Novo modelo

O recebimento da denúncia segundo a Lei 11.719/08

Autores

  • Cezar Roberto Bitencourt

    é procurador de Justiça aposentado professor universitário de Direito e advogado criminalista sediado em Brasília.

  • Jose Fernando Gonzalez

    advogado criminalista promotor de Justiça aposentado do Ministério Público do Rio Grande do Sul. É também professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas (RS).

29 de setembro de 2008, 0h00

Juízo de admissibilidade e contraditório antecipado

Desde muito tempo os operadores do Direito, em sua maioria, reclamavam modificações no processo penal; entre os argumentos, não raro o de que a atividade investigatória registra baixa efetividade em nosso sistema repressivo, sendo demasiadamente burocrática; ou que o processo propriamente dito seria moroso e permeável a um conjunto de práticas que tanto poderiam servir à busca da chamada verdade real quando à procrastinação pura e simples. Pois a reforma aí está, introduzindo profundas alterações em determinados pontos do sistema; nesse contexto, a Lei 11.719, em vigência desde agosto de 2008, que alterou institutos como a emendatio libelli e a mutatio libelli, bem como estabeleceu novas regras para os procedimentos em geral. Resta saber se todas essas modificações estão em consonância com a expectativa da comunidade jurídica, e se irão mesmo produzir os resultados que se apregoa.

A questão fulcral, parece-nos, preliminarmente, reside no juízo de admissibilidade da ação penal, ou seja, haverá um ou dois recebimentos da denúncia ou queixa, ou, mais precisamente, valerá a primeira ou a segunda previsão legal? A complexidade que o novo texto legal apresenta a um tema até então de fácil compreensão, recomenda uma reflexão mais alentada, na tentativa de contextualizá-lo adequadamente. No anterior modelo, o juízo de admissibilidade, a que sempre denominamos recebimento da denúncia ou queixa, dava-se, em regra, imediatamente após o oferecimento da inicial acusatória. Trata-se (o recebimento) de providência relevante, porquanto constitui marco interruptivo da prescrição (art. 117, I, do Código Penal) e, ao menos no sistema anterior, presa ao princípio da indisponibilidade; assim, recebida a inicial, tinha-se que a ação penal era (ou ainda é?) como uma flecha, que desprendida do arco que a impulsiona somente no alvo (a sentença) exaure a sua força.

Também não é de hoje que se discute a possibilidade de haver contraditório em momento anterior ao juízo de admissibilidade (recebimento da denúncia ou queixa); há vantagens nisso, tanto para o acusado (possibilidade de demonstrar desde logo que a ação é infundada) quanto para o próprio Estado Jurisdição (possibilidade de abreviar demandas inúteis e/ou aglutinar atos instrutórios). Não é outra coisa o que temos para os crimes de imprensa, pois a Lei 5.250/67, em seu artigo 44, estabelece que o recebimento da denúncia só irá acontecer depois do oferecimento de resposta pela defesa; é o que também ocorre nos casos submetidos aos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95, art. 81) e, de certo modo, no procedimento previsto para os crimes de tráfico (Lei 11.343/06).

Pois é justamente quanto ao recebimento da denúncia ou queixa que a Lei 11.719/08 enseja, a nosso sentir, maior controvérsia. O PL 4.207/01, que deu origem à lei, chegou ao Congresso Nacional com a proposta de uma uniformização dos procedimentos e, fora de qualquer dúvida, pretendendo um modelo de contraditório antecipado, em que o juízo de admissibilidade só aconteceria depois da manifestação defensiva; basta ver a redação que era pretendida para o artigo 395:

“Art. 395. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de dez dias, contados da data da juntada do mandado aos autos ou, no caso de citação por edital, do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.”

O projeto, no entanto, sofreu alterações no Congresso Nacional; e a redação que se pretendia dar ao art. 395 tornou-se, com emendas, aquela do atual art. 396. Ou seja:

Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.

Exceção feita ao marco inicial do prazo para oferecimento de resposta (foi abolida a idéia da contagem a partir da juntada do mandado aos autos) ou aos casos de citação por edital (a previsão foi deslocada para o parágrafo), o texto em vigência (art. 396) reproduz a redação pretendida pelo projeto para o artigo 395, só que ali foi inserida a expressão “recebê-la-á”. Pode parecer, então, que o legislador teria pretendido retroceder ao antigo sistema, mantendo o juízo de admissibilidade ab initio. Ocorre que, em linhas gerais, as demais disposições do projeto foram mantidas, como adiante veremos; e muitas delas são, a nosso ver, incompatíveis com o recebimento da denúncia nesse primeiro momento. O legislador, então, pode até ter pretendido antecipar o recebimento da inicial (juízo de admissibilidade) para oportunidade anterior à citação, mas certamente não o fez.


Em primeiro lugar, antes que se passe à análise dos dispositivos introduzidos pela reforma, faz-se necessário lembrar que, ao menos sob enfoque jurídico — e para efeitos processuais — recebimento da denúncia ou queixa e juízo de admissibilidade são expressões equivalentes. Veja-se a doutrina:

“‘Recebimento’ não se confunde com ‘oferecimento’, e caracteriza-se pelo despacho inequívoco do juiz recebendo a denúncia ou queixa. Despacho meramente ‘ordinatório’ não caracteriza seu recebimento.”[1]

O exame sistemático do novo regramento permite que dele se extraia todo um conjunto de conclusões. E nos parece conveniente iniciar pela nova redação do artigo 363:

“Art. 363. O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado.”

Para o anterior modelo, a relação processual se completava com o recebimento (admissibilidade) da inicial, daí o fundamento para que fosse esse o marco interruptivo do prazo prescricional (e não a citação); a partir desse marco o acusado transmudava-se à condição de réu; por isso benefícios, como a suspensão condicional do processo, estavam vinculados ao recebimento da denúncia (art. 89, § 1o, da Lei 9.099/95). A Lei 11.719/08 introduziu no processo penal, portanto, alteração profunda, de natureza estrutural, emprestando instituições típicas do processo civil; a redação atual do artigo 363 atribui à citação válida no processo penal dignidade semelhante àquela estabelecida pelo artigo 219 do Código de Processo Civil.

Juízo de admissibilidade: causas de rejeição e absolvição sumária

Num segundo momento, a novel legislação, cuidando da admissibilidade, enumerou circunstâncias, erigindo-as à condição de causas de rejeição (art. 395) ou absolvição sumária (art. 397). Não se deve pensar que essa seja uma inovação substancial, pois todas essas possibilidades (395 e 397) já existiam entre nós, e sua utilização não era rara. Qual o juiz que, antes da reforma, receberia uma denúncia inepta? Ou não poderia o juiz, antes, rejeitar a inicial por entender tratar-se de conduta atípica? O que verificamos no texto novo caracteriza tão somente uma tentativa de aperfeiçoar a redação do artigo 43 (revogado), dividindo os fundamentos da inadmissibilidade em dois grupos: o primeiro diz com a forma, e a esse a lei denominou causas de rejeição; o segundo alcança o mérito, dizendo-se causas de absolvição sumária; a rejeição faz coisa julgada só formal; a absolvição sumária faz coisa julgada material. Mas isso também não é novidade: desde muitos anos o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vem entendendo que “rejeição” e “não recebimento” são coisas distintas; a Corte considerava “rejeição” a recusa pelo mérito, e “não recebimento” pela forma. Por isso nos casos de “rejeição” entendia cabível recurso de apelação; e ante a equivocada interposição de um recurso por outro resolvia pela fungibilidade recursal, como exemplifica o seguinte aresto:


“Princípio da fungibilidade. Recebimento do recurso como apelação. A decisão que rejeita a denúncia, com fulcro no art. 43 do CP, desafia apelação-crime e não recurso em sentido estrito. Aplicação do princípio da fungibilidade para receber a inconformidade ministerial como apelação.”[2]

Pelo novo sistema, o juízo de (in)admissibilidade dar-se-á do seguinte modo: oferecida a denúncia ou queixa, ao juiz é reconhecida, desde logo, a faculdade de rejeição liminar (art. 396). Evidente que esse ainda não será o momento definitivo para a rejeição propriamente dita, mas apenas uma possibilidade para que o juiz faça isso liminarmente; assim, frente a uma inicial notadamente inepta, poderá o juiz “rejeitá-la” de plano. A decisão que se contrapõe à “rejeição liminar” decerto não pode ser confundida com “recebimento”, ao menos para os efeitos jurídicos que disso podem advir ao acusado, como a interrupção da prescrição, por exemplo. Pensamos que o juiz, nessa oportunidade, em não rejeitando liminarmente a inicial, proferirá despacho meramente ordinatório, determinando a citação. A admissibilidade “stricto sensu” só acontecerá mais tarde, quando o juiz poderá, examinados os argumentos de defesa, ainda rejeitar; ou absolver sumariamente o acusado; ou mesmo receber a inicial. E, como nos parece totalmente despropositado possa haver dois juízos de admissibilidade, temos que o art. 396 cuida tão somente de uma possibilidade de rejeição liminar. Ou isso ou seria necessário dizer que recebimento da denúncia não equivale a juízo de admissibilidade; e para isso seria necessário renegar conceitos doutrinários e posições jurisprudenciais consolidados desde décadas.

Por outro lado, estivesse já esgotada a possibilidade de rejeição, a manifestação obrigatória do acusado (art. 396-A), em que poderá alegar …tudo o que interesse à sua defesa…, tornar-se-ia, no mais das vezes, providência meramente formal, vazia de conteúdo, a exemplo do que antes já ocorria. Portanto, o novo modelo reclama interpretação sistemática dos dispositivos, não se podendo atribuir à expressão recebê-la-á um significado puramente textual; trata-se, segundo pensamos, de receber para o só efeito de mandar citar. Em não rejeitando liminarmente a denúncia ou queixa, o juiz determinará a citação, para que o acusado ofereça resposta. Cumprida essa providência defensiva o juiz deverá, diz a lei, absolver sumariamente o acusado quando verificar presente qualquer das hipóteses dos incisos do art. 397; ou, parece claro, repita-se por necessário, ainda rejeitar, caso só então reste convencido de que presente alguma daquelas hipóteses do artigo 395.

Quanto ao disposto no artigo 397, exceção feita à alínea IV (extinta a punibilidade do agente), todas as demais (I — a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II — a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; e III — que o fato narrado evidentemente não constitui crime) são hipóteses de inadmissibilidade com alcance de mérito, a que antes denominávamos rejeição, e em que se entendia cabível recurso de apelação. A extinção de punibilidade, cujo reconhecimento não pode ser confundido com decisão absolutória, foi inserida no rol desse dispositivo pelo só fato de que, inadmitida a ação ao amparo de prescrição, por exemplo, outra denúncia ou queixa não pode ser tolerada quando oferecida em razão do mesmo fato. Melhor seria se o legislador, no que respeita às causas extintivas da punibilidade, tivesse apenas remetido ao artigo 61 do diploma.


Não foi sem causa, decerto, que, cuidando dos procedimentos, já na primeira regra, no inciso III, do parágrafo 1º, do artigo 394, a novel legislação introduziu comando que mantém inalterado o modelo dos Juizados Especiais Criminais para os casos de infrações de menor potencial ofensivo. Ou que sentido haveria em a legislação — cujo propósito uniformizador é inquestionável — adotar posição conservadora tão somente em relação aos procedimentos ordinário e sumário, mantendo expressamente inalterado o sistema da Lei 9.099/95? E lá, nos Juizados Especiais, não paira dúvida de que o procedimento seja de contraditório antecipado. Veja-se, a propósito, interessante ementa da Turma Recursal da Capital Gaúcha:

APELAÇÃO DEFENSIVA. AMEAÇA. ARTIGO 147 DO CÓDIGO PENAL. PRESCRIÇÃO.

“Havendo momento legal próprio no procedimento sumaríssimo da Lei 9099/95 para o recebimento da denúncia, somente este tem o potencial jurídico para a interrupção da prescrição, no plano do direito material. Denúncia recebida antes de ser o réu citado e apresentar defesa prévia não observa o devido processo legal, conforme artigo 81 do citado diploma, não provocando, portanto, a interrupção do prazo prescricional. Este, no caso, foi interrompido na audiência, após citado o réu a apresentada defesa prévia. Preliminar de prescrição acolhida. Unânime.”[3]

Por outro lado, é necessário atentar para o que agora dispõe o inciso I, do artigo 156, do diploma processual, com a redação que lhe foi dada pela Lei 11.690, de 09 de junho de 2008:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:

I — ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;

Em que momento dar-se-á essa produção antecipada de provas? A questão mais uma vez exige interpretação sistemática: (1) referida providência não pode, decerto, acontecer em momento anterior ao oferecimento da denúncia ou queixa, sob pena de o juiz substituir-se à autoridade policial, o que soaria totalmente desconexo frente ao sistema que adotamos; (2) também não haveria qualquer lógica em que pudesse acontecer após o juízo de admissibilidade, porquanto, se fosse assim, não se cogitaria de produção antecipada de prova.

A conclusão que se impõe, portanto, é de que ao juiz é facultado dilatar a prova no intervalo que medeia entre o oferecimento da inicial acusatória e o juízo acerca de sua admissibilidade. E não se trata de novidade, pois é exatamente disso que cuida o parágrafo 5o, do artigo 55, da Lei 11.343 (Lei de Drogas), em vigência desde 2006; a inovação agora contida no inciso I, do artigo 156, consiste apenas em estender essa possibilidade a todos os procedimentos, o que impõe concluir que em todos eles terá de haver contraditório antecipado; e isto porque não haveria lógica em o juiz antecipar prova antes de ouvir a defesa, para o só efeito de uma possível rejeição liminar. Portanto, a faculdade que a lei entrega ao juiz consiste, fora de dúvida, possa, apresentados os argumentos da defesa, e considerando sua relevância relativamente às possibilidades de rejeição ou absolvição sumária, antecipar elementos de prova para, só depois, decidir sobre a admissibilidade da ação.


O contraditório antecipado e a irrelevância dos reflexos na prescrição

Os reclamos, que aqui e ali se fazem ouvir, de que um modelo de contraditório antecipado, em que o recebimento da denúncia ou queixa só aconteça após manifestação defensiva, ensejaria recrudescimento da prescrição; que a providência citatória pode demandar tempo significativo em alguns casos, o que retardaria o juízo de admissibilidade; decerto não podem ser tomados em conta de “argumentos” para a correta aferição do novo sistema. Em primeiro lugar, o eventual retardamento em face da citação, deslocando o marco interruptivo da prescrição para o futuro, tem duplo significado: (1) aumenta, é certo, o lapso temporal entre o fato e o recebimento da denúncia ou queixa; (2) em contrapartida, diminui o lapso entre o juízo de admissibilidade e a sentença condenatória recorrível; assim, tanto pode contribuir para a prescrição quanto para evitá-la. De outra parte, lembremos que a possibilidade de defesa preliminar, assegurada nos artigos 514 do diploma processual e 4º da Lei 8.038/90, igualmente reclama providência notificatória que pode retardar o juízo de admissibilidade, e nem por isso foi alguma vez questionada à luz da maior ou menor incidência de prescrição. Afora tudo isso, eventual aumento dos casos de prescrição, ainda que verdadeiro fosse, teria de ser visto como uma conseqüência do novo modelo, não nos parecendo razoável colacioná-lo a guisa de “fundamento” para interpretar a lei neste ou naquele sentido.

Também se escuta observações de que seria despropositado citar o acusado antes do recebimento da denúncia ou queixa. Em verdade, como já dissemos anteriormente, é necessário atentar para a redação do caput do artigo 363, introduzida pela reforma, não nos parecendo, diante dessa regra, existir qualquer obstáculo a que a citação aconteça antes da admissibilidade. Aliás, vale repetir que a Lei 5.250 (Lei de Imprensa), desde o distante ano de 1967 prevê a citação antes do recebimento da denúncia (artigo 43, § 1º), e não temos conhecimento de que a doutrina tenha alguma vez questionado esse dispositivo.

De outra parte, igualmente não prospera a alegação de que a admissibilidade deveria acontecer desde logo, pois que seria ilógico o juiz absolver sumariamente antes de receber a inicial. Mais uma vez o equívoco está em interpretar as novas regras tomando em conta o modelo anterior (revogado). À absolvição sumária contrapõe-se não à condenação, mas sim — e justamente — à admissibilidade da ação; tem-se, com isso, que a absolvição sumária (art. 397), tanto quanto a rejeição (art. 395), não só podem como devem acontecer justo no momento em que o juiz decide sobre o recebimento ou não da inicial.

Inconstitucionalidade parcial com redução de texto

Diante de tudo isso, mesmo que a expressão ‘recebê-la-á’, inscrita no artigo 396, por amor ao texto legal — que, segundo se diz, não contém palavras inúteis — fosse tomada ao pé da letra, isso configuraria violação ao modelo, descaracterizando-o pela contradição entre os dispositivos; verificar-se-ia, fosse assim, hipótese de inconstitucionalidade parcial, com redução de texto, devendo, segundo entendemos, ser suprimida a equivocada expressão “recebê-la-á”, que reconhecidamente vai de encontro, por inteiro, ao sistema que o novo diploma legal pretende implantar.

Não há dúvida de que uma norma será tanto pior quanto maior for o grau de dificuldade que impuser a seus intérpretes; não é menos certo, porém, que a leitura será tão pior quanto maior for o casuísmo incorporado ao propósito da exegese. A reforma recentemente introduzida ao processo penal brasileiro contém graves defeitos: aqui e ali foi mutilada pelos arranjos de ocasião, que são característicos da esfera política, e que, via de regra, pouco têm a ver com a técnica do direito; “importou” instituições do processo civil, como a citação por hora certa, desconsiderando o fato de o processo penal ser preso a princípios quase sempre incompatíveis com as cousas do direito privado. Tudo isso faz com que a aplicação do novo sistema constitua importante desafio aos operadores do direito, de quem se espera a cautela necessária, na busca de uma interpretação que dê harmonia ao texto e, acima de tudo, venha despovoada de preconceitos ou interesses meramente institucionais.

Diante desse conjunto de argumentos, acreditamos que o novo modelo é sim de contraditório antecipado, e que o recebimento da denúncia ou queixa, assim considerado o juízo de admissibilidade da ação, dar-se-á após a manifestação defensiva, ou seja, no segundo momento, aquele de que cuida o art. 399 do Código de Processo Penal com a redação que agora lhe foi dada. Reconheça-se que a controvérsia inicial sobre o tema guarda relação tão somente com o marco interruptivo da prescrição: não fosse esse “efeito” da admissibilidade e inexistiria relevância alguma em estabelecer qual o momento em que se dá o recebimento da denúncia ou queixa. O que nos parece necessário compreender — e defender — é que a reforma da legislação processual penal, por mais profunda que possa ter sido, não irá “derrogar” convicções há muito consolidadas, entre elas a de que recebimento da denúncia ou queixa, para que se erga à condição de causa interruptiva da prescrição, precisa ser tido como um equivalente ao juízo de admissibilidade.


[1] Bitencourt, Cezar Roberto; Código Penal Comentado, Saraiva, 3ª ed., 2005, p. 376.

[2] TJRS, Ap. 70023949704, 8a Câmara Criminal, j. em 25.06.2008.

[3] Turma Recursal Criminal, Poá-RS, Recurso Crime 71000962001.

Autores

  • Brave

    professor do programa de pós-graduação da PUC-RS (Mestrado e Doutorado), Doutor em Direito Penal, procurador de Justiça aposentado, advogado criminalista.

  • Brave

    advogado criminalista, promotor de Justiça aposentado do Ministério Público do Rio Grande do Sul. É também professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas (RS).

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