Questão infraconstitucional

STJ é quem deve decidir sobre Cofins para sociedades profissionais

Autor

  • Kiyoshi Harada

    é jurista presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (Ibedaft) e ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

22 de setembro de 2008, 0h00

Ao julgar o RE 377.457-PR, relator ministro Gilmar Mendes, a Corte Suprema, por maioria de votos, negou provimento ao recurso do contribuinte, na mesma linha do decidido, anteriormente, no RE 419.629-DF.

Na questão do efeito prospectivo, o julgamento ficou empatado. Como a lei prevê necessidade de dois terços dos votos, para aplicação desse efeito, assim que a decisão transitar em julgado legitimará o fisco a exigir o tributo desde o advento da Lei 9.430/96, ressalvado o prazo decadencial de cinco anos, objeto de Súmula Vinculante 8 do STF.

Ao contrário do que ocorreu no julgamento do RE 419.629-DF, no julgamento do dia 17/9/2008 não houve deliberação no sentido de remeter os autos ao Superior Tribunal de Justiça para exame de questões infraconstitucionais, porque o próprio STJ havida remetido ao colendo STF, que entendeu haver, no caso, questão prejudicial (artigo 543, parágrafo 2º do CPC).

Esse assunto pode estar encerrado para as partes do processo em tela, mas, para a generalidade das sociedades de prestação de serviços legalmente regulamentadas, a matéria está longe de ser pacificada, a menos que o STJ resolva abrir mão de sua prerrogativa de dizer a última palavra em matéria infraconstitucional.

Na realidade, a questão pertinente ao debate do tema sequer foi suscitado perante o tribunal competente, o STJ. Além disso, pende de julgamento a Adin 4.071 ajuizada pelo PSDB, na qual, são sustentadas questões constitucionais não ventiladas naqueles dois RREE retro citados.

Diga-se a bem da verdade que, tanto neste caso, como naquele outro julgado em 2007 não há questão constitucional a ser dirimida pela Corte Suprema.

Com efeito, a Fazenda em nenhum momento argüiu a inconstitucionalidade da LC 70/91 por excesso de quorum e nem o poderia; do contrário, a cobrança da Cofins ficaria sem base legal. Por outro lado, em tempo algum, o contribuinte alegou a violação do parágrafo 6º, do artigo 150 da CF, que exige a formalidade de lei específica para outorgar isenção de impostos, taxas e contribuições sociais, e por conseguinte, para revogar a isenção assim concedida. Tampouco, foi ventilada nos dois processos retro mencionados a questão da eventual aplicação do artigo 146-A da CF, que faculta à lei complementar estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência.

Como se vê, não havia no bojo do RE 377.457-PR, julgado em 17/9, matéria constitucional, nem no RE 419.629-DF, acertadamente, remetido ao STJ para prosseguir no exame da matéria infraconstitucional.

Examinemos, pois, esta matéria exclusivamente sob o prisma da legislação infraconstitucional para dar a correta solução à controvérsia quanto à subsistência ou não da isenção da Cofins em relação às sociedades de profissionais liberais.

Existe, na verdade, um conflito de leis infraconstitucionais. De um lado, a LC 7 que instituiu a COFINS e concedeu isenção às sociedades de profissionais legalmente regulamentadas. De outro lado, a Lei 9.430/96 que teria revogado a isenção dada pela primeira lei.

Ora, esse tipo de conflito resolve-se pela aplicação de normas de direito intertemporal, cuja competência é privativa do STJ. Uma lei só pode ser revogada por outra que tenha obedecido o mesmo processo legislativo.

De fato, conforme o artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, de 1942, “não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”. Qual outra lei? Só pode ser aquela que obedecer ao mesmo processo legislativo. Logo, irrelevante saber se a Lei Complementar 70/91 é apenas formalmente complementar.

Como se sabe, a lei complementar, a ser aprovada por maioria absoluta, só foi introduzida no nosso ordenamento jurídico pela Emenda 18/65 incorporando-se, desde então, sucessivamente, às Constituições de 1967-68 e 1988 sendo necessário, pois, proceder-se a leitura atualizada do citado artigo 2º da LICC, anterior a sua criação.

E mais, se a LC 70/91 é, materialmente, uma lei ordinária, pergunta-se, ela é uma lei ordinária geral, ou lei ordinária especial?

A resposta é óbvia: a LC 70/91 veio à luz apenas para instituir a Cofins e, ao mesmo tempo, prescrever a isenção das sociedades de profissionais liberais, equiparadas às pessoas físicas, que não se sujeitam a Cofins. É lei específica que tratou, desde logo, de prever a isenção das sociedades de profissionais liberais, porque a Cofins é contribuição própria de empresas em geral. Um médico que presta serviço por meio de sociedade de médicos é equiparado à pessoa física do médico, que presta o mesmo serviço.

Agora, pergunta-se, a Lei 9.430/96, cujo artigo 56 teria revogado a isenção dada pela LC 70/91, é genérica ou específica? Tratando de matérias diversas, como IR, IPI e Cofins a Lei 9.430/96 só pode ser uma lei ordinária geral.

Ora, é princípio geral de Direito que uma lei genérica não revoga a lei especial que, exatamente em função da especificidade da matéria disciplinada não é alcançada pela lei geral.

De fato, dispõe do parágrafo 2º, do artigo 2º da LICC:

“A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica lei anterior”.

Aliás, em matéria tributária, esse princípio geral foi incorporado, expressamente, no artigo 150, parágrafo 6º da Constituição: “Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no artigo 155, parágrafo 2º, XII, 8”. É o chamado princípio da especialidade das isenções.

Logo, se a isenção da Cofins só pode ser instituída por lei específica que regule essa contribuição, e não outros tributos, segue-se que a sua revogação só pode ocorrer por meio de lei específica e não de lei ordinária geral, como a Lei 9.430/96 que cuida também do IPI e do Imposto de Renda.

O STJ pode e deve examinar essa questão da revogação da lei especial por lei geral no plano infraconstitucional, baseado no princípio geral de Direito, sem necessidade de invocação do artigo 150, parágrafo 6º da CF, hipótese em que deslocaria a competência para a Corte Suprema.

É preciso que o Tribunal da Cidadania deixe a sua postura subserviente e exerça em sua plenitude a competência que lhe conferiu a Constituição com exclusividade em matéria de conflitos de leis infraconstitucionais (artigo 105, III, a, da CF). No caso, está sendo negada vigência ao artigo 6º, II da LC 70/91, que instituiu a isenção da Cofins.

Por derradeiro, consigne-se que toda essa confusão iniciou-se com a invocação da Súmula 276 do STJ por parte de contribuintes que impugnavam a cobrança da Cofins sob a eiva de inconstitucionalidade.

Ora, a Súmula 276 do STJ não versa sobre matéria constitucional e nem o poderia. Prescreve apenas que “as sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado”.

Essa Súmula veio à luz, porque, após o advento da Lei 9.430/96, a Fazenda Nacional passou a sustentar que somente os optantes pelo regime de apuração do imposto de renda pelo regime de lucro real fariam jus à isenção. A partir do momento que a Fazenda abandonou essa tese, porque sumulada em sentido contrário, para passar a sustentar a natureza meramente formal da LC 70/91 a ensejar revogação por lei ordinária da isenção concedida por aquela lei, os contribuinte não poderiam mais continuar utilizando apenas a Súmula 276 como seu escudo protetor.

Há que se sustentar que a isenção reconhecida pela Súmula 276 perdurará até que lei especial venha revogar a isenção outorgada por lei específica, ou então, até que nova lei, que tenha observado o mesmo processo legislativo venha dispor em sentido contrário à isenção dada pela LC 70/91.

Não é admissível o posicionamento da Fazenda, que extrai a validade da LC 70/91 apenas na parte que lhe convém, e nega vigência naquilo que não lhe convém.

Os contribuintes devem continuar sustentando a vigência da isenção concedida pela LC 70/91, quer por via do Mandado de Segurança, quer por via de ação ordinária com tutela antecipatória, porque a verdadeira questão envolvida nessa discussão, travada ao longo do tempo, até hoje, não foi apreciada pelo STJ, porque ninguém a suscitou. Repita-se, a solução da controvérsia em torno do conflito de leis infraconstitucionais no tempo é matéria de competência exclusiva do STJ.

Autores

  • é professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário, conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo, ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo. Site: www.haradaadvogados.com.br

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