser arbitrada no máximo de 1% (1ºs embargos de declaração), mas jamais de 10%, máximo previsto no artigo 557, § 2º do Código de Processo Civil.

Resta claro que as multas coercitivas somente podem ser impostas após a execução do ato (interposição e julgamento de cada recurso) para que seja possível sua eventual cumulação. Ou seja, em cada caso concreto, deve ser aplicada a multa mais específica para a questão.

Assim, conclui-se que é vedada a cumulação de sanções com mesma natureza em nosso ordenamento jurídico, sob pena de bis in idem, e quando aplicadas, devem ser dirigidas ao ato praticado no momento de sua imposição, com base no princípio da especialidade.


 

[1] Liebman, Enrico Túlio, Manual de Direito Processual Civil, vol. I, 2a ed., Tradução e Notas de Cândido Rangel Dinamarco, Forense, pág. 89.

[2] Código de Processo Civil e Legislação processual em vigor, 39 ed., Saraiva, 2007, p. 711.

[3] ED em AI 2008.002.19653 – Des. Jose Carlos Varanda – Julgamento: 28/08/2008 – Décima Câmara Cível do TJRJ.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!