Intercâmbio e cooperação

Não é possível conceber democracia sem jurisdição constitucional

Autor

23 de setembro de 2008, 10h52

A idéia de jurisdição constitucional nasceu no ambiente jurídico-cultural anglo-americano. Desde a decisão de Sir Edward Coke no famoso Bonham’s case, passando pelos Federalist Papers, até o marco representado pelo caso Marbury vs. Madison, consagrou-se historicamente um fascinante modelo de fiscalização e controle jurídico dos atos políticos que talvez seja a experiência institucional mais influente e difundida em todo o mundo.

No contexto europeu-continental, no qual se desenvolveu inicialmente uma espécie de controle essencialmente político das atividades parlamentares, tal como previsto nas primeiras constituições francesas, a idéia de supremacia constitucional acabou se consolidando e o debate entre Kelsen e Schmitt sobre “quem deveria ser o defensor ou guardião da Constituição” recebeu respostas institucionais bastante claras com a criação e difusão dos Tribunais Constitucionais, conformando um modelo tipicamente europeu de controle em abstrato de constitucionalidade. Assim como a judicial review norte-americana, esse modelo europeu é um sucesso de exportação jurídica.

Não obstante, ainda que a primeira idéia de garantia jurisdicional da Constituição tenha nascido nos Estados Unidos, os demais países do continente americano nunca foram meros sujeitos passivos das técnicas de fiscalização da constitucionalidade criadas nos contextos anglo-americano e europeu-continental. Ao contrário, apesar de tal fato ser desconhecido mundo afora, a América Latina, com a heterogeneidade e pluralidade que lhe é peculiar, sempre foi — e ainda o é — um verdadeiro “laboratório constitucional” (Fernández Segado) no tocante às técnicas de controle de constitucionalidade das leis e demais atos de poder.

A recepção latino-americana da judicial review ocorreu num ambiente extremamente criativo — proporcionado principalmente pela confluência do sistema de common law com as tradições romano-germânicas sobre as quais estão fundadas as culturas jurídicas hispânica e lusitana —, capaz de gerar instrumentos originais (e eficazes) de garantia processual de direitos, como o juicio de amparo mexicano e o mandado de segurança brasileiro, o que acabou revelando a estreita conexão entre o controle de constitucionalidade e a proteção dos direitos fundamentais como característica marcante dos modelos latino-americanos de jurisdição constitucional.

A originalidade e heterogeneidade latino-americanas em tema de jurisdição constitucional têm despertado, nos últimos anos, um ambiente de intenso intercâmbio de culturas constitucionais entre os países da região.

Anualmente, magistrados das Cortes, Tribunais e Salas Constitucionais dos países ibero-americanos se reúnem no âmbito da Conferência Ibero-americana de Justiça Constitucional (CIJC) para debater temas atuais e compartilhar problemas comuns em matéria de jurisdição constitucional e proteção dos direitos fundamentais. A CIJC tem por objetivos: a) preservar e potencializar a independência e a imparcialidade dos Tribunais, Cortes e Salas Constitucionais, bem como dos seus membros; b) favorecer uma relação estreita, contínua e fluida entre os órgãos de justiça constitucional dos países ibero-americanos; c) fomentar o intercâmbio de informação e a cooperação para consolidar a Comunidade Ibero-americana de Justiça Constitucional; d) promover a criação de redes para a gestão do conhecimento e intercâmbio de experiências; e) impulsionar programas de formação; f) apoiar o desenvolvimento de políticas que tendam a facilitar o acesso à justiça constitucional; g) promover a realização e a publicação de estudos com interesse para os sistemas de justiça constitucional ibero-americanos.

Os recentes encontros em Sevilha-Espanha (2005), Santiago-Chile (2006) e Cartagena de Índias-Colômbia (2007) proporcionaram a formação e consolidação de um verdadeiro foro de diálogo, reflexão e colaboração que cada vez mais reforça os laços de cooperação entre os diversos órgãos de jurisdição constitucional.

Esse clima de profícua troca de informações e compartilhamento de experiências entre diversos países ibero-americanos também propiciou a recente criação e consolidação dos estatutos da Rede Ibero-americana de Assessores Constitucionais. Formada por assessores, letrados e magistrados auxiliares dos Tribunais, Cortes e Salas Constitucionais que compõem a CIJC, a Rede Ibero-americana de Assessores Constitucionais foi constituída no encontro de Lima-Peru (2007) e teve seus estatutos confeccionados e aprovados no âmbito do encontro da CIJC realizado em Buenos Aires, nos últimos dias 17, 18 e 19 de junho de 2008.

A Rede de Assessores tem por objetivos: a) reforçar e potencializar institucionalmente a função que os assessores constitucionais cumprem atualmente no âmbito dos Tribunais, Cortes e Salas Constitucionais, em seu labor de assessoramento dos magistrados constitucionais; b) a colaboração jurídica e profissional entre seus membros; c) o intercâmbio de conhecimentos e experiências em matéria de justiça constitucional; d) a realização de foros de discussão jurídica e a organização de encontros e seminários; e) a produção de publicações científicas, dentre outros.

A paulatina consecução dos objetivos traçados pela Conferência Ibero-americana de Justiça Constitucional (CIJC) e pela Rede de Assessores Constitucionais já permite vislumbrar a consolidação de uma Comunidade Ibero-americana de Justiça Constitucional.

A intensificação dos processos de intercâmbio e cooperação internacional entre órgãos de jurisdição constitucional é também sintomática da difusão dos sistemas de controle de constitucionalidade em diversos países, principalmente em democracias incipientes da Europa Oriental, Ásia, África, além da própria América Latina.

A Conferência Européia de Cortes Constitucionais, criada em 1972 pela união de apenas quatro países — Alemanha, Áustria, Itália e Iugoslávia —, à época dotados de modelos de jurisdição constitucional, já é composta atualmente por 39 membros. O vertiginoso crescimento do número de participantes é resultado da adesão dos países da Europa Oriental que, após as transições de regime político da década de 1990, incorporaram sistemas de controle judicial de constitucionalidade como mecanismos de proteção de seus recém adotados modelos de organização política.

Também as Cortes e Tribunais Constitucionais dos países asiáticos, tais como Japão, Coréia, Tailândia, Vietnã, Indonésia, Filipinas, Camboja, Mongólia realizam encontros periódicos no âmbito da “Conferência de Juízes das Cortes Constitucionais Asiáticas”.

Os laços de cooperação também são encontrados no âmbito da Associação de Cortes Constitucionais de Língua Francesa, da Conferência de Órgãos de Controle Constitucional de Países com Democracias Jovens, da Comissão de Juízes do Sul da África, da União Árabe de Cortes e Conselhos Constitucionais e da Comissão de Veneza.

A África do Sul, cuja história recente (pós-regime de apartheid) demonstra que a jurisdição constitucional pode ser o produto de um processo de democratização, em breve (23 e 24 de janeiro de 2009) sediará, por sua Corte Constitucional, a primeira Conferência Mundial de Justiça Constitucional, a qual reunirá todas as citadas conferências, além de outros países.

A difusão e consolidação de sistemas de controle de constitucionalidade em novas democracias e o vertiginoso desenvolvimento dos processos de intercâmbio e cooperação entre os diversos órgãos de jurisdição constitucional é um dado fático que merece atenção especial.

A jurisdição constitucional nasceu e se desenvolveu sob as críticas ao seu caráter contra-majoritário ou antidemocrático. Hoje, nesses países, não é possível conceber a democracia sem jurisdição constitucional.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!