Veredas da censura

Justiça proíbe venda de biografia de Guimarães Rosa

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20 de setembro de 2008, 0h00

A LGE Editora foi condenada a retirar do mercado o livro Sinfonia de Minas Gerais — A vida e a literatura de João Guimarães Rosa, de Alaor Barbosa. A decisão é do juiz Marcelo Almeida de Moraes Marinho, da 24ª Vara Cível do Rio de Janeiro. Para o juiz, a venda do livro causará lesão aos direitos da personalidade de Vilma Guimarães Rosa, filha do escritor, e da Editora Nova Fronteira. Ele considerou também que o livro de Barbosa contém informações erradas sobre o escritor e que a publicação ocorreu sem a autorização de Vilma, que é a responsável pelos direitos de natureza civil de Guimarães Rosa, por ser filha dele.

Entre os argumentos da filha para pedir a proibição da venda do livro está a afirmação de Alaor Barbosa de que Guimarães Rosa considerava a Língua Portuguesa “inferior”. Para Vilma, a afirmação não faz sentido, já que a Língua Portuguesa era a maior “paixão, amante e companheira” de seu pai, segundo escreveu o próprio escritor na “Carta de Guimarães Rosa a João Condé revelando segredos de Sagarana”, incluída no livro Sagarana. Na carta, anotou Guimarães: “de certo que eu amava a língua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas como a bela amante e companheira”.

A filha do escritor considera que “o leitor atraído por uma biografia de João Guimarães Rosa certamente não tem interesse algum nos longos relatos de Alaor Barbosa sobre suas viagens pelo estado de Minas Gerais, nem muito menos aos elogios que João Guimarães Rosa supostamente dirigiu a Alaor Barbosa, aos quais Sinfonia de Minas Gerais — A vida e a literatura de João Guimarães Rosa dá bastante ênfase”.

Quanto aos direitos autorais, a Editora Nova Fronteira e Vilma Guimarães Rosa defendem que o artigo 29 da Lei de Direitos Autorais afirma que “depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como: reprodução parcial ou integral”.

“O prejuízo aos direitos autorais de Vilma Guimarães Rosa é indiscutível, já que grande parte de Relembramentos foi transcrita no livro Sinfonia de Minas Gerais — A vida e a literatura de João Guimarães Rosa, precisamente no momento em que sua obra está sendo relançada pela Editora Nova Fronteira. É evidente que a inserção de 103 trechos relevantes de uma obra literária, em uma outra obra, sem autorização ou mesmo consulta a seu autor e editor, prejudica o lançamento da obra original”, sustenta a defesa da editora e da filha do autor. “A posição da jurisprudência é unânime ao considerar indispensável a autorização do titular de direitos autorais para inserir em obra nova trechos de obras pré-existentes”, completa.

Direito de família

A advogada de Vilma, Susana Paola Barbagelata Kleber, defende que não há censura. O que se pretende é mostrar que a biografia não está à altura de Guimarães Rosa. “A família, na qualidade de única responsável por zelar pela sua memória, deve ser consultada sobre qualquer utilização de sua imagem, nome e dados biográficos, com o objetivo de evitar abusos”, alega.

O argumento tem como base o artigo 20 do Código Civil. Segundo essa regra, “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”.

“A família de João Guimarães Rosa vem zelando com afinco pela preservação de sua imagem e de sua obra, desde a sua morte, evitando, assim, que abusos fossem cometidos, causando danos quiçá irreparáveis à imagem deixada pelo respeitado escritor”, sustenta.

Os argumentos foram acolhidos pelo juiz Marcelo Almeida de Moraes Marinho. “O receio de dano irreparável ou de difícil reparação é patente na medida em que a comercialização do livro poderá causar lesão a direito da personalidade das autoras”, entendeu. O juiz concedeu tutela de urgência para determinar a retirada do mercado dos exemplares do livro em 24h sob pena de multa diária de R$ 1 mil.

Voz da defesa

Daniel Campello Queiroz e Ian Santos, advogados da LGE Editora e do escritor, recorreram. Um dos argumentos é de que, conforme a Lei de Direitos Autorais, não constitui ofensa aos direitos autorais a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra.

“Trata-se de uma ação que tem, por trás, um intuito comercial das autoras. A filha de Guimarães Rosa acaba de relançar, pela editora co-autora da ação, um livro sobre o escritor, que não é uma biografia, e sim a reprodução de algumas cartas trocadas entre ela e o escritor. Em virtude desse relançamento, a que a própria autora faz menção na petição inicial como tendo sido alvo de pesados investimentos da Editora, as duas vêm agora pretender tirar de circulação uma obra que foi lançada no final do ano passado”, disse o advogado Daniel Campello Queiroz à revista Consultor Jurídico.

“As autoras, sobretudo a filha do escritor, tentam impedir que haja outra obra sobre seu pai, como se a memória e a vida do escritor Guimarães Rosa fosse de sua propriedade, em virtude do parentesco”, observa Campello Queiroz.

O advogado defende que o “Judiciário não pode estar franqueado a favorecer quem, com intuito puramente comercial, tenta tirar de circulação uma obra literária, em patente confronto à Constituição da República, notadamente ao direito à informação e à liberdade de expressão. Houve provimento do pedido de Tutela Antecipada; mas agravamos da decisão, e esperamos revertê-la, não em favor da Editora LGE ou do Alaor, e sim pelo bem da cultura nacional e do bom direito.”

Precedentes

No ano de 2007, o cantor Roberto Carlos conseguiu que a Justiça do Rio de Janeiro mandasse retirar a biografia Roberto Carlos em Detalhes de todas as livrarias do país. O juiz Maurício Chaves de Souza Lima, da 20ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, entendeu que a Constituição Federal dispõe que são invioláveis a intimidade, a vida privada e a imagem das pessoas. A sentença se baseou no artigo 5º, inciso X, da Constituição. Um pedido semelhante feito pelo advogado do rei tinha sido negado pelo juiz da 20ª Vara do Fórum Criminal de São Paulo.

“A biografia de uma pessoa narra fatos pessoais, íntimos que se relacionam com o seu nome, imagem e intimidade e outros aspectos dos direitos da personalidade. Portanto, para que terceiro possa publicá-la, necessário é que obtenha a prévia autorização do biografado”, justificou o juiz.

A obra escrita pelo historiador Paulo Cesar de Araújo foi publicada sem autorização do cantor. Roberto Carlos disse que leu apenas trechos do livro, o que foi suficiente para que ele condenasse toda a obra. Ele declarou que se sentiu ofendido e concluiu que houve invasão de privacidade com a divulgação de histórias sobre a sua vida. Roberto Carlos em Detalhes conta a trajetória do cantor, sem omitir fatos dolorosos como a amputação de parte de uma perna, sua relação com a atriz Myriam Rios e a morte de Maria Rita, sua última mulher.

Dois meses depois da decisão judicial da Justiça fluminense, a Editora Planeta e Araújo cederam a todas as exigências do cantor e se comprometeram a não mais publicar a biografia. O acordo judicial foi fechado em audiência presidida pelo juiz Tercio Pires, titular da 20ª Vara Criminal de São Paulo.

Em maio desse ano, a Justiça do Rio negou o pedido do cantor para que ele recebesse indenização por danos morais do escritor Paulo César de Araújo. A decisão foi tomada pela juíza Márcia Cristina Cardoso de Barros, da 20ª Vara Cível do Rio de Janeiro.

O escritor Fernando Moraes também já foi alvo desse tipo de ação. A venda do livro Na Toca dos Leões — a história da W/Brasil foi proibida em 2005. O pedido foi feito à Justiça de Goiás pelo médico e produtor rural Ronaldo Caiado. O livro, que conta a história da agência de publicidade W/Brasil, atribui a Caiado quando foi candidato a presidente da República em 1989, a infeliz idéia de enfrentar o problema da superpopulação e da pobreza no Nordeste mandando esterilizar as mulheres da região. Caiado argumentou que não foi ouvido por Fernando Morais e que a afirmação feita pelo publicitário “foi muito grave e denegriu sua honra”. Depois de indas e vindas na Justiça, o livro foi final e definitivamente liberado pelo Tribunal de Justiça de Goiás, em 2005.

Em janeiro desse ano, o juiz da 41ª Vara Cível de São Paulo negou o pedido de liminar para impedir a circulação do livro O Súdito — Banzai, Massateru!, indicado como finalista do Prêmio Jabuti 2007. O livro foi escrito pelo jornalista Jorge J. Okubaro.

A acusação foi de ofensa à honra de Seijin Kakazu, um dos personagens do livro. Segundo seus familiares, a honra foi “o bem mais precioso que deixou como legado a seus sucessores”. O Súdito conta a saga da imigração japonesa para o Brasil através da história de um desses imigrantes, Massateru Hokubaru, pai do autor, o jornalista Jorge Okubaro. O livro resgata também a história da Shindo Remei, a seita de fanáticos japoneses no Brasil que rejeitava a possibilidade da derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial mesmo depois da rendição.

A história das duas famílias se cruza quando Seijin Kakazu se casa com Usaaguwaa, que era sobrinha de Fussako,a mulher de Massateru. Ao descobrir que não era o pai dos três filhos de sua mulher, Seijin a abandonou, levando apenas o mais velho consigo. Usaaguwaa, com os dois menores, foi então morar na casa da tia Fussako. Massateru colocou a nova moradora da casa junto com os dois filhos no único cômodo disponível, um quarto nos fundos, onde já moravam dois outros trabalhadores da pequena propriedade rural da família.

Formou-se então um triângulo amoroso entre Ussaguwaa e os dois trabalhadores, que terminou de maneira trágica no dia em que um dos amantes matou o rival e a mulher. A família Hokubaru decidiu adotar as duas meninas, mas proibiu-as de, a partir daquele momento, voltarem a usar o antigo sobrenome: Kakazu.

Os outros descentendens de Seijin Kakazu não só continuaram usando seu sobrenome como pediram indenização pela publicação do livro sem a sua autorização e pelas “inverdades” relatadas na obra. Os Kakazu dizem que nunca conversaram com o autor sobre os fatos narrados e contestam o fato de que a história possa ter sido contada através de depoimentos de pessoas que não conviveram com o seu pai na época. Para Jorge Okubaro, autor do livro, o processo ajuizado pelos filhos só revela o inconformismo por não terem sido mencionados no livro.

Como no caso do livro sobre Guimarães Rosa, todos esses casos revelam o risco que correm os autores de biografias não autorizadas. Sempre pode aparecer alguém reclamando direitos sobre a memória do biografado que prefira uma outra versão dos fatos relatados na obra. A Justiça não firmou ainda posição na matéria e nem definiu o limite entre o que é direito a privacidade e o direito à informação sobre a vida de pessoas de notória projeção pública. No caso da disputa entre Vilma Guimarães Rosa e Alaor Barbosa há um segundo complicador que é a citação extensiva de trechos de uma obra em outra.

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