Responsabilidade solidária

Seguradora deve custear dano a terceiro não segurado

Autor

  • Gustavo de Medeiros Mello

    é mestre em Direito Processual Civil professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte (FESMP-RN) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Norte (Esmarin) membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e advogado no escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia (São Paulo).

9 de setembro de 2008, 13h48

Há muito se discute no Brasil se a vítima de um acidente pode acionar diretamente a companhia seguradora que mantém seguro facultativo de responsabilidade civil com a pessoa que lhe causou dano.

Faz anos que a chamada ação direta da vítima contra a seguradora vem representando uma tendência universal no Direito Comparado, com algumas variações. Na América Latina, vários sistemas a prevêem, como México, Argentina, Peru, Colômbia, Paraguai e Bolívia. Só para se ter uma idéia, a lei mexicana de 1935 estabelece que o seguro atribui diretamente ao terceiro prejudicado (vítima) o direito à indenização, da qual ele é beneficiário desde o momento do sinistro.

No Canadá, o Código Civil da Província de Quebec (1991) prescreve que a importância segurada é destinada exclusivamente ao pagamento dos terceiros lesados (tiers lésés). Na Bélgica, a lei de 1992 fala de um “direito próprio” da vítima contra o segurador (Droit propre de la personne lesée). Nessa linha, a França (desde 1930), Espanha e Itália também são exemplos desse mecanismo de acesso à Justiça no velho continente europeu.

Com algum esforço de interpretação, o sistema jurídico brasileiro também é favorável a essa questão. O Código de Defesa do Consumidor assinala que o segurador é “responsável solidário” ao lado do seu segurado pelo dano causado por este como fornecedor de produto ou serviço posto em circulação no mercado de consumo (Lei 8.078/90, art. 101, inc. II).

Em termos práticos, a vantagem desse regime de responsabilidade solidária que disciplina a relação de consumo significa que a vítima tem a opção de acionar qualquer dos dois responsáveis – só a seguradora ou só o segurado, ou ambos em conjunto no mesmo processo.

Por outro lado, o exame do mesmo assunto no Código Civil de 2002 dá a impressão de que a lei não é tão clara. No seguro de responsabilidade civil, confere-se ao segurador a qualidade de garantidor do pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro (CC, art. 787).

Não se fala literalmente que a vítima tem o direito de exigir indenização da seguradora.

Apesar disso, pode-se afirmar que o acionamento do segurador é um caminho possível a partir de uma interpretação lógico-sistemática do Código. Ali se diz que, se a companhia estiver insolvente, a responsabilidade é transferida para o segurado. A idéia de subsistir a responsabilidade para o segurado significa que a sociedade seguradora é a responsável principal pelo pagamento da indenização devida à vítima do acidente (CC, art. 787, § 4º).

Essa condição dada ao segurador de responsável principal pelo cumprimento do contrato credencia no prejudicado o poder de exigir daquele o pagamento da indenização. Esse poder de exigir conferido pela lei constitui o direito de ação.

Nessa perspectiva, o sistema jurídico brasileiro autoriza esse acionamento direto da companhia de seguros pelo terceiro prejudicado. O Superior Tribunal de Justiça vem seguindo essa linha de interpretação desde antes do Código Civil de 2002, com a tese de que o seguro de responsabilidade civil constitui uma estipulação em favor de terceiro (Recurso Especial 257.880/RJ, Recurso Especial 294.057/DF).

Atualmente, o assunto está em discussão na Câmara dos Deputados por intermédio do Projeto de Lei 3.555/2004, que dispõe sobre normas gerais em contratos de seguro privado, de autoria do deputado José Eduardo Martins Cardozo (PT-SP). Em sua primeira fase de votação, o projeto foi aprovado pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio.

Há vários pontos interessantes de avanço no capítulo dedicado ao seguro de responsabilidade civil. Em sintonia com os mais modernos estudos, o projeto reconhece expressamente que a vítima do acidente (chamado “prejudicado”) é credora da indenização devida pela companhia de seguros.

Observe-se que essa posição jurídica, se vier a ser reconhecida explicitamente pela lei federal, afastará qualquer dúvida sobre o direito que a vítima tem de exigir da seguradora, no campo processual, o pagamento da indenização, respeitado o limite máximo da importância garantida na apólice.

O Projeto de Lei 3.555/2004 afirma também que, no âmbito dessa ação direta, o prejudicado tem a “faculdade” de chamar o responsável pelo dano para figurar como réu no processo, ao lado do seu segurador.

Outro detalhe fundamental é o fato de que a seguradora só poderá levantar contra a vítima defesa de ordem contratual se tiver fundamento anterior ao sinistro. Por exemplo, falta de pagamento da mensalidade (prêmio) pelo segurado pode ser suscitada pela companhia, mas desde que seja débito anterior ao acidente.

Portanto, frente aos sujeitos que o sistema jurídico considera responsáveis pelo pagamento da indenização, a ação direta possibilita apontar para aquele que tem mais condições materiais de satisfazer a eventual sentença condenatória que vier a ser proferida em favor da vítima do sinistro. Esse caminho simplifica o procedimento e abrevia o tempo da litigância com economia de energia para a jurisdição.

A técnica do acionamento direto está em harmonia com a Constituição de 1988, em especial pelo prestígio dado à garantia do acesso à Justiça (CF, art. 5º, XXXV e LXXVIII). Com isso, o sistema pode proporcionar ao processo condições mais favoráveis à celeridade de sua tramitação e à efetividade de seus resultados.

A técnica da ação direta representa a moderna dimensão do seguro de responsabilidade civil na sociedade contemporânea. A proteção securitária visa manter indene o patrimônio do segurado, mas com a preocupação de atender as necessidades da parte mais vulnerável da relação, ou seja, destinando o produto da indenização àquele que sofreu diretamente os efeitos deletérios do acidente.

Enfim, com o Projeto de Lei 3.555/2004 o Congresso Nacional pode dar ao Brasil um sistema jurídico que, além de tornar mais justa e transparente a disciplina da relação securitária, prestigia a celeridade do processo e a realização do Direito nas relações em conflito.

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    é mestre em Direito Processual Civil, professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte (FESMP-RN) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Norte (Esmarin), membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e advogado no escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia (São Paulo).

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