Escutas telefônicas

Projeto que regula grampos permite avanço do Estado Policial

Autor

  • Juliano Breda

    é advogado. Doutor em Direito Penal conselheiro estadual da OAB-PR membro do Corpo Diretivo do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal.

6 de setembro de 2008, 0h00

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou, por unanimidade, projeto de lei que confere nova regulamentação ao uso das interceptações telefônicas no processo penal. Apresenta-se o projeto como uma forma de estabelecer requisitos mais rígidos à decretação desse meio de prova que restringe a liberdade de comunicação, a privacidade e intimidade, direitos fundamentais do cidadão, demarcados constitucionalmente como pressupostos do desenvolvimento pleno da personalidade humana.

Tratava-se, em princípio, de uma tentativa de responder à proliferação abusiva das interceptações telefônicas no país, que, de excepcionais, tornaram-se regra para investigações que não justificam a adoção de um instrumento de séria restrição das garantias constitucionais e por prazos excessivos.

A simples leitura do projeto revela, no entanto, ao contrário do que se supostamente pretendia, uma indiscutível flexibilização dos pressupostos de cabimento da medida, permitindo um avanço ainda maior do Estado Policial e uma gradativa erosão das garantias fundamentais do cidadão.

Em primeiro lugar, no artigo 2º1, o projeto amplia as hipóteses de cabimento da medida não apenas aos crimes de reclusão, como na Lei 9.296/96, mas agora a todo e qualquer tipo penal que não se defina legalmente como de menor potencial ofensivo, permitindo a decretação da interceptação telefônica a diversos crimes punidos com detenção. Se o projeto for aprovado, estende-se a interceptação, por exemplo, a crimes como o de violência arbitrária, abandono de função, patrocínio infiel, sonegação de papel ou objeto de valor probatório, homicídio culposo e lesão corporal culposa em violência doméstica, ou seja, casos que nem comportam, em regra, sanção privativa da liberdade.

Nesses casos, em geral, será concedido ao acusado o benefício da suspensão condicional do processo. Ou seja, é um verdadeiro contra-senso utilizar a interceptação telefônica em casos que nem irão a julgamento.

O parágrafo único do artigo 2º2, que restringe a possibilidade de uso dos diálogos mantidos entre cliente e advogado, nada mais representa do que a ratificação de disposição de conteúdo semelhante, constante da Lei de Inviolabilidade dos Escritórios, recentemente aprovada. Os artigos 3º e 4º repetem3, em linhas gerais, os fundamentos da Lei 9.296/96, exigindo a descrição precisa dos fatos investigados, a existência de indícios suficientes da prática do crime objeto da investigação, a qualificação do investigado, quando possível, a necessidade e indispensabilidade da medida. Todas essas previsões já existem na legislação atual e, na prática, não se constituíram em óbices concretos à proliferação abusiva das interceptações.

O prazo de duração das interceptações aumentou, pois passa de 15 para 60 dias. O aumento do prazo apenas distancia o magistrado do controle efetivo a respeito da necessidade da medida. De outro lado, o projeto de lei não estabelece, como deveria ter feito, uma determinação de que a interceptação seja interrompida fora do prazo assinalado se a prova for obtida antes do termo final.

O limite máximo agora previsto, de 360 dias, não pode ser avaliado como uma conquista. Ao contrário, pois existem respeitáveis entendimentos doutrinários (Geraldo Prado) e jurisprudenciais (Ministro Marco Aurélio) no sentido de que o limite deveria ser de apenas 30 dias, tal como prevê a Lei 9.296/96, muito embora o STF tenha trilhado um caminho oposto, permitindo sucessivas renovações. Outros países estabelecem um prazo máximo bastante inferior.

De outro lado, a inexistência de prazo máximo para crimes permanentes colide com a Constituição, pois é evidente que não se pode limitar indefinidamente um direito constitucional (à livre comunicação). Diga-se, inclusive, que o crime de quadrilha também admite a suspensão condicional do processo e a aplicação de sanções restritivas de direitos.

Há, ainda, no projeto de lei um equívoco manifesto, ao impor maiores requisitos ao requerimento de interceptação telefônica do que à própria decisão judicial. Ora, é a decisão judicial e não o requerimento que deve indicar precisamente, através de motivação concreta, de que deve ser a “quebra de sigilo da comunicação estritamente necessária e da inviabilidade de ser a prova obtida por outros meios”. Pouco importa o teor do requerimento, pois a decisão judicial é que deve ser fundamentada, ex vi do disposto no artigo 93, IX, da Constituição Federal, com a demonstração objetiva de necessidade e indispensabilidade da medida. Ou seja, o projeto acaba estimulando a flexibilização dos requisitos de decretação da medida, ao deixar de impor ao magistrado o dever de demonstrar objetivamente os fundamentos da interceptação, suprimindo uma obrigação que a lei em vigor estabelece, ainda que diariamente violada.

O projeto de lei elimina a exigência expressa ao julgador de definir com “clareza” a situação objeto da investigação, que se caracteriza na única forma possível de não permitir uma devassa indiscriminada na vida do cidadão investigado. Assim como a busca e a apreensão não podem ser genéricas, a interceptação telefônica deve servir como meio de prova específico, pontual, preciso, destinado a colher elementos necessários à investigação. É intolerável que a restrição ao sigilo de comunicação seja feita de maneira irrestrita.

Um dos aspectos mais negativos do projeto, em comparação com a legislação em vigor, é a positivação do uso dos chamados conhecimentos fortuitos da interceptação telefônica, com a redação dada pelo artigo 155. O tema é bastante complexo e polêmico. No Direito Comparado, são diversas as soluções oferecidas pela doutrina e jurisprudência, mas nenhum sistema é tão amplo e frágil como o modelo adotado pelo projeto de lei.

Em regra, a tendência das legislações é admitir a utilização dos conhecimentos fortuitos que revelam crimes conexos ao fato objeto da investigação e capazes de comprovar infrações penais constantes do “rol”, do “catálogo” de delitos que admitem em tese a adoção da interceptação telefônica. De outro lado, acolhe-se a prova em face do cidadão investigado ou de partícipes ou co-autores, mas não em relação a terceiros interlocutores que sequer eram investigados.

Como o projeto não estabelece, numerus clausus, os crimes que admitem o uso desse meio de prova, permitindo a interceptação em praticamente todo o arco de infrações penais relevantes e nem a restringe ao “alvo” da escuta, a previsão é intoleravelmente ampla, pois possibilita a prova contra todos os interlocutores do interceptado, a respeito de qualquer fato, ainda que não guarde nenhuma relação com a investigação originária.

Tal permissividade legal estimulará a manipulação da interceptação, pois é possível decretá-la a pretexto de investigar determinado indivíduo para colher prova especificamente contra quem se sabe seu interlocutor, mas, por exemplo, possua foro de prerrogativa, sem que se perca o controle da investigação, em razão da incompetência.

A utilização genérica dos conhecimentos fortuitos, sem qualquer limitação e pelo prazo máximo de 360 dias, como dispõe o projeto, transforma a interceptação telefônica de meio de prova de um fato criminoso em instrumento de permanente vigilância do cidadão, de todos os seus passos, de absolutamente todas as suas condutas e de seus interlocutores, amigos e familiares, o que evidentemente é incompatível com o processo penal de respeito aos direitos fundamentais.

Notas de rodapé

1. Art. 2º A quebra do sigilo das comunicações telefônicas não será admitida na investigação criminal ou instrução processual penal de crimes de menor potencial ofensivo, assim definidos em lei, salvo quando a conduta delituosa tiver sido realizada por meio dessa modalidade de comunicação.

2. Parágrafo único. Em nenhuma hipótese poderão ser utilizadas as informações resultantes da quebra de sigilo das comunicações entre o investigado ou acusado e seu defensor, quando este estiver no exercício da atividade profissional.

3. Art. 7º São direitos do advogado: II — a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia.

4. Art. 3º O pedido de quebra de sigilo das comunicações telefônicas de qualquer natureza será formulado por escrito ao juiz competente, mediante requerimento do Ministério Público ou representação da autoridade policial, ouvido, neste caso, o Ministério Público, e deverá conter:

I — a descrição precisa dos fatos investigados;

II — a indicação da existência de indícios suficientes da prática do crime objeto da investigação;

III — a qualificação do investigado ou acusado, ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, salvo impossibilidade manifesta devidamente justificada;

IV — a demonstração de ser a quebra de sigilo da comunicação estritamente necessária e da inviabilidade de ser a prova obtida por outros meios;

Art. 4º O requerimento ou a representação será distribuído e autuado em separado na forma de incidente processual, sob segredo de justiça, devendo o juiz competente, no prazo máximo de vinte e quatro horas, proferir decisão fundamentada, que consignará de forma expressa, quando deferida a autorização, a indicação:

I — dos indícios da prática do crime;

II — dos indícios de autoria ou participação no crime, salvo impossibilidade manifesta devidamente justificada;

III — do código de identificação do sistema de comunicação, quando conhecido, e sua relação com os fatos investigados;

IV — do prazo de duração da quebra do sigilo das comunicações.

§ 1º O prazo de duração da quebra do sigilo das comunicações não poderá exceder a sessenta dias, permitida sua prorrogação por igual período, desde que continuem presentes os pressupostos autorizadores da medida, até o máximo de trezentos e sessenta dias ininterruptos, salvo quando se tratar de crime permanente, enquanto não cessar a permanência.

§ 2º O prazo correrá de forma contínua e ininterrupta e contar-se-á a partir da data do início da quebra do sigilo das comunicações pela prestadora responsável pela comunicação, que deverá comunicar este fato, imediatamente, por escrito, ao juiz.

§ 3º Para cada prorrogação será necessária nova decisão judicial fundamentada, observado o disposto no caput.

§ 4º Excepcionalmente, o juiz poderá admitir que o pedido seja formulado verbalmente, desde que estejam presentes os pressupostos que autorizem a interceptação, caso em que a concessão será condicionada à sua redução a termo, observadas as seguintes hipóteses:

I — quando a vida de uma pessoa estiver em risco, podendo o juiz dispensar momentaneamente um ou mais requisitos previstos no caput do art. 4º e seus incisos;

II — durante a execução da medida de quebra de sigilo, caso a autoridade policial identifique que o investigado ou acusado passou a fazer uso de outro número, código ou identificação em suas comunicações, havendo urgência justificável.

§ 5º Despachado o pedido verbal e adotadas as providências de que trata o caput do § 4º, os autos seguirão para manifestação do Ministério Público e retornarão à autoridade judiciária, que, em seguida, reapreciará o pedido.

5. Art. 15. Na hipótese de a quebra do sigilo das comunicações telefônicas de qualquer natureza revelar indícios de crime diverso daquele para o qual a autorização foi dada e que não lhe seja conexo, a autoridade deverá remeter ao Ministério Público os documentos necessários para as providências cabíveis.

Autores

  • Brave

    é advogado. Doutor em Direito Penal, conselheiro estadual da OAB-PR, membro do Corpo Diretivo do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!