Transfusão de sangue

Testemunha de Jeová: médico deve intervir se houver risco à vida

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7 de setembro de 2008, 0h00

A Constituição Federal assegura em seu artigo 5º, caput, a inviolabilidade do direito à vida, sendo certo que este direito é para nós o Direito dos Direitos, pois sem ele não há que se falar nos demais direitos.

Todavia, a Carta Magna de 1988, consagra em seu artigo 5º, inciso VI, a inviolabilidade da liberdade de crença, assim, conforme nossa Constituição, a ninguém é dado o direito de violar a liberdade religiosa de outrem.

Destarte, surge inevitavelmente um problema ao analisarmos hipótese de um médico realizar transfusão de sangue em paciente testemunha de Jeová, pois ocorre verdadeira colisão entre o direito a vida e a liberdade de crença. Assim, indaga-se: Como deve ser solucionada a hipótese de uma testemunha de Jeová negar-se a transfusão de sangue? O médico que mesmo assim realizar a intervenção deve responder civil e criminalmente?

Inicialmente seria possível que alguém surgisse com a afirmação apressada de que o direito a vida há sempre de prevalecer sobre os demais direitos fundamentais. Todavia, ainda que este seja o Direito dos Direitos, quando houver colisão entre este e outro direito fundamental, a solução só poderá ser encontrada através de uma ponderação, de modo que um direito fundamental não aniquile por completo outro, mas sim que com este coexista em harmonia.

No campo do Direito Penal, para nós, não há que se falar em crime diante da conduta do médico que realiza transfusão de sangue em paciente que se encontra em iminente risco de vida, pois não há como uma norma proibir aquilo que é fomentado ou autorizado por outra norma. Portanto, modernamente, a questão da intervenção médica deve ser resolvida no campo da tipicidade, desse modo, atuando o médico conforme autoriza ou fomenta o Direito, não há que se falar em fato típico.

O fundamento para nossa posição encontra-se na Tipicidade Conglobante, pois conforme a precisa lição de Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli [1]:

Além do fato de que o direito, eventualmente, obriga o cirurgião a praticar certas intervenções, não há dúvida de que as intervenções cirúrgicas com finalidade terapêutica, são altamente fomentadas pela ordem jurídica, o que pode ser comprovado por uma ligeira consulta à legislação sanitária. Como, conforme os princípios que regem a tipicidade conglobante, resulta inadmissível que uma norma proíba o que outra fomenta, dentro da mesma ordem normativa, o problema deve ser resolvido neste nível, sem pretendera inexistência do tipo legal, nem cometer a incoerência de explicá-lo em nível de justificação. A atipicidade surge da consideração conglobada da norma anteposta ao tipo de lesões, para isto bastando que se busque o fim terapêutico, sem importar se ele é efetivamente alcançado, sempre que, no caso dele não ter sido atingido, se tenha procedido de acordo com as regras da arte médica, cuja violação pode dar lugar à tipicidade culposa de lesões (art. 129, § 6º, do CP) ou de homicídio(art. 121, §3º, do CP).

Por intervenções com fim terapêutico devem ser entendidas aquelas que perseguem a conservação ou o restabelecimento da saúde, ou então a prevenção de um dano maior ou, em alguns casos, a simples atenuação ou desaparecimento da dor.

Há também de se ressaltar que a mesma solução (exclusão da tipicidade) chega-se ao recorrer a uma das linhas mestras de Roxin[2] para a Teoria da Imputação Objetiva, qual seja “ a criação de um risco não permitido”, logo, como o médico não cria um risco proibido, outrossim, não há que se falar em fato típico.

Luiz Flávio Gomes[3] também ensina que o médico:

Quando realiza uma intervenção médica curativa seguindo rigorosamente a lei da medicina cria riscos para o paciente (e danos físicos também), porém, são riscos permitidos. São danos produzidos no contexto de risco permitido. Por isso é que tais danos não se convertem em lesão (jurídica ) punível. Quem cria risco permitido não pratica nenhum fato típico.

Para encerrar a questão no âmbito penal, não é possível sequer cogitar o crime de constrangimento ilegal, assim, mister colacionar a lição de Rogério Greco[4]:

Na hipótese de ser imprescindível a transfusão de sangue, mesmo sendo a vítima maior e capaz, em caso de recusa, tal comportamento deverá ser encarado como uma tentativa de suicídio, podendo o médico intervir, inclusive sem o seu consentimento, uma vez que atuaria amparado pelo inciso I do § 3º do art. 146 do Código Penal, que diz não se configurar constrangimento ilegal a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida.

No que tange a responsabilidade civil, ao que nos parece, não há de se falar em responsabilidade civil do médico que realiza intervenção médica em paciente cuja crença religiosa colide com tal procedimento, desde que haja iminente risco a vida do enfermo, pois não havendo este iminente perigo, a vontade do paciente deve prevalecer (salvo se este for incapaz, caso em que o médico também há de intervir, não devendo ser responsabilizado civilmente).

A solução entre a colisão direito à vida x direito a liberdade de crença, há de ser assim solucionada, visto que não há como aniquilar por completo o segundo, aderindo a uma solução de que sempre o médico há de intervir e não ser responsabilizado civilmente, pois isso não é compatível com um Estado Democrático e Constitucional de Direito, onde conflitos entre direitos fundamentais, devem ser resolvidos de modo a não fulminar absolutamente um direito em prevalência do outro, mas sim de modo a ambos conviverem, sendo efetivamente aplicados, ainda que de forma mitigada (como é o caso).

È inegável que o direito à vida é indisponível, por isso mesmo em havendo iminente risco a este direito, o médico ao intervir (por exemplo: realizando transfusão de sangue em testemunha de Jeová), não deve ser responsabilizado civilmente, visto que ninguém pode dispor da própria vida, aliás, mister é a lição de Nelson Hungria[5]:

A vida não é um bem que se aceite ou se abandone ad libitum.Só se pode renunciar o que se possui, e não também o que se é.O direito de viver não é um direito sobre a vida, mas à vida, no sentido de correlativo da obrigação de que os outros homens respeitem a nossa vida.E não podemos renunciar o direito à vida, porque a vida de cada homem diz com a própria existência da sociedade e representa uma função social.

Corroborando nosso entendimento que em caso de iminente risco a vida do paciente o médico que intervir não deverá ser responsabilizado civilmente, temos a lição de Miguel Kfouri Neto[6]:

Entendemos que em nenhuma hipótese poder-se-ia buscar reparação de eventual dano— de natureza moral—, junto ao médico: se este realizasse, p. ex., a transfusão de sangue, contra a vontade do paciente ou de seu responsável— provado o grave e iminente risco da vida.

Trazemos também a preciosa lição de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[7]:

Temos plena convicção de que, no caso da realização de transfusão de sangue em pacientes que não aceitam esse tratamento, o direito à vida se sobrepõe ao direito à liberdade religiosa, uma vez que a vida é o pressuposto da aquisição de todos os outros direitos. Além disso, como já colocado, a manutenção da vida é interesse da sociedade e não só do indivíduo.ou seja, mesmo que, intimamente, por força de seu fervor, ele se sinta violado pela transfusão feita, o interesse social na manutenção de sua vida justificaria a conduta cerceadora de sua opção religiosa.

Acreditamos, realmente, que o parâmetro a ser tomado é sempre a existência ou não de iminente perigo de vida.

No caso de pacientes maiores e capazes, no momento da concessão do consentimento, entendemos que, ausente o perigo de perda da vida, mas, só e somente só, a recomendação do tratamento, o médico não deve ministrá-lo, sob pena de estar constrangendo ilegalmente o paciente. Assim, caso não observe essa determinação, o médico corre o risco de ser responsabilizado civilmente.

(..) Mesmo no caso de pacientes que estejam, temporária ou permanentemente, impossibilitados de manifestar sua vontade, no que se incluem os pacientes menores, por isso incapazes, o médico também tem a obrigação de ministrar o tratamento, até mesmo porque nem sempre é possível obter a anuência do responsável legal.

Diante do exposto, é imprescindível que a análise do caso parta inicialmente da existência ou não de perigo de vida do paciente, pois se efetivamente há a sua presença, o médico ao intervir, não poderá ser responsabilizado civilmente. Todavia, não havendo qualquer risco à vida do paciente, caso o médico realize intervenção, após a negativa do enfermo de não se submeter ao procedimento indicado pelo discípulo de Hipócrates, haverá a possibilidade de responsabilização na esfera cível.

Todavia, em caso de pacientes incapazes de consentir, o médico dever intervir, não havendo que se falar nesse caso em responsabilidade civil do médico por violação de liberdade de crença.

Assim, para fechar a questão lembramos que não haverá crime do médico que intervém realizando transfusão de sangue em paciente testemunha de Jeová, quer seja com amparo na tipicidade conglobante, quer seja com amparo na imputação objetiva em razão da não criação de um risco proibido. Não se pode cogitar nem mesmo o crime de constrangimento ilegal em razão do art.146, § 3º, inciso I do Código Penal.

Já no campo da responsabilidade civil, é imprescindível que a análise do caso parta inicialmente da existência ou não de perigo de vida do paciente, pois se efetivamente há a sua presença, o médico ao intervir, não poderá ser responsabilizado civilmente. Todavia, não havendo qualquer risco à vida do paciente, caso o médico realize intervenção, após a negativa do enfermo de não se submeter ao procedimento, surge a possibilidade de responsabilização na esfera cível.

Há de se lembrar ainda acerca da responsabilidade civil, que no caso de pacientes incapazes de consentir, o médico dever intervir, não havendo que se falar nesse caso em responsabilidade civil do médico por violação de liberdade de crença do paciente.

Notas

[1] ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 7.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. v.1, p. 480/481

[2] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 104.

[3] GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.v.2, p.275.

[4] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. p.401.

[5] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal .4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. v. V, p 227.

[6] KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. São Paulo: Revista dos Tribunais,1994. p.160-161.

[7] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo.Novo Curso de Direito Civil.São Paulo: Saraiva, 2008. v.III, p.214-217.

Bibliografia

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo.Novo Curso de Direito Civil.São Paulo: Saraiva, 2008. v.III

GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.v.2

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal .4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. v. V.

KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. São Paulo: Revista dos Tribunais,1994.

ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 7.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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