Crime de opinião

Ação no CNMP contra procurador Kleber Couto é retrocesso

Autor

  • Luís Guilherme Vieira

    é advogado e cofundador e conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e da Sacerj (Associação dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro).

18 de setembro de 2008, 14h56

Conheço, há mais de cinco lustros, o procurador de Justiça (RJ) Kleber Couto Pinto, e, ainda que não o conhecesse e não nutrisse, como nutro, grande respeito e admiração por sua forma de ser, agir e pensar, o meu radical posicionamento contrário ao conteúdo de seu artigo em nada seria abalado. Em síntese: as premissas maiores de seu articulado estão incorretas; logo, a conclusão do silogismo é falsa.

De antemão, aviso que, junto com centenas de outros advogados, subscrevi nota de apoio ao ministro Gilmar Mendes, por entender que Sua Excelência, no exercício da presidência do Supremo Tribunal Federal, se houve muitíssimo bem no episódio acontecido com o senhor Daniel Dantas (aliás, não só ele, mas o ministro Eros Grau também).

Diz a nota de apoio que ora reforço: as “manifestações de entidades profissionais divulgadas através da mídia (…) deveriam demonstrar seu inconformismo na forma prevista pelas leis de processo e não com ataques públicos ao chefe do Poder Judiciário brasileiro. As instituições democráticas brasileiras, salvo nos casos excepcionais previstos e delimitados pela lei, não incluem prisão sem julgamento e nem se devem enlutar quando um “Habeas Corpus” — este, sim, uma garantia constitucional fundamental — é concedido. Por tudo isto, o manifesto é fechado nos seguintes termos: “os signatários sentem-se seguros por viver num país que tem no ápice de sua estrutura judiciária um magistrado que tem a coragem e a dignidade de manter a Constituição acima da gritaria.”

Sobre a utilização abusiva do uso de algemas, já escrevi, em 1999, que elas somente devem ser utilizadas em situações excepcionalíssimas, desde que esgotados todos os outros meios para conter o conduzido. Do contrário, penso, como Sérgio Pitombo, Antonio Magalhães Gomes Filho, Luiz Flávio Gomes, entre outros, que a Constituição Federal ordena o respeito à integridade psicofísica dos presos, proibindo, a todos, submeter alguém a tratamento desumano e degradante, devendo ser respeitadas a dignidade da pessoa humana e a presunção de inocência, motivo pelo qual o constrangedor e aviltante uso de ferros — um dos maiores símbolos de humilhação ao homem — só pode se dar nas singulares hipóteses previstas nos artigos 284 combinado com 292 do Código de Processo Penal.

Se houver inquestionável imprescindibilidade do uso dos grilhões, deve esta ser demonstrada e justificada, caso a caso, pela autoridade ou seu agente, não podendo a necessidade ser deduzida diante da gravidade dos crimes nem da presunção de periculosidade do detento, porque inconstitucional/ilegal. Em ressunta, é o que reza a Súmula 11, do STF.

Qualquer hipótese que se afaste dos rígidos comandos da lei sujeitará o infrator às penas do crime de abuso de autoridade, ex vi artigo 3º, inciso “i” c/c 4º, inciso “b”, da Lei 4.898/65.

No que tange às súmulas vinculantes e outros comentários, alguns em tons bem críticos, é verdade, lançados no corpo do artigo de Kleber Couto Pinto, também não merecem minha concordância. Refuto-os com o mais vivo empenho.

Ainda que se questione o instituto da súmula vinculante, fato é que, no caso, o STF bem interpretou (não pela vez primeira, é bom relembrar) e fez valer os princípios insculpidos na Carta Cidadã.

Ademais, os ministros da mais alta corte do país jamais editariam a Súmula 11 — que é, sim, hierarquicamente superior à lei ordinária, diferentemente do que sustenta Couto Pinto (isto é: se sobre matéria houvesse lei) — por razões outras que não em estrita obediência à Carta Cidadã. No ponto, nada mais é preciso ser dito, é óbvio.

De outro giro, penso, com a mesma ênfase que discordo do teor do artigo da lavra de Kleber Couto Pinto, que num Estado que se pretende Democrático de Direito ninguém pode ser processado por “crime de opinião”. Como acentuado por Augusto Thompson: “o agradar/desagradar habita o terreno da opinião. E a opinião, como diz José Saramago, é a expressão aparentemente racionalizada do gosto. Ora, gosto não se discute. Muito menos em sede de argumentações de cunho jurídico”. Podemos, e devemos, como ora faço de corpo e alma abertos, discordar das opiniões contrárias. Faz parte da dialética democrática o debate de idéias.

Abrir processo administrativo-disciplinar (ou instaurar sindicância, tanto faz) contra um cidadão (pouco importa a sua condição social ou profissional) pela singela razão dele ter emitido, num artigo jornalístico, opinião sobre de determinado assunto (assunto que tanta polêmica vem gerando no meio da comunidade jurídica brasileira, o que está a demonstrar a pluraridade de percepções acerca de um mesmo fato), ainda que a crítica por ele feita tenha utilizado tom mais ou menos agudo, pouco importa, é teratológico, para falar o menos.

Tal engessamento (mordaça ou censura, como diriam alguns) é retrocesso perigoso. É como se estivéssemos a voltar aos tempos, não tão remotos assim, que queremos ver longe. Muito longe. Para que nunca mais!

Aliás, em situação parecida tive a oportunidade de exteriorizar o mesmo pensamento quando, dias atrás, a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) requereu, a OAB, a abertura de processo administrativo-disciplinar contra o intimorato advogado Nélio Machado (amigo querido de quase trinta anos e velho e bom companheiro de tantas trincheiras, exemplo, sem dúvida alguma, de advogado que tanto honra a nobre advocacia criminal brasileira. Advocacia esta que, como registrou Nilo Batista, vem sendo, por certos setores retrógrados da sociedade civil, criminalizada; melhor dizendo, ousando dissentir, em parte, de Batista: tentam criminalizá-la, mas jamais conseguirão nos calar, com bem demonstra a história), pelo fato dele ter externado, na mídia, na intransigente defesa dos direitos de seus constituintes, opinião acerca de determinado acontecimento havido no curso de processo que patrocina.

A OAB, como se esperava, seguindo a trilha do parecer de Alberto Zacharias Toron (que falava na qualidade de Conselheiro Federal e presidente da Comissão Nacional de Prerrogativas da OAB e, não, na de advogado particular de Nélio Machado, como poucos insinuaram) determinou, por unanimidade e sem pejo, o arquivamento do feito, numa inequívoca demonstração de que a defesa, como disse Rui Barbosa em carta dirigida, no início do século findo, a Evaristo de Moraes, “não quer o panegírico da culpa ou do culpado. Sua função consiste em ser, inocente, ou criminoso, a voz de seus direitos legais”.

A liberdade de expressão, a polifonia, a discrepância de idéias e diferenças na interpretação de atos, decisões e fatos é questão inerente à democracia e qualquer tentativa de cerceamento de tais possibilidades é uma gravíssima tentativa de violação à própria democracia e à liberdade de manifestação do pensamento.

Dialética, diálogo, diferenças e dissonância exercidas de forma independente e afastadas da ameaça de um processo administrativo-disciplinar pelo simples teor de sua(s) discordâncias nos conduzirá a uma democracia material eficaz e não apenas formal insculpida na letra da lei mas afastada da prática da realidade.

Os tempos estão difíceis. É preciso ter calma. Muita calma. Temos o dever de deixar para os nossos um mundo melhor do que este que eles temporariamente nos emprestam.

Autores

  • Brave

    é advogado criminal (RJ e BSB) e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Foi secretário-geral do Instituto dos Advogados Brasileiros, onde presidiu, também, a Comissão Permanente de Defesa do Estado Democrático de Direito.

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