Justiça e impunidade

Restrição de escutas telefônicas pode tornar método inútil

Autor

29 de setembro de 2008, 17h24

Em alguns países, a incapacidade dos sistemas judiciais para punir quem comete delitos fomenta a sensação de impunidade no meio dos poderosos, ao mesmo tempo que alimenta a insegurança entre os cidadãos comuns — Relatório da Transparência Internacional de 2008 sobre a América Latin

Paul Castellano, o chefe das famílias mafiosas dos Estados Unidos, foi finalmente processado com base em escuta ambiental instalada em sua casa e que gravou suas conversas criminosas por quatro meses e meio, com 600 horas de gravação e 3 mil páginas de transcrições.

John Gotti, chefe da família Gambino, apelidado de Don “Teflon” por ter escapado de diversas acusações, foi finalmente condenado através de investigação de cinco anos e que envolveu escuta ambiental de sete meses e delação premiada de seu braço direito.

A mais impressionante operação de infiltração na máfia durou seis anos e foi realizada por Joseph Pistone, o agente encoberto cuja história inspirou o filme Donnie Brasco.

Na Itália, os arrependidos da Cosa Nostra propiciaram os maxi-processos coordenados pelo promotor Giovanni Falcone e levaram à condenação de centenas de mafiosos, inclusive dos chefes.

Em escuta telefônica de um ano e seis meses no Brasil, foram interceptados doze carregamentos de drogas, com apreensão de cerca de 753 quilos de cocaína e 3,6 toneladas de maconha, logrando-se obter provas contra a cúpula do grupo criminoso dirigido por Fernandinho Beira Mar.

Os exemplos poderiam ser inúmeros. Ilustram a necessidade de se contar com métodos especiais de investigação em relação à criminalidade moderna, que se desenvolve sob uma concha de segredo. Isso é verdadeiro em todo o mundo, inclusive no Brasil.

Reconhecer tal necessidade não significa que tais métodos podem ser aplicados sem regras. São invasivos à privacidade. Não podem constituir uma carta branca nas mãos das autoridades públicas, ainda que bem motivadas.

Não se pode, porém, abdicar deles, sob pena de tornar impossíveis bons casos criminais em relação à criminalidade mais complexa. As provas não caem do céu. Ficariam de fora da Justiça casos graves, de tráfico de drogas, corrupção, pedofilia e lavagem, dentre outros. Também ficariam de fora os chefes dos grupos criminosos, pois sem os métodos não é viável ter boas provas senão contra quem se encontra na base da pirâmide criminosa.

Não se pode também restringir o seu emprego ao ponto de tornarem-se inúteis. Isso pode acontecer quando se impõem prazos exíguos para a sua realização. O que seria da investigação de Joseph Pistone caso ele dispusesse de dois meses para sua infiltração?

De forma semelhante, encerrar prematuramente a interceptação da quadrilha de Fernandinho Beira Mar apenas significaria vedar a continuidade da investigação e permitir a continuidade dos carregamentos de drogas.

Causam preocupação as atuais discussões no Brasil a respeito da interceptação telefônica e de modo geral dos métodos especiais de investigação.

Tais assuntos não podem ser discutidos apaixonadamente, com retórica excessiva e colocando-se de lado os dados empíricos, a experiência das pessoas envolvidas com investigação criminal e mesmo a experiência mundial, em outras palavras, o mundo entre parênteses.

Uma escuta ilegal ou desvios criminosos, por mais lamentáveis que sejam, não autorizam conclusões sobre as investigações legalmente autorizadas.

A Justiça no Brasil está longe de padrões satisfatórios. Ao invés de irmos em frente, reformando, por exemplo, nosso sistema esclerosado de recursos, corremos o risco de retrocesso. Seria lamentável que uma discussão apaixonada sobre os métodos especiais de investigação nos faça retroceder ao século XIX, de Justiça profundamente censitária, como se o crime atual fosse o mesmo daquela época. Seria lamentável que voltássemos a ter na agenda da Justiça apenas crimes de menor dimensão e pequenos criminosos, sem chances reais, já que tolhidos excessivamente os meios necessários, de bons casos em relação à criminalidade mais grave

Não estamos no Estado Policial. Ainda somos, com exceções, o País da Impunidade. Fazer valer a lei penal contra todos os crimes, especialmente os mais graves, e independentemente do estrato social do criminoso, não é autoritarismo. Trata-se do império da lei, que deve valer para todos, e que é um componente essencial a qualquer regime democrático e ao Estado de Direito.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!