Morte anunciada

Eloá não foi um caso isolado de homicídio passional. Foi mais um.

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28 de outubro de 2008, 12h07

Depois de cem horas em cativeiro, acompanhadas de perto por toda a população brasileira através do rádio, da televisão e dos jornais, terminou o cárcere privado de Eloá Cristina Pimentel, de 15 anos, alvejada na virilha e na cabeça por seu ex-namorado Lindemberg Alves, 22 anos, pondo fim a mais essa crônica de uma morte anunciada.

Eloá não foi um caso isolado de homicídio passional. Foi, apenas, mais um. São muitas as mulheres que morrem ao romper o relacionamento amoroso com seus maridos ou namorados. É inacreditável que com tantos avanços conquistados pelas mulheres ao longo do último século, os crimes passionais continuem ocorrendo no país com a mesma intensidade.

Importa esclarecer que passionalidade não se confunde com violenta emoção. O termo “passional” deriva de paixão, não de emoção e nem de amor. Não é um homicídio de impulso, ao contrário, é detalhadamente planejado, exatamente como fez Lindemberg. Ele foi à casa de Eloá preparado para acertar as contas, armado até os dentes, com os bolsos cheios de munição para matar quantas pessoas fossem necessárias para alcançar o seu objetivo: vingança. Ao entrar no apartamento da família da vítima, surpreendeu-se com a presença de três amigos da ex-namorada que estavam na residência para fazer um trabalho escolar. No princípio, manteve todos no cárcere privado. Depois, negociou e foi soltando os amigos um a um, até ficar somente com Eloá. Desde o começo, seu intento era matar a moça para aliviar o sentimento de rejeição que o atormentava.

Por essa razão, a negociação que se estabeleceu durante todo o período de cativeiro não teria a menor chance de prosperar. Lindemberg não queria dinheiro, não queria garantir sua fuga. Pretendia matar Eloá e qualquer outra pessoa que se interpusesse no seu caminho. Assim, de nada adianta procurar pessoas experientes em negociações com seqüestradores para cuidar de um caso passional. O efeito do rompimento afetivo na psique do agressor exige tratamento diferenciado, tendo em vista que a negociação não tem bases materiais, mas emocionais. O intento assassino não admite barganha. Somente a própria vítima poderia ter tido sucesso em uma negociação com Lindemberg, mas ela teria que convencê-lo de que estava disposta a reatar a relação, de que o amava, de que não tinha mais nenhum outro homem em mente, de que jamais o esquecera ou o trocara por outro, de que haveria um lindo futuro para ambos.

Eloá foi pega de surpresa e tornou-se cativa sem muito esforço do agressor. Ela não tinha preparo nem condições objetivas de se livrar da situação, permanecendo completamente à mercê dos lampejos emocionais do rapaz. Conforme relato de pessoas que acompanharam os fatos de perto, Eloá irritou-se com a conduta de Lindemberg, discutiu com ele e chegou a proferir xingamentos, reação muito natural diante das circunstâncias, mas inadequada para evitar o pior desfecho. Não se sabe se teria sido possível falar com a moça durante o período de cativeiro de modo a orientá-la a agir, mas essa teria sido a única forma de salvá-la. Para o agressor, de nada importava o resto do mundo. No entanto, a pouca idade da vítima e sua ingenuidade ao não acreditar piamente na sanha assassina de Lindemberg impediram que ela tivesse uma idéia exata do perigo que corria e da estratégia que poderia usar.

Desta forma, a ação da polícia foi decisiva. Após cinco dias de alta tensão, de negociações que não avançavam e do totalmente inexplicável retorno da amiga Nayara, 15, ao apartamento onde a ação se desenrolava, a polícia decidiu invadir o local. Para tanto, colocou explosivos na porta de entrada do apartamento, provocando pânico nos jornalistas e curiosos que ali faziam plantão.

Alertado pelo barulho ensurdecedor, Lindemberg disparou sua arma imediatamente, alvejando duas vezes Eloá e ferindo Nayara no rosto. Por erro de pontaria, ele não matou a amiga, demonstrando verdadeira fúria assassina contra o gênero feminino. O tiro na virilha evidenciou a intenção de atingir predeterminada região. Embora muitas indagações possam ser feitas e algumas lições devam ser tiradas para evitar erros futuros, é crucial entender melhor o crime passional e a força que move seu autor. Por que o homem precisa matar a mulher que o rejeita? Não seria suficiente separar-se dela e arrumar outra? Por que tantos homens aparentemente normais e pacíficos reagem de forma brutal e insana quando são desprezados ou simplesmente substituídos? Foi assim com Pimenta Neves e Sandra Gomide, Doca Street e Ângela Diniz, Lindomar Castilho e Eliane de Gramont, Eduardo Galo e Margot Proença, Euclides da Cunha e Ana Ribeiro. São numerosos os casos de homicídio passional ao longo da história de nosso país, mas muito pouco se discute sobre eles.

Na conduta do criminoso passional encontra-se embutida uma causa exógena, ou seja, uma pressão social para que ele não aceite a autodeterminação da mulher. Além do fato em si de ter sido desprezado, o passional preocupa-se em mostrar aos amigos e familiares que ainda continua no comando de sua relação amorosa e que castigou com rigor aquela que ousou desafiá-lo. É a face deplorável do machismo. Por essa razão, o sujeito comete o crime na presença de testemunhas e, depois, confessa a autoria do delito sem rodeios e em detalhes. Para ele, praticar o ajuste de contas e não demonstrá-lo publicamente de nada adianta.

É evidente que o passional vai dizer que “matou por amor”. Com todas as provas contra si, nada lhe resta a declarar. A cadeia não é um lugar agradável. No entanto, é óbvio que ninguém mata por amor. Lindemberg, durante as conversas que manteve com o irmão da moça e que foram gravadas pela polícia, informou que “estava com ódio de Eloá, que não conseguia nem olhar para a cara dela”. É importante que ninguém se esqueça dessa frase.

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    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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