Técnica operacional

Regular uso de algema é como regular uso de bisturi pelo médico

Autor

  • Cezar Luiz Busto de Souza

    é Delegado de Polícia Federal especialista em Direito Penal e Processual Penal e um dos integrantes da comissão que elaborou o manual de gestão de planejamento operacional da Polícia Federal.

24 de setembro de 2008, 16h58

Nos últimos dias calorosos editoriais e reportagens vêm marcando as páginas dos mais respeitados órgãos da imprensa nacional. O assunto é a limitação à liberdade de imprensa a qual, segundo o entendimento de gabaritados jornalistas, estaria sendo obscuramente atacada, haja vista a possibilidade de jornalistas serem incriminados pelo fato de publicarem transcrições ou áudios de interceptações telefônicas legais.

Segundo a classe jornalística, também surgem ataques ao sigilo da fonte, o qual poderia ser relativizado em casos constitucionais, conforme opinião do ministro Nelson Jobim.

Tais posicionamentos se iniciaram com os ventos trazidos pelo desencadeamento da Operação Satiagraha, operação esta que, independentemente de seus nuances, tocou nos mais variados interesses, provocando reações emocionadas de integrantes de todos os poderes do Estado e da sociedade civil. Porém, infelizmente, tal momento emotivo parece estar influenciando na análise política e legislativa que definirá até onde a imprensa poderá ir na busca pela notícia.

É indiscutível o valor da imprensa no exercício da democracia, pois a sociedade que não tem acesso à informação é tolhida do conhecimento, revela-se carecedora de opções de escolha, fica à mercê da manipulação dos fatos, o que vem a prejudicar o exercício da democracia. A coletividade tem o direito de saber e o jornalista tem o dever de trazer à luz a notícia, checando as fontes, consultando os envolvidos, buscando a verdade, de forma que os leitores ou ouvintes recebam a notícia com fidelidade, franqueando-lhes a oportunidade de analisar os fatos e chegar às suas próprias conclusões.

Entretanto, o discurso atual coloca em risco esse privilégio democrático que a imprensa livre nos presenteia. Imaginem como ficaria a liberdade profissional do jornalista diante da possibilidade de responder a processo criminal, ou até mesmo sob a ameaça de prisão caso publicasse matéria com transcrição ou áudio de interceptações telefônicas. Pior ainda é a possibilidade de se obrigar o jornalista a revelar sua fonte. Certamente, seria um retrocesso, uma mordaça à imprensa, que vem desempenhando valoroso papel na mais recente história deste país.

Imaginem ainda a possibilidade da elaboração de uma súmula vinculante, “legislando” a respeito do tema, da mesma forma que “legislou” a respeito do uso de algemas, considerando como criminosa a conduta do jornalista que venha a publicar trechos de interceptações telefônicas, obrigando tal profissional a revelar sua fonte.

Acredito que seria um caos, um demérito a toda classe jornalística, uma limitação absurda a uma de suas principais ferramentas de trabalho.

Pois bem, guardadas as devidas proporções, é irresistível a comparação desta ainda mera ameaça à liberdade de imprensa com o ataque que os órgãos policiais vêm sofrendo atualmente.

Da mesma maneira que a imprensa alcançou maior liberdade, autonomia e credibilidade perante a sociedade, não se pode negar que também houve avanço da qualidade das ações investigativas que a Polícia Federal vem realizando, com sensíveis melhorias na qualidade das investigações, alcançando de forma eficaz provas contra pessoas de todos os níveis sociais, econômicos e de poder. E tais avanços não se limitam apenas à Polícia Federal. Polícias Civis dos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, dentre outras, vêm realizando importantes ações de combate à criminalidade organizada atuante no tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, corrupção, seqüestro, enfim, uma gama de delitos de elevado potencial ofensivo estão sendo atacados com as melhores ferramentas legalmente deferidas aos órgãos policiais.

No entanto, recentes normas e decisões judiciais estão explodindo a cada dia, colocando em risco investigações policiais lícitas, autorizadas e fiscalizadas pelos órgãos competentes, colocando-as no mesmo nível de ações de natureza espúria, ilegítimas, as quais são veementemente rechaçadas pelos órgãos policiais.

Exemplifiquemos alguns casos que se tornaram públicos nos últimos dias, primeiramente o caso Sundown.

Decisão inédita do Superior Tribunal de Justiça considerou ilegal a interceptação telefônica com prazo superior a trinta dias, tendo em vista terem sido prorrogadas sem justificativas razoáveis.

No outro lado, nota oficial dos procuradores da República que atuaram no caso ressalta que os dois anos de investigação apuraram o cometimento de 245 crimes, sonegação fiscal no montante de 70 milhões, evasão de 21 milhões de reais para o exterior, dentre outras graves ilicitudes. Segundo a Procuradoria da República, da decisão do STJ não cabe recurso.

Não poderia deixar de comentar também a respeito da Súmula Vinculante 11, aprovada pelo Supremo Tribunal Federal em agosto deste ano, que limita o uso de algemas. Segundo a mencionada súmula, somente poderá ser algemado o preso que oferecer resistência ou colocar em perigo o policial ou outras pessoas no momento da prisão. O policial que não apresentar justificativa por escrito quanto à excepcionalidade do uso de algemas estará sujeito a ser responsabilizado nas esferas disciplinar, cível e penal, colocando em risco a validade da prisão ou do ato processual relacionado ao fato.

Os dois casos acima se mostram emblemáticos. Ambos denotam forte restrição à utilização de importantes ferramentas de trabalho disponíveis aos agentes do Estado para enfrentamento à criminalidade e garantia de sua segurança e de terceiros.

Restringir a interceptação telefônica ao prazo de trinta dias para investigações de crimes complexos, como o caso Sundown, é uma visão dissociada da realidade. É a concessão de Habeas Corpus preventivo à criminalidade organizada. Mutatis mutandis é como se fosse restringir a utilização da fonte jornalística pelo prazo de trinta dias, ou ainda obrigar o jornalista a revelá-la por força de ordem judicial.

O mesmo se pode falar a respeito da restrição do uso de algemas. Inicialmente cabe esclarecer que o uso de algemas nada tem a ver com aplicação ou antecipação de pena. A algema nada mais é do que uma ferramenta de trabalho policial, que tem o simples objetivo de resguardar a segurança da equipe policial, de terceiros e do próprio sujeito passivo da ordem de prisão, seja ela em flagrante ou processual. Para o policial, usar algema é como se fosse acionar a sirene da viatura para atendimento de uma emergência policial; é como se fosse utilizar o colete balístico durante ação policial. Pode se equiparar o uso de algema ao uso do cinto de segurança para o motorista. Não há qualquer viés para humilhação do preso, ou agredir sua dignidade, a utilização de tal instrumento é mera técnica operacional destinada à preservação da segurança e integridade física de todos envolvidos na diligência policial.

Regulamentar o uso de algema é como regulamentar o uso do bisturi pelos médicos, o emprego do martelo para o carpinteiro ou ainda o uso da fonte para o jornalista. Somente o profissional capacitado detém o conhecimento para interpretar se o uso de tal equipamento é necessário para aquela circunstância. Todavia, quando se trata da preservação da segurança de policiais, terceiros e suspeitos, a regra há de ser rígida, pois não há como transigir com a segurança de pessoas. Por outro lado, a utilização de algema com o objetivo de expor a figura do preso ou colocá-lo em situação vexatória é conduta reprovável, que malfere a dignidade humana, conduta esta merecedora de reprimenda após o devido processo legal. Aliás, toda conduta profissional reprovável está sujeita a reprimenda, e isso não é novidade jurídica, trata-se de mera aplicação da legislação vigente.

O uso de algema não traz seqüela física ou psicológica ao sujeito passivo da medida, mesmo porque é menos gravosa do que a manutenção do suspeito preso em uma cela por horas, dias, semanas, afastado do convívio familiar, sem contato com o mundo exterior. No entanto, a ausência do seu uso pode provocar situações indesejáveis que a sociedade não precisa suportar, tal qual a hipótese de reação de um preso que, sem algema, reage à ação policial e vem a alvejar terceiro, ou ainda vem a ser alvejado, chegando a óbito.

Perdoe-me a dramaticidade, mas tal situação não se trata de mera conjectura. Exemplo clássico e recente ocorreu em março de 2005, no Condado norte americano de Fulton, Atlanta, ocasião em que o juiz Rowland Barnes, sua estenógrafa Julie Brandau e um policial foram assassinados minutos antes do julgamento de Brian Nichols o qual, sem algemas, conseguiu retirar a arma do policial que o escoltava e alvejá-los. Uma quarta pessoa foi baleada na cabeça e foi internada em estado grave. Na seqüência, Brian Nichols ainda tentou roubar o carro de um jornalista do principal jornal de Atlanta, que resistiu e foi agredido pelo suspeito1.

O evento acima trazido, não obstante ter sido mencionado alhures, já se mostra alarmante e não se trata do único. Praticamente em todos fóruns há histórias que relatam casos de fuga de presos com e sem algemas durante, antes e após audiências, colocando em risco a integridade física de promotores, magistrados, escrivães, advogados e terceiros.

Não se pode esquecer que apesar da ausência de intenção da equipe policial em expor a figura do preso algemado, a imprensa, cumprindo seu papel na busca da notícia, obtém êxito em capturar a imagem de pessoa algemada. Em razão disso deveríamos editar uma norma ou súmula que proibisse a imprensa a expor a figura de pessoas algemadas?

Limitar a utilização de legítimas ferramentas de trabalho da imprensa ou dos órgãos policiais é medida limitadora dos poderes da sociedade, vindo a atender somente a interesses de uma minoria obscura, que não pode prevalecer sobre interesses maiores da sociedade, da democracia, da liberdade e segurança profissional.

Nota de rodapé

1. Fonte: http://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2005/03/11/ult34u120349.jhtm

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