Títulos frios

Cotril deve pagar R$ 15 milhões aos credores do Banco Santos

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9 de setembro de 2008, 20h11

A Contril Agropecuária deve ressarcir os credores da massa falida do Banco Santos em R$ 15,3 milhões. A ordem é do juiz Clóvis Ricardo de Toledo Júnior, da 19ª Vara Cível de São Paulo. A empresa terá de pagar ainda R$ 30 mil em custas processuais e honorários advocatícios.

O banco e a empresa negociaram Cédulas de Produto Rural em 2004 para serem resgatadas no ano seguinte. Quando foi receber de volta o crédito, o Banco Santos percebeu que os títulos da Contril eram frios. Não havia uma produção agrícola que lastreasse o valor. Segundo a Contril teria dito na hora de fechar negócio, a empresa tinha 166 mil arrobas de boi que garantiram o lastro. Na época, a arroba valia R$ 72.

“As Cédulas de Produto Rural constituíram expediente destinado a desviar recursos do banco”, argumentou a defesa do banco, feita pelo advogado Paulo Guilherme Mendonça Lopes, da Leite, Tosto e Barros Advogados. Desde o inicio, segundo o banco, a Contril fez o negócio sabendo que não poderia pagá-los. Segundo o advogado, o negócio deu grande prejuízo ao banco, que faliu em 2005.

O juiz Clóvis Ricardo de Toledo Júnior entendeu que as provas apresentadas eram suficientes para aceitar o pedido do banco. “O procedimento levado a efeito pelas partes é bastante conhecido e inclusive confessado nas contestações. Até por esta razão não há necessidade de realização de outras provas além das já existentes nos autos”, anotou.

O banco disse que os administradores do Contril tiveram participação efetiva nas fraudes. “Contudo, neste momento, tal alegação é apenas um truísmo sem finalidade prática e, com muito maior razão, após a quebra, já não faz mais sentido”, diz o juiz.

Segundo Toledo Júnior, “para os que estão do lado de fora dos negócios jurídicos houve um aparente contrato entre as rés. Mas para os que estão dentro dos negócios jurídicos encadeados, houve intenção de simular uma relação previamente concebida para gerar efeitos enganosos”.

Leia a decisão

19ª VARA CIVEL

19º OFICIO CIVEL-9o ANDAR-SALA 905

Processo 583.00.2007.197596-8/000000-000

ORDEM 1808/2007-INDENIZACAO (ORDINARIA)

BANCO SANTOS S/A X COTRIL AGROPECUARIA LTDA E OUTROS-FLS. 508/521

SENTENCA Nº 2089/2008

DIANTE DO EXPOSTO E CONSIDERANDO O MAIS QUE DOS AUTOS CONSTA, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO CONDENATORIO CONTIDO NA INICIAL PARA CONDENAR AS RES, SOLIDARIAMENTE, AO PAGAMENTO DA QUANTIA DE R$ 15.339.270,08 (QUINZE MILHOES, TREZENTOS E TRINTA E NOVE MIL, DUZENTOS E SETENTA REAIS E OITO CENTAVOS), DEVIDAMENTE ATUALIZADOS DA DATA DA PROPOSITURA DA DEMANDA ATE A DATA DO EFETIVO PAGAMENTO, MAIS JUROS DE MORA DE 1% AO MES, CONTADOS DA DATA DAS CITACOES, EXTINGUINDO O PROCESSO COM JULGAMENTO DO MERITO COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 269, I, DO CODIGO DE PROCESSO CIVIL.

CONDENO, AINDA, AS RES AO PAGAMENTO DAS CUSTAS, DAS DESPESAS PROCESSUAIS E DOS HONORARIOS ADVOCATICIOS, QUE FIXO EM R$ 30.000,00(TRINTA MIL REAIS), TENDO COMO BASE A EQUIDADE, NOS TERMOS DO ART. 20, 3o, LETRAS ‘A”, ‘B” E ‘C”, E 4º, DO CODIGO DE PROCESSO CIVIL, TENDO EM VISTA A NECESSIDADE DE RESSARCIMENTO DAS DESPESAS QUE A AUTORA TEVE COM OS HONORARIOS ADVOCATICIOS. P.R.I.C. VALOR DO PREPRARO R$ 44.640,00 E PORTE E REMESSA R$ 62,88.

VISTOS. MASSA FALIDA DE BANCO SANTOS S/A, já qualificada nos autos, move ação com pedido condenatório contra COTRIL AGROPECUÁRIA LTDA. e outra, também já qualificadas nos autos, alegando, em breve síntese, que no inquérito instaurado para a verificação das causas falência da instituição financeira, concluiu-se que as Cédulas de Produto Rural constituíram expediente destinado a desviar recursos do banco. Afirma que a CPR foi instituída pela lei nº 8.929/94 para representar a promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantia cedularmente constituída, tendo legitimidade para emiti-la o produtor rural e suas associações, incluindo cooperativas. Afirma que o título destina-se a financiar atividades rurais.

Afirma que houve sistemática e deliberada realização de vultosas operações prejudiciais ao banco, que tinham como contrapartes interpostas empresas e clientes do banco, as quais comprometeram a situação econômico-financeira do autor. Afirma que as cédulas eram emitidas sem representarem qualquer operação de financiamento de sua atividade rural, ou seja, eram frias. Afirma que mediante contratos de gaveta, as cédulas circulavam. Afirma que como regra os emitentes recebiam apenas 0,5% do valor.

Afirma que não é crível que um devedor de 100% receba apenas 0,5% da dívida, o que demonstra a existência de uma comissão e não um verdadeiro financiamento. Afirma que os títulos acabaram por ser negociados com o banco por seu valor integral, de face. Afirma que os emitentes tinham desde o inicio consciência de que não teriam a obrigação de pagá-las. Afirma que o banco comprava um ativo pelo seu valor total, mas se viesse a cobrá-lo do emitente ela não haveria de resgatá-lo, em virtude de contrato firmado com a empresa que negociou com o banco. Afirma que o produtor rural “alugou” uma CPR de sua emissão com a finalidade de que ela pudesse ser utilizada para lastrear outros negócios, em patente desvirtuamento da cédula.


Afirma que os contratos de gaveta intitulados Instrumento Particular de Emissão e Aquisição de Produtos Rurais e Outras Avenças eram firmados entre os produtores rurais e terceiras empresas que, posteriormente, negociavam as CPR’s com o Banco Santos. Afirma que eram previstas cláusulas de arrependimento sem obrigatoriedade da devolução do valor pago a título de sinal, ou cláusulas que previam o cancelamento sem devolução do valor até então recebido caso os emitentes não recebesse o valor integral da emissão.

Afirma que emitidas as cédulas, formalizados os contratos de gaveta com terceiras e pagos os “aluguéis” aos emitentes, a terceira empresa negociava a cédula com o banco falido, que as contabilizavam em seu ativo pelo valor total, e o banco depositava os valores pagos pelas cédulas nas contas-correntes dessas terceiras empresas. Afirma que, em seguida, os recursos eram transferidos para diversos destinos, em favor de terceiros e em prejuízo dos credores do banco. Afirma que os atos jurídicos eram simulados. Afirma que em 28.06.2004, a Cotril emitiu cédula de produto rural financeira nº 01/04, com vencimento em 28.06.2005, obrigando-se a pagar a PDR Corretora de Mercadorias S/S Ltda. a importância resultante da multiplicação da quantidade de produto indicada na cláusula produto (166.667 arrobas de boi) pelo preço previsto na clausula identificação do preço (R$72,00 por arroba líquida), resultando no valor de R$12.000.024,00).

Afirma que em 28.06.2004 foi celebrado instrumento particular de emissão e aquisição de cédulas de produto rural e outras avenças, figurando como emissor a Cotril e como beneficiária a PDR, objetivando a aquisição dos produtos prometidos na cédula. Afirma que o contrato é de gaveta, uma vez que todas as operações eram mantidas em total sigilo nos termos da cláusula décima. Afirma que foi pago apenas R$49.180,00 com promessa de pagamento do restante 99,5% no 5º dia anterior à data de vencimento da cédula.

Afirma que, de acordo com a cláusula terceira, no caso de não pagamento do montante devido, o beneficiário se obrigava a devolver a CPR devidamente endossada ao emissor, a perda da parcela paga e a nulidade do instrumento, isentando o emissor de qualquer obrigação. Afirma que em 01.07.2004, por meio de endosso, a PDR vendeu a cédula ao Banco Santos, tendo recebido R$9.836.000,00 que foi creditada na conta nº 13.145-4, agência 1-9. Afirma que a Cotril recebeu R$49.180,00, a PDR, R$9.836.000,00, e os credores do banco ficaram com um ativo que nunca será realizado (“a ver navios” – fl. 10). Requereu a condenação dos réus solidariamente ao pagamento da quantia de R$15.339.270,08. Com a inicial foram juntados os documentos de fls. 17/194. As rés foram devidamente citadas A co-ré PDR Corretora de Mercadorias Ltda. apresentou pedido de chamamento ao processo de Edemar Cid Ferreira, Ricardo Ferreira de Souza e Silva e Álvaro Zucheli Cabral (fls. 212/214, juntando documentos de fls. 215/239). E apresentou contestação (fls. 250/262), alegando, em breve síntese, que há confusão patrimonial, tendo em vista que a PDR foi criada e administrada pelo Banco Santos.

Afirma que os sócios não auferiram qualquer vantagem. Afirma que as pessoas mencionadas acima administravam a empresa. Afirma que todas as operações foram orquestradas e negociadas com o próprio banco, e seus recursos eram direcionados para os diretores e para as empresas emissoras dos títulos. Afirma que os valores nunca foram recebidos pela empresa, mas desviados pelos próprios diretores do banco em benefício próprio. Afirma que jamais teve contato com a co-ré Cotril. Afirma que nunca teve acesso a suas contas correntes mantidas no Banco Santos. Afirma que o banco e seus diretores são os verdadeiros proprietários da PDR.

Afirma que o banco e seus diretores valeram-se de pessoas ingênuas e inocentes que emprestavam os seus nomes para pareceram como sócios ou representantes legais da empresa. Requereu a extinção da causa ou a improcedência. Com a contestação foram juntados os documentos de fls. 263/305. A co-ré Cotril Agropecuária Ltda também contestou o feito (fls. 312/341), alegando, em breve síntese, que tramita a ação ajuizada pela ré em face do Banco Santos visando a declaração de inexigibilidade da cédula. Afirma que atualmente a ação está em grau de recurso. Afirma que foi declarada a inexigibilidade da cédula.

Afirma que há falta de interesse de agir, tendo em vista a existência do outro feito. Afirma que há necessidade de suspensão em virtude de prejudicialidade externa. Afirma que os administradores do banco e os sócios da co-ré, agindo conjuntamente, exigiram da contestante a emissão da cédula. Requereu a denunciação da d lide aos administradores do banco. Afirma que para o custeio de suas atividades entrou em contato com o banco para obter o empréstimo de R$2.000.000,00. Afirma que após tratativas, emitiu, em 30.07.2004, em favor do banco, uma cédula de crédito bancário, com vencimento para 24.06.2005.


Afirma que em contrapartida, o banco impôs à contestante a emissão de uma cédula em favor da co-ré. Afirma que, segundo o banco, após a quitação do crédito bancário, em 24.07.2005, a co-ré PDR devolveria à autora a cédula devidamente endossada, de forma que a autora não teria de honrar com nenhum ônus da emissão. Afirma que como garantia o banco emitiu um documento denominado “carta conforto”, o qual mencionava que a cédula de produto rural destinava-se a constituir uma contra-garantia ao empréstimo. Afirma que os sócios da PDR são os verdadeiros “laranjas” do banco. Afirma que há ausência do dever de indenizar. Afirma que é vítima e há culpa exclusiva da co-ré. Afirma que sua responsabilidade deve limitar-se a pagar os R$49.180,00, quantia que realmente recebeu. Requereu a extinção da causa, a suspensão, a denunciação da lide aos administradores ou, no mérito, a improcedência. Com a contestação foram juntados os documentos de fls. 342/458. Houve réplica (fls. 461/475). O Ministério Público manifestou-se a fls. 480/487. As partes manifestaram-se sobre as provas que pretendiam produzir (fls. 489, 491/493, 494 e 497/498).

É O RELATÓRIO.

FUNDAMENTO E DECIDO.

O feito comporta julgamento antecipado, nos termos do art. 330, I, do Código de Processo Civil. Não há necessidade de realização de outras provas em audiência ou fora dela, posto que as existentes nos autos são plenamente suficiente para a cognição da causa. Não há necessidade de repetir todas as provas já feitas nos autos dos inquéritos, de outros processos ou procedimentos, como pretende o Ministério Público, por meio dos quais já são bem conhecidos os procedimentos realizados pelos Administradores do Banco e pelas pessoas jurídicas com as quais o Banco negociava. Não há, também, possibilidade de chamamento ao processo, posto que os fatos não se encaixam na hipótese legal (CPC, art. 77).

Já segundo as provas coligidas durante a instrução da causa, os pedidos condenatórios contidos na inicial devem ser julgados procedentes. O procedimento levado a efeito pelas partes é bastante conhecido, e inclusive confessado nas contestações. Até por esta razão não há necessidade de realização de outras provas além das já existentes nos autos. As rés alegam que o Banco, por seus Administradores, teve participação efetiva nas fraudes. Contudo, neste momento, tal alegação é apenas um truísmo sem finalidade prática e, com muito maior razão, após a quebra, já não faz mais sentido.

Doravante, com o devido respeito, os valores buscados pela Massa pertencem ao conjunto de credores e não mais aos antigos responsáveis pelo funcionamento do Banco. O contrato ao qual a Massa Falida pretende dar juridicidade está devidamente juntado aos autos (fls. 22/24). De sua leitura não se vislumbra qualquer problema específico. Contudo, é na leitura do contrato de fls. 27/30 que se percebe que, em verdade, a fraude consistia na criação de uma “moeda” para dar lastro a outros negócios jurídicos, desvirtuando-se a finalidade da cédula e a conduta do Banco. Nos termos da cláusula 3.ª (fl. 28), não há obrigação alguma, mas apenas uma forma de receber os 0,5% do valor de face, criando, por outro lado, uma “moeda” para o banco desviar recursos dos demais investidores, e, agora, dos credores da massa.

Como ninguém ignora, uma obrigação é um processo. O seu desenrolar é processual, desdobrando-se em fases, com os seus antecedentes e conseqüentes lógicos. Portanto, ninguém assume uma obrigação jurídica para nada, sem que ela tenha um desenvolvimento, uma execução, um resultado, uma finalidade, uma causa, tudo imbricado jurídica e logicamente. Enfim, sem que ela se destine a produzir um resultado no mundo fenomênico ou um estado jurídico. Portanto, os deveres resultantes dos contratos “surgem, se processam e se adimplem.” (COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo, José Bushatsky, Editor, São Paulo, 1976, p. 16).

Neste sentido, “O desenvolvimento da relação obrigacional, polarizado pelo adimplemento, está condicionado por certos princípios gerais, ou específicos a cada tipo de obrigação, ou comuns a alguns deles. Entre os gerais, a nosso juízo [diz o autor], devem-se incluir o da autonomia da vontade, o da boa fé e o da separação entre as fases, ou planos, do nascimento e desenvolvimento do vínculo e o do adimplemento.” – grifei – (Idem, p. 15).

Portanto, não faz sentido a assunção de uma obrigação jurídica sem uma previsão séria de adimplemento. “Obrigar-se é submeter-se a um vínculo, ligar-se, pelo procedimento, a alguém e em seu favor. O adimplir determina o afastamento, a liberação, e, na etimologia da palavra ‘solutio’ surpreende-se vigorosamente essa idéia.” (Idem, p. 44). Aqui, contudo, em virtude da simulação de uma situação jurídica, não há propriamente uma obrigação de pagar, mas apenas uma obrigação simulada, cuja função é ludibriar a confiança dos clientes do Banco. Segundo a doutrina de Orlando Gomes, “A simulação existe quando em um contrato se verifica, para enganar a terceiro, intencional divergência entre a vontade real e a vontade declarada pelas partes. Com a simulação, visa-se alcançar fim contrário à lei.” (Introdução ao direito civil, ed. Forense, Rio de Janeiro, 1988, p. 440). Simular um negócio, de acordo com a doutrina de Francisco Ferrara, “[…] é fazer similar, dar aspecto e semelhança ao não verdadeiro.” (A simulação dos negócios jurídicos, trad. dr. A. Bossa, Saraiva & Cia, São Paulo, 1939, p. 49).


Mais precisamente, “Negócio simulado é o que tem uma aparência contrária à realidade, ou porque não existe em absoluto ou porque é diferente da sua aparência. Entre a forma extrínseca e a essência íntima há um contraste flagrante: o negócio que, aparentemente, é sério e eficaz, é, em si, mentiroso e fictício, ou constitue (sic) uma máscara para ocultar um negócio diferente. Esse negócio, pois, é destinado a provocar uma ilusão no público, que é levado a acreditar na sua existência ou na sua natureza, tal como aparece declarada, quando, na verdade, ou não se realisou (sic) um negócio ou se realisou (sic) outro diferente do expresso no contrato.” – grifei – (Idem, p. 51). O negócio simulado, na forma bilateral, serve para (a) fazer uma declaração não conforme a verdadeira intenção, (b) mediante acordo entre as partes, e, por fim, (c) para enganar terceiros. Francisco Ferrara, porém, cita autores que distinguem entre simulação bilateral da simulação unilateral (Idem, p. 54), dizendo que a segunda forma de simulação seria aquela na qual “[…] o declarante provoca directamente um erro naquele que recebe a declaração ou utilisa (sic) o engano em que esta última caíra espontaneamente. Deste modo, a simulação unilateral não é, pois, simulação mas sim dolo. É o disfarce da verdade para enganar o outro contratante. No próprio direito romano se discutia entre jurisconsultos se a simulação era ou não um elemento integrante da conduta dolosa […] Mas prescindido desta controvérsia, conclue-se (sic) sempre que a simulação é a produção duma falsa aparência alterius decipiendi causa. Neste sentido a simulação não constitue (sic) um conceito técnico, mas desaparece como elemento e facto do dolo. Deve recordar-se aqui o que diz Kock (sic): ‘Se um só dos contratantes simula … ou se trata duma brincadeira ou existe dolo. E como o direito não permite que se invoque o próprio dolo, o simulante unilateral fica obrigado.’ Em tal caso, a simulação considera-se juridicamente não como negócio mas como delito.” – grifei – (A simulação dos negócios jurídicos, trad. dr. A. Bossa, Saraiva & Cia, São Paulo, 1939, p. 55).

Como se vê, no caso dos autos, e segundo a lição de Christian Friedrich Koch, mencionada por Ferrara, houve dolo de ambas as rés com a intenção de simular uma relação jurídica. Ou seja, para os que estão do lado de fora dos negócios jurídicos houve um aparente contrato entre as rés. Mas para os que estão dentro dos negócios jurídicos encadeados, houve intenção de simular uma relação previamente concebida para gerar efeitos enganosos. Portanto, utilizando-se a lição de Koch, como o direito não permite que se invoque o próprio dolo, com relação aos terceiros de boa fé (no caso, todos os demais contratantes e atuais credores do Banco), as rés estão obrigadas pelo valor constante da Cédula de Produto Rural Financeira à qual se obrigaram nos pólos da relação jurídica, havendo plena validade do negócio para os terceiros de boa-fé, em relação aos quais a Massa Falida é devedora.

Utilizando-se analogamente do instituto da reserva mental, Francesco Ferrara menciona que “Disse-se que a simulação não é mais do que uma reserva mental bilateral e assim como a reserva mental é ineficaz para o contratante que a ignora, assim, também a simulação, que vem a ser uma reserva mental comum e consensual de ambos os contratantes em relação a terceiros, deve ser ineficaz quanto a estes. Nem o credor, nem nenhum outro que a demonstre, pode invocá-la, como também não poderia colher benefícios da sua prova no outro caso. Podemos supor que os simuladores formam, agrupados, uma unidade com relação ao público e que fazem uma declaração mentirosa reservando na sua mente e até fazendo constar em documentos uma vontade oposta. Em tal caso deverá aplicar-se, por analogia, o princípio da irrelevância da reserva mental. Como uma espectro de declaração, uma aparência de consentimento manifestado obriga em relação a terceiros de bôa fé. Esta resolução impõe-se do mesmo modo como uma necessidade lógica.” – grifei – (A simulação dos negócios jurídicos, trad. dr. A. Bossa, Saraiva & Cia, São Paulo, 1939, p. 386).

Portanto, muito embora entre os contratantes não exista relação de débito e crédito, em virtude da cláusula 3.ª do denominado Instrumento Particular de Emissão e Aquisição de Cédulas de Produto Rural e Outras Avenças (fls. 27/30), tal disposição não tem validade com relação aos terceiros de boa-fé, pois, nas palavras de Francesco Ferrara: “O direito desempenha uma função geral reguladora das relações sociais, mas não é escravo das malícias e caprichos das partes.

A lei só concede o seu reconhecimento à vontade do indivíduo se ela é dirigida a fins sociais, corresponde ao interesse do comércio, é expressão e veículo de relações jurídicas com outros associados. O direito protege as determinações sérias de vontade que respondem a um interesse lícito e que se manifestam ex fine bona … Mas quando a vontade, pelas circunstâncias em que se determina ou o fim doloso que se propõe, tende, antes, a frustrar do que a dar realidade aos interesses do comércio, e não é uma forma de expressão da actividade lícita, mas sim um instrumento de má fé e de engano, a ordem jurídica retira-lhe a sua protecção.


Esta vontade, como indigna de tutela, é condenada à impotência e à ineficácia. Tal é o caso da reserva mental e da simulação para os terceiros de boa fé. A vontade secreta daquele que faz a reserva, como a dos simuladores, não é a expressão dum interesse sério, não corresponde ao legítimo desenvolvimento da actividade individual, mas é, sim, uma mentira para iludir terceiros: é uma vontade indigna de protecção jurídica. Pedir para esta vontade reconhecimento legal, seria abusar da protecção da lei. Nem os simuladores, nem ninguém em seu nome, poderão pedir que sejam atribuídos efeitos à sua vontade, porque esta vontade está fóra da protecção da lei, e fica reduzida a um movimento do espírito irrelevante. Os que tecem enganos contra outrem, cometem um delito, não realizam um negócio jurídico e não podem pretender buscar o amparo da lei para o direito de enganar, pois ela transforma-as em víctimas do engano que prepararam.

Poderá dizer-se, com Mommsen: Wer anderen eine Grube gräbt, fällt selbst hinein – Quem cava o fosso para os outros cai nele primeiro.” – grifei – (A simulação dos negócios jurídicos, trad. dr. A. Bossa, Saraiva & Cia, São Paulo, 1939, p. 387/388). Como valores fundamentais do direito, entre nós vigoram os princípios do favor legitimatis, ou seja, o direito favorece o que é legítimo, e o princípio de que a confiança merece proteção (PERELMAM, Chaïm. Lógica jurídica, ed. Martins Fontes, São Paulo, 1998, p. 125 e 126).

Assim, por um lado, é fato que o direito civil pátrio não permite o uso do dolo nos negócios jurídicos, e, utilizando-se dos princípios gerais de direito, no caso dos autos, o dolo das rés, a simulação do negócio e a reserva mental com a qual agiram na pretensão de forjar uma situação negocial inexistente, não podem ser concebidos como defeitos do negócio jurídico, para invalidá-lo, mas sim como forma de simulação unilateral (unilateral tomando-se em consideração dos terceiros de boa-fé, pois, neste caso, as rés estão no mesmo e oposto pólo), para confirmá-lo, dotando o contrato de plena bilateralidade atributiva. E segundo Miguel Reale bilateralidade atributiva é a “nota distintiva essencial do Direito”, que significa “uma proporção intersubjetiva, em função da qual os sujeitos de uma relação ficam autorizados a pretender, exigir, ou fazer, garantidamente, algo” (REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, Ed. Saraiva, 10.ª edição, São Paulo, 1983, p. 50 e 51).

Os credores da Massa Falida, portanto, são detentores do direito de buscar estes recursos. Nos termos do art. 422 do Código Civil, “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” E nos termos do art. 167, § 2.º, do Código Civil, “Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.” Na conclusão e no desenvolvimento de qualquer negócio jurídico, a boa-fé exerce o papel de harmonizar a intenção das partes e as finalidades do comércio jurídico. A boa-fé é, inegavelmente, um fato ao mesmo tempo moral, ético e também jurídico. É a consciência de não prejudicar a outrem em seus direitos, a honradez no cumprimento das obrigações, a lealdade, a honestidade ou probidade.

Por outro lado, ensina Martinho Garcez Neto que a interpretação não pode levar ao absurdo e à contradição, devendo-se concluir, no caso dos autos, que as partes manifestaram a vontade de realizar o negócio jurídico no valor constante da cédula de forma inequívoca (Controvérsias jurídicas e forenses, ed. Saraiva, São Paulo, 1982, p. 15). Ou seja, também neste sentido, insofismavelmente, podemos aplicar no caso sub judice o princípio da contradição, uma vez que a quitação plena e prévia se encontra em total contradição com todos os demais elementos cognoscitivos contratuais necessariamente existentes, com a finalidade jurídica da cédula de produto rural, com a função social do instituto, com a função social dos Bancos, enfim, com todos os pressupostos e requisitos para a realização do referido negócio jurídico típico.

Neste sentido, “A inteligência da convenção no sentido que melhor corresponda à boa fé, presumida nos contratantes, constitui, por igual, excelente critério de exegese. O princípio da boa fé domina o comércio jurídico, como regra de recíproca lealdade, destina-se a dar-lhe segurança. Não é necessário apurar se cada um dos contratantes se encontrava de boa fé ao contratar. O interprete deve entender as disposições contratuais como exige a boa fé.” – grifei – (OLIVEIRA ANDRADE, Darcy Bessone de. Do contrato – teoria geral, ed. Forense, Rio de Janeiro, 1987, p. 226). No caso dos autos, a exigência legal de boa-fé é o reconhecimento de que o contrato serviu a uma causa real e que os valores deve existir.

Portanto, segundo esta interpretação, as rés são responsáveis solidárias pelo valor atualizado do débito. Diante do exposto e considerando o mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE o pedido condenatório contido na inicial para condenar as rés, solidariamente, ao pagamento da quantia de R$15.339.270,08(quinze milhões, trezentos e trinta e nove mil, duzentos e setenta reais e oito centavos), devidamente atualizados da data da propositura da demanda até à data do efetivo pagamento, mais juros de mora de 1% ao mês, contados da data das citações, extinguindo o processo com julgamento do mérito com fundamento no artigo 269, I, do Código de Processo Civil.

Condeno, ainda, as rés ao pagamento das custas, das despesas processuais e dos honorários advocatícios, que fixo em R$30.000,00(trinta mil reais), tendo como base a equidade, nos termos do art. 20, § 3º, letras “a”, “b” e “c”, e § 4º, do Código de Processo Civil, tendo em vista a necessidade de ressarcimento das despesas que a autora teve com os honorários advocatícios.

São Paulo, 27 de agosto de 2008.

CLÓVIS RICARDO DE TOLEDO JÚNIOR

Juiz de Direito

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