Carta maltratada

Entrevista: Celso Antônio Bandeira de Mello, advogado

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28 de setembro de 2008, 0h00

Celso Antônio Bandeira de Mello - por SpaccaSpacca" data-GUID="celso_antonio_bandeira_mello.png">O professor Celso Antônio Bandeira de Mello, estudioso e doutrinador reconhecido do Direito Administrativo, é um dos que mais aplaudiu a Constituição Federal de 1988 e também um dos que hoje mais chora as mudanças que ela sofreu. O texto aprovado pela constituinte traçava uma sociedade ideal e possível, sustenta o advogado, mas não atendia à tendência mundial: abertura dos mercados. Teve de se adaptar, então, para acompanhar o resto do mundo.

“A Constituição brasileira foi altamente desfigurada para atender interesses estrangeiros, e não nacionais”, afirma. Bandeira de Mello, que defende com ardor e paixão idéias tidas como de esquerda, se indigna, principalmente, às mudanças feitas no texto constitucional para que o país pudesse se abrir às multinacionais.

Celso Antônio Bandeira de Mello é parecerista freqüentemente citado nas decisões judiciais. Seu nome figura tanto nas decisões de juízes de primeira instância como em votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Lá no STF, Bandeira de Mello é reconhecido e circula bem, embora tenha seus atritos com um ministro ou outro. É um personagem político, que adora expor seus pontos de vistas e não teme polêmicas.

Após 20 anos sob a vigência da Constituição Federal, ele reconhece que o texto constitucional está à frente do seu tempo, “apesar de falhas terríveis”. Critica, no entanto, a idéia de que o Direito pode tudo, inclusive mudar realidades: “O Direito pode tudo no plano jurídico, mas não no plano da realidade fatídica. Ele apenas condiciona e tenta transformar essa realidade, mas ela tem sua própria força.”

O professor Celso Antônio Bandeira de Mello é um dos entrevistados pela revista Consultor Jurídico na série que discute a Constituição de 1988, sua importância e seus efeitos na sociedade.

Leia a entrevista

ConJur — A Constituição Federal equilibra a relação entre Estado e cidadão?

Celso Antonio Bandeira de Mello— Sim. Não é sem razão que ela é chamada de Constituição cidadã. Ela é altamente respeitadora dos direitos individuais e dos direitos sociais. Estabelece uma relação muito equilibrada entre Estado e cidadão, o suficiente para que garantir o interesse público e também para impedir abusos de poder.

ConJur — Essa relação equilibrada funciona na prática?

Bandeira de Mello— Não. No Brasil, há duas realidades diferentes: a daqueles que têm recursos financeiros e a daqueles que não têm. A relação com o Estado só é equilibrada para aqueles que têm.

ConJur — Por quê?

Bandeira de Mello— Por diversas razões. Uma delas é que o embate do cidadão é direto com a Polícia. Se em todo lugar do mundo a Polícia merece censura, aqui ela merece mais ainda. É arbitrária, preconceituosa e violenta. Não respeita os direitos do cidadão. Outra razão para o desequilíbrio é que os ricos podem mobilizar bons advogados e até os meios de comunicação em seu favor. Os pobres, não.

ConJur — A Constituição é responsável por esse desequilíbrio?

Bandeira de Mello— Não. Existe uma tendência disseminada em achar que o Direito pode tudo. Isso não é verdade. Ele pode tudo no plano jurídico, mas não no plano da realidade. Ele apenas condiciona e tenta transformar essa realidade, mas ela tem sua própria força. Enquanto o país for desenvolvido em culto preconceituoso, é muito difícil que as melhores regras jurídicas consigam o resultado integral. Por exemplo, a lei que proíbe a discriminação racial. Não há dúvidas de que ela produz frutos, mas a transformação de uma sociedade é um processo paulatino e muito lento. Só o tempo vai resolver uma série de desequilíbrios entre o Estado e o cidadão.

ConJur — Quem muda antes: a lei ou a sociedade?

Bandeira de Mello— As duas coisas se inter-relacionam. Quando a sociedade muda, os legisladores tendem a fazer leis de acordo com essas mudanças. Outras vezes, no entanto, independentemente de qualquer mudança, os legisladores tomam consciência da necessidade de mudar e fazem leis para induzir essa mudança.

ConJur — Quais as principais conquistas do cidadão com a Constituição de 1988?

Bandeira de Mello— A Constituição de 1988 tem méritos excepcionais e está à frente do seu tempo. Há conquistas grandes como o artigo 5º, que trata dos direitos individuais, e o 7º, sobre direitos sociais. Há ainda o artigo 3º, que diz que a República Federativa do Brasil tem que ser uma sociedade livre, justa e solidária. Bastam esses dispositivos para verificar a importância que a Constituição deu para a vida dos brasileiros. Mas não pára por aí. O artigo 170 estabelece que a ordem econômica e social tem por fim fazer Justiça social e, entre os princípios para isso, coloca a função social da propriedade e a expansão das oportunidades de emprego produtivo. O texto constitucional estabelece a primazia do trabalho sobre o capital, o que é uma proteção ao cidadão. Prevê também a possibilidade de desapropriação de imóvel que não é usado para cumprir sua função social. A Constituição de 1988 foi, no entanto, prejudicada com o fim do socialismo e o início da globalização.

ConJur — Por quê?

Bandeira de Mello— Com o fim da União Soviética, a força do capitalismo se impôs no mundo e os Estados Unidos, então, criaram o conceito de globalização, que não passa de jogada de marketing para que eles pudessem penetrar na economia de outros povos e difundir essa idéia quase ridícula de que o mercado se auto-regula e cria o bem-estar de toda a sociedade. Isso tudo é a antítese da Constituição Federal aprovada em 1988. Para que o Brasil pudesse se adaptar, durante o governo do Fernando Henrique Cardoso, foram feitas emendas constitucionais que desfiguraram a nossa Constituição para permitir que multinacionais invadissem a nossa economia, já que ela, originalmente, defendia os interesses nacionais. O texto constitucional estabelecia que a exploração do nosso subsolo era privativa de brasileiros, estabelecia o monopólio estatal do petróleo, das telecomunicações, entre outros. No primeiro ano de governo, o Fernando Henrique aprovou quatro emendas que acabaram com tudo isso e eliminaram a noção de empresa brasileira de capital nacional.

ConJur — A Constituição Federal aprovada em 1988 protegia mais o mercado nacional do que a Constituição Federal de hoje, que já sofreu 56 emendas?

Bandeira de Mello— Sim. A Constituição Federal só preservou um dispositivo que protege o mercado nacional. É aquele que diz que o mercado interno é patrimônio nacional. Reafirmo: a Constituição brasileira foi altamente desfigurada para atender interesses estrangeiros, e não os nacionais.

ConJur — O senhor é a favor de uma nova constituinte?

Bandeira de Mello— Não. Apesar das falhas terríveis, a Constituição Federal é muito boa. Por ter vindo em seguida a um período de autoritarismo, trouxe em seu bojo um espírito nacional de defesa da cidadania. É claro que mudanças são necessárias, mas elas podem ser feitas aos poucos.

ConJur — A Constituição Federal, da maneira que foi aprovada em 1988, desenha uma sociedade ideal?

Bandeira de Mello— Sim.

ConJur — Mas é uma sociedade possível?

Bandeira de Mello— É sim. Nos últimos anos, o Brasil tem passado por muita transformação. Saiu na imprensa outro dia que mais de 8 milhões de brasileiros passaram das classes D e E para a classe C. Isso é uma transformação que nunca existiu na história do Brasil. O que é preciso é uma presença estatal muito mais forte. Não sou a favor da socialização dos meios de produção, mas a favor da socialização do que é básico, como saúde e educação. Os serviços públicos básicos têm que estar na mão do Estado.

ConJur — Qual dos três poderes mais desrespeita a Constituição?

Bandeira de Mello— É impossível dizer isso porque o texto constitucional diz que são três poderes independentes e harmônicos entre si. Mas, a Constituição de 1988 deu muito mais poder ao Judiciário do que ele tinha no passado.

ConJur — O Supremo tem sido bastante criticado por querer garantir direitos fundamentais de quem a sociedade já taxa como criminoso?

Bandeira de Mello— Nesse episódio do Daniel Dantas, o ministro Gilmar Mendes agiu muito bem. Não é possível passar por cima de direitos e garantias individuais. A imprensa gosta de vender jornal e, quase sempre, toma o lado errado. A população, então, acredita ingenuamente que a imprensa serve para informar e dizer a verdade. Não é. Ela quer é ganhar dinheiro. É uma atividade empresarial como qualquer outra. Mas a nossa população, infelizmente, é bastante idiota ainda.

ConJur — É possível combater o crime sem atropelar os direitos constitucionais?

Bandeira de Mello— Sim. A maior parte dos países consegue isso. À medida que melhore o nível da população, a criminalidade vai cair. Outro fator que ajuda é a verdadeira responsabilização dos culpados. O criminoso não tem medo de praticar um crime se sabe que não vai ser punido.

ConJur — O discurso daqueles que defendem o grampo telefônico é o de que é a única maneira de investigar o crime organizado, cada vez mais sofisticado. Qual sua opinião sobre isso? Há abusos e excesso de autorizações judiciais para grampos infindáveis?

Bandeira de Mello— Alguns poucos juízes têm mentalidade de investigador de Polícia e, aí, tudo pode acontecer. Eu aceito o grampo telefônico, mas ele não pode ser regra. Os juízes precisam ser equilibrados ao autorizar escutas. Não dá para grampear todo mundo. É perfeitamente possível combater a criminalidade dentro da ordem jurídica.

ConJur — O Brasil tem motivo para comemorar os 20 anos da sua Constituição?

Bandeira de Mello— Tem. O país só viveu como a democracia mesmo sob o império da Constituição de 1988. Nesses 20 anos, não tivemos mais golpes. Por conseguir sobreviver sem golpes, a Constituição de 1988 é valiosa.

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